10. De volta a Cafarnaum: os dilemas da Lei (Mc 1,40 – 2,12)


1
40 Um leproso aproximou-se de Jesus e, de joelhos, suplicava-lhe: “Se queres, tens o poder de purificar-me!”41 Jesus encheu-se de compaixão, e estendendo a mão sobre ele, o tocou,dizendo: “Eu quero, fica purificado”.42 Imediatamente a lepra desapareceu, e ele ficou purificado.43 Jesus, com severidade, despediu-o e recomendou-lhe:44 “Não contes nada a ninguém! Mas vai mostrar-te ao sacerdote e apresenta, por tua purificação, a oferenda prescrita por Moisés. Isso lhes servirá de testemunho”.45 Ele, porém, assim que partiu,começou a proclamar e a divulgar muito este acontecimento, de modo que Jesus já não podia entrar, publicamente, na cidade. Ele ficava fora, em lugares desertos, mas de toda parte vinham a ele.
2
1 Alguns dias depois, Jesus passou novamente por Cafarnaum, e espalhou-se a notícia de que ele estava em casa.2 Ajuntou-se tanta gente que já não havia mais lugar, nem mesmo à porta.E Jesus dirigia-lhes a palavra.3 Trouxeram-lhe um paralítico, carregado por quatro homens.4 Como não conseguiam apresentá-lo a ele, por causa da multidão, abriram o teto, bem em cima do lugar onde ele estava e, pelo buraco, desceram a maca em que o paralítico estava deitado.5 Vendo a fé que eles tinham, Jesus disse ao paralítico: “Filho, os teus pecados são perdoados”.6 Estavam ali sentados alguns escribas, que no seu coração pensavam:7 “Como pode ele falar deste modo? Está blasfemando. Só Deus pode perdoar pecados”!8 Pelo seu espírito, Jesus logo percebeu que eles assim pensavam e disse-lhes: “Por que pensais essas coisas no vosso coração?9 Que é mais fácil, dizer ao paralítico: ‘Os teus pecados são perdoados’, ou: ‘Levanta-te, pega a tua maca e anda’?10 Ora, para que saibais que o Filho do Homem tem na terra poder para perdoar pecados – disse ao paralítico –11 eu te digo: levanta-te, pega a tua maca e vai para casa!”12 O paralítico se levantou e, à vista de todos, saiu carregando a maca. Todos ficaram admirados e louvavam a Deus dizendo: “Nunca vimos coisa igual”!
Retornando a Cafarnaum
No caminho de volta, Jesus se encontra novamente com um “espírito impuro” (cf. Estudo 9). Não em gritos ou blasfêmias, mas num homem leproso que suplica. O pecado transparece na superfície de seu corpo, à mostra de quem queira ver. Um engano, entretanto (e nesse engano está a impureza), pois sob essa aparência desprezível às pessoas e a Deus, habita um coração de fé: “Se queres, tens o poder de me purificar” (v. 40). Na fé, ele já está puro e, ao proclamá-la, liberta-se de toda impureza.
Em Mc, Jesus sempre se encherá de “compaixão” (v. 41). É uma tradução aproximada para um sentimento sem nome, que toma a pessoa por inteiro e faz-lhe “estremecerem-se as entranhas”. Tomado por essa “compaixão”, Jesus expressa seu querer: “fica purificado”, não sem antes tocar o homem. Seu querer não é só dito, mas exercido, praticado – mesmo contra a prescrição religiosa vigente. No toque de Jesus, expressão de seu querer, a lepra desaparece e o homem deixa de carregar a impureza de sua exclusão (v. 42).
Em defesa do já conhecido segredo messiânico, Jesus lhe pede silêncio, como frequentemente o fará (v. 43-44). Mas pede que o homem se apresente ao sacerdote, autoridade legítima em assunto religioso–sanitário. Ao sacerdote, o homem limpo não deve apresentar justificativas, mas o sacrifício previsto pela Lei. É a linguagem própria ao entendimento dessas autoridades. Porém, ao contrário dos “espíritos impuros”, aqueles que são curados dificilmente obedecem a esse pedido de Jesus e põem-se a divulgar o acontecido (v. 45), desencadeando as consequências inevitáveis do anúncio do Reino.
