17. Política de proteção (II)
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17.02.2025 | 6 minutos de leitura

Evangelho do Cuidado

“Em verdade, eu vos digo: cada vez que fizestes isso
a um dos menores dos meus irmãos,
foi a mim que o fizestes”
(Mt 25,40)
Como começamos a tratar na semana passada, uma “Política de Proteção” não é um simples “protocolo de intervenção”, que descreve os procedimentos institucionais a serem adotados em caso de algum abuso. Embora deva conter esse protocolo, a política vai além dele, uma vez que as ações previstas não se esgotam na intervenção. Prevenção, formação e reparação devem estar igualmente contempladas nas ações descritas na Política.
Por outro lado, também não é apenas uma “carta de boas intenções” que simplesmente menciona certos “compromissos institucionais” da entidade eclesial, reafirmando certos valores ou listando teórica e sumariamente uma coleção de cenários ideais. Uma boa Política precisa partir da realidade institucional, com efetiva capacidade operacional, descrição precisa das ações e critérios verificáveis de sua aplicabilidade.
Eliminadas esses exemplos de compreensões restritivas ou limitantes (que, infelizmente, podem ser reconhecidos em muitas “políticas” em vigor...), já é possível vislumbrar um pouco melhor o que estamos chamando de “Política de Proteção”1. Como toda “política” trata-se de um documento institucional que define os fundamentos e a operacionalização das diretrizes organizacionais a serem seguidas para determinado objetivo. Sendo um documento de governança, dialogia necessariamente com os valores, a missão e a cultura organizacional dessa instituição. E, justamente por isso, pode ser norteador para processos e normas particulares, no âmbito de sua elaboração.
Assim, a Política de Proteção de determinada entidade eclesial (diocese, congregação, província, seminário, unidade educacional ou de ação social etc.), com objetivo de cumprir o Art. 2 de Vos Estis Lux Mundi, poderia ser definida como um documento que:
- (1) Dialogando com os valores carismáticos ou fundacionais dessa entidade, com sua natureza e sua missão eclesial, estabelece objetivamente seus compromissos com o cuidado e a proteção de crianças, adolescentes e adultos vulneráveis contra qualquer tipo de abuso ou maltrato, no âmbito da organização e das ações dessa entidade.- (2) Em coerência com esses compromissos enunciados, formula protocolos nos quais descreve de maneira operacional as estruturas e as ações que devem ser implementadas com objetivo de efetivar o cuidado e a proteção, tanto em caráter preventivo (para que o abuso não aconteça), quanto de intervenção e de reparação (quando o abuso já aconteceu). É natural que determinados ambientes ou ações das instituições mereçam protocolos específicos, de modo a assegurar que os valores e os compromissos assumidos possam se efetivar em cada um desses ambientes ou ações. E isso se faz com a elaboração de mapeamentos de risco, como mais adiante descreveremos.- (3) Por fim, estabelece níveis de responsabilidades e atribuições dos agentes institucionais, além de critérios de verificação da efetividade das ações previstas nos protocolos. A partir da análise da realidade e das sucessivas revisões, elabora planos de ação adequados a cada momento e a cada ambiente institucional. Também dispõe sobre critérios de publicização de dados e rendição de contas dos trabalhos realizados, em vista de uma cultura de transparência institucional.
Não é difícil perceber, portanto, que uma Política de Proteção só pode ser obra de muitas mãos – e de muitos olhares, de muitos lugares institucionais, de muitas competências profissionais, muitas sensibilidades... Como acontece em tantos outros âmbitos, uma política só tem adesão e efetividade se os diversos atores institucionais participam ativamente e se sentem considerados e responsáveis no processo de sua elaboração. Ou seja, ainda que uma Política de Proteção seja redigida por um “grupo de trabalho”, serão necessárias estratégias para ouvir e envolver os diversos membros dessa instituição – aqueles mesmos que, ao final, serão responsáveis pela implementação da política.
Também já salta aos olhos que a Política de Proteção de determinada entidade, como todo documento estratégico e de governança, é um instrumento particularíssimo dessa entidade – “pessoal e intransferível”, como se poderia dizer. Isso porque, para figurar verdadeiramente como uma política, o documento deve fazer uma leitura fundamentada e criativa do carisma e da cultura organizacional da entidade. Espera-se, por exemplo, que o carisma franciscano ofereça determinados elementos carismáticos singulares à Política de uma congregação franciscana. Distintos daqueles elementos carismáticos inacianos que se poderiam encontrar em uma Política de Proteção elaborada por Jesuítas. Do mesmo modo, uma mesma congregação presente em distintos países ou continentes certamente considerará as diferenças culturais no modo como as relações estão estabelecidas em sua realidade organizacional. De tal sorte que uma Política elabora por uma entidade no leste europeu certamente apresentará diferenças significativas se comparada a uma elaborada na América Latina. Realidades sociais, cenários de vulnerabilidade, traços culturais, âmbitos de atuação, composição dos membros da instituição... tudo isso interfere no modo que a Política de determinada entidade formulará seus compromissos e, por consequência, seus protocolos de ação.
Haveria, portanto, uma espécie de “roteiro” para a construção de uma Política de Proteção? Ou, ao menos, algumas partes constitutivas que não poderiam faltar na elaboração de uma boa Política? Ainda que esses conceitos estejam em construção, já é possível estabelecer alguns critérios e alguns indicadores para isso, bem como alguns procedimentos metodológicos. O Marco Universal das Linhas Guia, publicado pela Pontifícia Comissão pro Tutela Minorum em 20242, são de muita valia. Também as orientações publicadas pela CNBB com o título de “O Cuidado Pastoral das Vítimas de Abuso Sexual”3 podem ser muito úteis. E o Núcleo Lux Mundi tem trabalhado com objetivo de refinar e disponibilizar orientações quanto aos passos para elaboração e revisão das Políticas de Proteção. E é justamente esse o nosso tema da próxima semana.
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1Como todo vocabulário em construção, aqui também há variantes possíveis. Em alguns ambientes, se fala em “política de salvaguarda”; em outros, de “política de cuidado e proteção”. Ainda temos um caminho a percorrer na estabilização desse vocabulário.
2 Disponível em: https://www.tutelaminorum.org/universal-guidelines-framework. A tradução não oficial em espanhol pode ser solicitada pelo joao.ferreira@clar.org.br.
3 Infelizmente, não está disponível na internet, mas somente mediante a compra do livro físico ou do ebook. Cf. por exemplo: https://www.edicoescnbb.com.br/o-cuidado-pastoral-das-vitimas-de-abuso-sexual?srsltid=AfmBOoqof02KBMPECXMZhdqu9BkMUxYcLk5SLLvfG9XV_5GCQUvFcljb.
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Ao longo da tratativa deste tema, pode ser que alguém sinta necessidade de falar, seja para contar experiências ou para tirar dúvidas. Se isso acontecer, você pode procurar a Comissão de Cuidado e Proteção ou o Serviço de Escuta da sua diocese, das congregações religiosas ou de outros organismos eclesiais. Ou pode escrever para joao.ferreira@clar.org para se informar melhor.
Um abraço e até a próxima semana!
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