9. Em Cafarnaum (Mc 1,21-39)


1
21 Entraram em Cafarnaum. No sábado, Jesus foi à sinagoga e pôs-se a ensinar.22 Todos ficaram admirados com seu ensinamento, pois ele os ensinava como quem tem autoridade, não como os escribas.23 Entre eles na sinagoga estava um homem com um espírito impuro; ele gritava:24 “Que queres de nós, Jesus Nazareno? Vieste para nos destruir? Eu sei quem tu és: o Santo de Deus!”25 Jesus o repreendeu: “Cala-te, sai dele!”26 O espírito impuro sacudiu o homem com violência, deu um forte grito e saiu.27 Todos ficaram admirados e perguntavam uns aos outros: “Que é isto? Um ensinamento novo, e com autoridade: ele dáordens até aos espíritos impuros, e eles lhe obedecem!”28 E sua fama se espalhou rapidamente por toda a região da Galileia.29 Logo que saíram da sinagoga, foram com Tiago e João para a casa de Simão e André.30 A sogra de Simão estava de cama, com febre, e logo falaram dela a Jesus.31 Ele aproximou-se e, tomando-a pela mão, levantou-a; a febre a deixou, e ela se pôs a servi-los.32 Ao anoitecer, depois do pôr do sol, levavam a Jesus todos os doentes e os que tinham demônios.33 A cidade inteira se ajuntou à porta da casa.34 Ele curou muitos que sofriam de diversas enfermidades; expulsou também muitos demônios, e não lhes permitia falar, porque sabiam quem ele era.35 De madrugada, quando ainda estava bem escuro, Jesus se levantou e saiu rumo a um lugar deserto. Lá, ele orava.36 Simão e os que estavam com ele se puseram a procurá-lo.37 E quando o encontraram, disseram-lhe: “Todos te procuram”.38 Jesus respondeu: “Vamos a outros lugares, nas aldeias da redondeza, a fim de que, lá também, eu proclame a Boa Nova.Pois foi para isso que eu saí”.39 E foi proclamando nas sinagogas por toda a Galileia, e expulsava os demônios.
Na sinagoga
A partir do v. 21, Marcos relata aquilo que passamos a chamar de “O Dia de Cafarnaum”, que pode ser lido, talvez, como memória de várias passagens de Jesus por Cafarnaum, unidas aqui num só episódio; ou, sobretudo, como uma grande catequese sobre os encontros de Jesus com os “espíritos impuros” que se opõe ao Reino por ele anunciado.
Logo após entrar na cidade, Jesus vai à sinagoga, no sábado para ensinar. Em Mc, Jesus sempre será apresentado como quem tem pressa (v. 38). Afinal, se “o tempo já se esgotou e o Reino chegou” (Mc 1,15), é preciso anunciar essa boa notícia. Embora isso não ocorra explicitamente aqui, em inúmeras passagens de Mc, Jesus tem tamanha urgência em anunciar o Reino que não espera sequer passar o sábado, fazendo o que não era tido como lícito fazer (cf. Mc 2,23-28; 3,1-6).
Ensinando na sinagoga, Jesus desperta nos seus ouvintes a reação que será recorrente em todo o texto de Mc: “eles ficaram admirados” (v. 22). Para Mc, é importante que os interlocutores de Jesus fiquem “admirados”, pois a admiração desperta neles a pergunta fundamental do Evangelho: “quem é Jesus?” (v. 27). Já vimos que, somente guiado por essa pergunta, o leitor das catequeses de Mc poderá concluir junto com o evangelista: é o Messias, o Filho de Deus (cf. Estudo 5). Nesse versículo, a admiração é despertada pela “autoridade” com a qual Jesus ensina. Também essa será uma característica de Jesus recorrente em Mc. E o evangelista esclarece que sua autoridade o distingue dos escribas (ou dos fariseus, ou dos mestres da lei, conforme a passagem). A “autoridade” de Jesus, portanto, não pode advir da legitimidade de um poder instituído por mandado religioso ou institucional. Ela vem da plenitude do Espírito que habita nele, que desceu sobre ele no batismo e que o conduziu ao deserto (Mc 1,10.12) e da novidade de seu anúncio, acolhido como boa notícia (Mc 1,15).
Entre eles, na sinagoga de Cafarnaum, está um homem com espírito impuro (v. 23), a gritar. Parece bastante impróprio que um homem com espírito impuro esteja na sinagoga, ou que o espírito impuro o possua e o faça gritar em plena assembleia religiosa. Isso se, por “espírito impuro” estivermos compreendendo as “possessões demoníacas” conforme relatadas tradicionalmente por várias tradições religiosas ou ainda cultivadas em alguns ambientes ditos cristãos. Procurar nos Evangelhos esse tipo de “possessão” seria um anacronismo, pois se trata de uma compreensão do demônio muito posterior aos relatos do Novo Testamento. Certamente, teríamos muitos problemas ao tentar projetar nas figuras bíblicas do “demônio” (como em Jó ou nos Evangelhos) aquilo que só se passou a compreender como “Demônio” muito depois, sobretudo a partir da Idade Média: uma espécie de personificação ou entidade do Mal, com personalidade e identidade pessoais. Em Mc, por exemplo, os “espíritos impuros” ou “demônios” se referem a tudo quanto se oponha ao Reino anunciado por Jesus, ou que tente impedir ou retardar o seu anúncio. Por isso, é perfeitamente possível (e até previsível) que um homem “possuído por um espírito impuro” esteja na sinagoga. Pois as forças que se opõem ao Reino podem se encontrar em toda parte, inclusive nos círculos religiosos, de ontem e de hoje. Esses “espíritos impuros”, figura do “anti-reino”, não têm pudor religioso, ainda que habitem as assembleias litúrgicas. Também por isso é urgente anunciar o Reino, mesmo em dia de sábado.