Os dilemas das prescrições legais
O anúncio do Reino é uma notícia que, embora boa, pode deixar perplexos aqueles que se apeguem às antigas convicções e mentalidades. Por isso, já advertira Jesus, acreditar no evangelho exige conversão (cf. Mc 1,15). Em seu anúncio, Jesus se depara com a resistência daqueles que, não se convertendo, não creem. E, ainda mais, recorrem às Escrituras para se justificar. Aos poucos, Marcos confirma que, de fato, Jesus é o “Messias inesperado”: mesmo que as Escrituras deem testemunho dele, elas mesmas servirão de subsídio a sua condenação. Alguns desses enfrentamentos de Jesus foram recolhidos no segundo capítulo do Evangelho.
O perdão dos pecados
Jesus está novamente “em casa” (v. 1). “Em casa”, “no caminho”, “com ele” são os lugares do discípulo, em Mc. Por isso mesmo, se ajunta grande multidão a seu redor: discípulos (dentro) e curiosos (fora), sem faltar os titubeantes, que permanecem “na porta”. Nesse dia, em Cafarnaum, esses lugares estão repletos (v. 2). A eles, Jesus dirige não um espetáculo taumatúrgico, mas sua palavra, pois é a palavra e o ensino que formam o discípulo.
A cena seguinte nos é muito cara: o homem com dificuldades de locomoção, acamado pela doença, conduzido por outros quatro homens de fé (v. 3-5). Por trás do diagnóstico imediato de que o homem está doente, a constatação mais grave, comum nas expressões religiosas judaicas desde o deuteronomismo e insistente ainda hoje: sua doença é consequência do pecado, seu ou de seus pais. Interessa, porém, que seu mal é justo na medida em que “compensa” uma falta; a doença é instrumento da ira e da justiça de Deus. Entretanto, novamente a impureza do engano se manifesta: sob a aparência da maldição, Jesus viu exatamente o contrário – “a fé deles”. Por isso, declara “perdoados os seus pecados”.
As contradições parecem evidentes aos escribas (v. 7): como pode Jesus perdoar pecados, se só Deus pode fazê-lo? A prova cabal da blasfêmia estaria diante deles, aos olhos de todos, pois o homem continua paralítico, sob o peso de seus antigos pecados, que Jesus diz ter perdoado. Convencidos dessa lógica, em vez de concluir que Jesus, perdoando os pecados, tem parte com Deus, concluem o contrário: ele blasfema.
Jesus desnuda diante deles o injusto argumento religioso (v. 8-9) e, assim, é compreensível sua resposta: “para que saibais que o Filho do Homem tem na terra o poder de perdoar pecados, levanta-te, pega tua cama e vai para casa” (v. 10-11). Antes de curá-lo, Jesus separa as duas coisas, sua doença e seus pecados, demonstrando que é falsa a relação de causa–consequência entre eles. E, para que todos creiam no perdão dos pecados, realiza também a cura da paralisia.
Pela primeira vez em Mc, Jesus se atribui o título de “Filho do Homem”, presente na literatura apocalíptica. Em Dn 7,13 o “Filho do Homem” (v. 10) é a esperança de Israel e governará para sempre e defenderá seu povo das feras. “Plenamente humano”, “gente da gente”, mas que nos mostra o verdadeiro sentido de nossa humanidade – poderíamos inferir desse título de Jesus.
Como de costume, os espectadores “ficaram admirados”, para que a admiração lhes leve a perguntar: “quem é Jesus?” e descobrir nele o Messias, Filho de Deus (v. 12).
* * *
A admiração que Jesus desperta nos discípulos e nas multidões tem razão de ser: a novidade de seu anúncio se põe em choque com as antigas mentalidades que encontram num certo tipo de observância religiosa seu reduto. A gratuidade de Deus se mostra no perdão e na generosidade que estão para além de qualquer prescrição e não há realidade humana tão desfigurada pelo pecado que, com a necessária abertura, não possa ser penetrada e transformada por seu Amor.
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