Nessa passagem (v. 24), o que grita o espírito impuro? “Eu sei quem tu és, o Santo de Deus!”. Em que se mostra sua impureza? No atentado contra o “segredo messiânico” (cf. Estudo 6). Já falamos sobre isto: o segredo que, em Mc, Jesus impõe aos discípulos e àqueles que experimentam sua ação messiânica. E tem duas razões: uma razão prática, já que Jesus não pode ser entregue e morto antes de cumprir sua missão de anunciar o Reino; e uma razão teológica, a de que só se conhece Jesus, só se responde à pergunta “quem ele é” através do seguimento, fazendo com ele o caminho. Mesmo a verdade, de que Jesus é o “Santo de Deus”, se nascida de uma experiência que não é a do seguimento e que não compromete com ele o discípulo, provém do espírito impuro, da oposição ao Reino. Isso é facilmente verificável em nossos tempos, em que muitos proclamam que “Jesus é o Senhor” sem que isso tenha implicâncias de segui-lo, tornando-se seu discípulo. Para Mc, não há dúvida: é obra do espírito impuro, manifesto até na sinagoga. A resposta de Jesus (v. 25-26) reafirma o segredo (“Cala-te”), expulsando o espírito impuro.
Novamente, como sempre em Mc, os expectadores ficam “admirados” e reconhecem a “autoridade” de Jesus, provinda da novidade de sua notícia (v. 27). Sua palavra é performativa, eficaz e “até os espíritos impuros obedecem”. Ora, quanto mais nós, que o reconhecemos como Messias e Filho de Deus, deveríamos obedecer... E sua fama começa a se espalhar (v. 28), levando junto consigo seu evangelho.
Na casa de Simão
Saindo da sinagoga, um novo encontro com “espíritos impuros”, agora na casa de André e Simão, cuja sogra está acamada, com febre (v. 29-30). Para os antigos, a febre é especialmente estranha, símbolo de impureza: não possui (ou não possuía, para eles) causas explícitas; a pessoa parece bem fisicamente, mas arde em calafrios. A sogra parece um arquétipo daquele que está “fora do caminho” de Jesus: já está idosa, doente, acamada... Mas Jesus se “aproxima dela, toma-a pela mão e a faz se levantar”. É uma sequência significativa de verbos, aplicada aos catecúmenos, aqueles que adentravam as comunidades cristãs dos primeiros tempos. Afinal, já sabemos que os Evangelhos serão sempre um testemunho do Ressuscitado e sua presença na comunidade cristã, que escreve essas catequeses (cf. Estudo 3). Também de cada um de nós se poderia dizer que Jesus, nalgum momento, se aproximou de nós, nos tomou pela mão e nos fez levantar. “Levantar”, que é o mesmo verbo da ressurreição (Jesus foi “levantado” dos mortos). Ressuscitado, ele nos ressuscita para uma vida nova, fazendo-nos parte de seu corpo, a Comunidade – e isso se oferece a todos, mesmo os mais improváveis aos olhos desatentos, desde que se permitam tomar pela mão e ser conduzidos por Jesus. E, uma vez “erguidos” por ele para uma vida nova pelo batismo e a inclusão na Igreja, já sem a febre que nos ardia, nossa vocação é a mesma da sogra de Simão: pôr-se a servir.
Os episódios da sinagoga e da casa de Simão se repetirão, “depois do pôr-do-sol”, quando muitos trarão seus enfermos a Jesus, do qual ele “expulsará os espíritos impuros” (v. 32-34). Notável, entretanto, é que “a cidade inteira se amontoava na porta da casa”. Distintivo do discípulo, em Mc, é estar “com Jesus”, “no caminho” ou “com ele em casa”. Aqui, a multidão está “na porta”, nem dentro e nem fora, sem tornar-se discípula dele, mas sem desprezar a novidade de seu anúncio.
Em lugar deserto
Jesus sempre ora, em Mc. A urgência de seu anúncio e a pressa característica de Jesus não o impede de dedicar longos tempos em oração, em lugares desertos e no silêncio das madrugadas. E não é possível deixar de notar a sequência sugestiva da narração: “Jesus se levantou de madrugada” (v. 35) como alusão à ressurreição. A comunidade estará sempre à procura do Ressuscitado, nas horas mais escuras de sua caminhada (v. 36-37). Mas Jesus não se deixa aprisionar. Sabe que “deve sempre ir a outros lugares, pois foi para isso que saiu” (cf. v. 38). Saiu de Nazaré? Saiu do Pai? Saiu do túmulo? Não importa. Importa, sim, segui-lo por onde for, anunciando com ele a boa notícia do Reino que chegou, contra a qual se erguem espíritos impuros de todo tipo (v. 39).
* * *
O anúncio da boa notícia do Reino é urgente e contra ele se levantam os “espíritos impuros”, não raro anunciando quem é Jesus sem que isso implique segui-lo. Pelo contrário, somente no seguimento é possível descobrir nele o Cristo, o Filho de Deus, e anunciar esse evangelho por toda parte, mas sempre lembrando, é claro, que o Ressuscitado não pertence a quem o anuncia.
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