16. Olhando mais de perto: Política de proteção (I)
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10.02.2025 | 6 minutos de leitura

Evangelho do Cuidado

“Em verdade, eu vos digo: cada vez que fizestes isso
a um dos menores dos meus irmãos,
foi a mim que o fizestes".
(Mt 25,40)
Em várias passagens, ao longo da caracterização dos diversos tipos de abuso – o que nos ocupou nas últimas semanas –, nos referimos à “Política de Proteção” das instituições eclesiais. Mas, afinal, a quê exatamente estamos nos referindo?
Essa é uma pergunta importante e exige uma breve retrospectiva. Embora a preocupação com o tema dos abusos já tivesse se tornado pauta em muitos ambientes eclesiais, foi somente em 2019, na primeira versão de Vos Estis Lux Mundi, que se instituiu a obrigação de que as instituições da Igreja Católica constituíssem seus “serviços de proteção”:
“Art. 2 - Recepção das assinalações e proteção dos dados
§ 1. Tendo em conta as indicações eventualmente adotadas pelas respectivas Conferências Episcopais, pelos Sínodos dos Bispos das Igrejas Patriarcais e das Igrejas Arquiepiscopais Maiores, ou pelos Conselhos dos Hierarcas das Igrejas Metropolitanas sui iuris, as Dioceses ou as Eparquias, individualmente ou em conjunto, devem estabelecer, dentro de um ano a partir da entrada em vigor destas normas, um ou mais sistemas estáveis e facilmente acessíveis ao público para apresentar as assinalações, inclusive através da instituição duma peculiar repartição eclesiástica. As Dioceses e as Eparquias informam o Representante Pontifício que foram instituídos os sistemas referidos neste parágrafo” (VELM, 2019; grifo nosso).
A obrigação de constituir esses serviços (“sistemas estáveis” nessa primeira versão do texto, mas expressão seria substituída por “organismos ou serviços” na versão de 2023), nos termos de VELM, se aplicaria às diversas instituições da Igreja Católica, a começar pelas dioceses e, consequentemente, suas paróquias. Com isso, esperava-se atingir toda a Igreja, uma vez que todas as demais instituições eclesiais, de um modo ou de outro, ou se situam nessas Igrejas Locais ou equivalem a elas em seu caráter jurídico (como as abadias ou províncias das Congregações clericais de direito pontifício, por exemplo).
Observe-se, contudo, que esses “serviços” (dos quais falaremos mais demoradamente a seu tempo) deveriam ser criados “tendo em conta as indicações eventualmente adotadas” pelas instituições eclesiásticas: as conferências episcopais e/ou as próprias dioceses (e seus equivalentes em cada rito da Igreja Católica). De fato, desde 2012 se ordenara que as conferências episcopais de cada país constituíssem “diretrizes” ou “linhas-guia” para fundamentar as ações de enfrentamento dos abusos. Não se definiam, porém, com exatidão, o que eram essas “diretrizes”, “linhas-guia” ou “indicações”, tampouco se fixavam a forma ou a metodologia a serem aplicadas para construção desses documentos.
Pois bem. Desde então, iniciou-se a corrida das instituições para constituírem seus documentos de proteção, conforme ordenara VELM. E, de fato, muitas dessas instituições (conferências episcopais, conferências de religiosos/as, dioceses, ordens e congregações, escolas católicas e unidades de ação social etc.) conseguiram produzir seus documentos, um pouco cada qual a seu modo. Alguns o intitularam “protocolos”, outros preferiram “diretrizes”, ou ainda “manual de conduta” e tantas outras nomenclaturas. E é preciso reconhecer que não há uma definição oficial do que seja uma coisa ou outra e em que elas difeririam. Interessa que todo esse material tem em comum o explícito desejo de cumprir o Art. 2 de VELM e, por isso, o chamamos de “Política de Proteção” das entidades eclesiais – pelas razões que veremos adiante.
Há belas experiências em diversas partes do mundo, em que as instituições fizeram sérias revisões de seus processos institucionais a partir da elaboração dessas políticas de proteção. Também no Brasil, temos muitos exemplos de esforços pioneiros nessa direção. Mas, em linhas gerais, após quase seis anos desde a promulgação ad experimentum de VELM, já é possível fazer algumas constatações:
- A primeira é que, infelizmente, em deflagrado descumprimento de VELM, a maioria das entidades eclesiais no Brasil (dioceses e paróquias, ordens religiosas e congregações, unidades de ação social e colégios confessionais etc.) ainda não possuem suas políticas de proteção.- Como já sinalizado, não há uma harmonia conceitual entre os documentos produzidos pelas diversas instituições: protocolos, diretrizes, linhas-guia, manuais de conduta, procedimentos… é possível encontrar políticas de proteção com os títulos mais variados. E não há coerência sobre o que se entende exatamente por cada uma dessas definições.- Entidades internacionais de financiamento de projetos, como Adveniat (da Conferência Episcopal Alemã) e tantas outras que financiam projetos no Brasil, passaram a exigir das instituições eclesiásticas a construção de Políticas de Proteção para acesso aos recursos. Sem a devida conscientização e na urgência de atender à norma, não foram poucas as entidades que construíram textos apenas pro forma, para apresentar às agências de fomento, mas sem nenhuma incidência na vida da instituição.- Muitas políticas foram construídas por profissionais qualificados (advogados, canonistas, psicólogos, pedagogos etc., às vezes a preços altíssimos), mas sem uma metodologia de envolvimento dos membros da instituição. O resultado é uma Política de Proteção altamente elaborada, mas sem nenhuma aderência à vida da instituição e nenhuma adesão por parte de seus membros.- A pressa de atender à exigência de VELM também levou muitas instituições a adaptações apressadas e às vezes grosseiras de Políticas de Proteção de outras entidades. Nem é preciso detalhar a quantidade de problemas que isso gera: confusão de competências e responsabilidades, desprezo das singularidades de cada instituição, impossibilidade de uma efetivação verdadeira de uma Política de Proteção produzida para outra realidade institucional, confusão dos ordenamentos jurídicos próprios de cada instituição…
- Na esteira de uma abordagem predominantemente jurídico-canônica do tema dos abusos (conforme já dissemos em textos anteriores), muitas das políticas mais antigas centraram seus esforços na parte de protocolos a serem seguidos, sobretudo protocolos de intervenção em casos de abuso já perpetrados: como e a quem denunciar, como proceder, como investigar, como julgar etc. Nessas políticas, a prevenção e a reparação praticamente não existem.
Por tudo isso, dedicaremos as próximas semanas a uma abordagem mais demorada do tema “Políticas de Proteção”, buscando responder perguntas como: o que são, como se elaboram, que diretrizes devem ser observadas, qual seu impacto na vida das instituições eclesiásticas e que compromisso exigem de seus membros.
***
Ao longo da tratativa deste tema, pode ser que alguém sinta necessidade de falar, seja para contar experiências ou para tirar dúvidas. Se isso acontecer, você pode procurar a Comissão de Cuidado e Proteção ou o Serviço de Escuta da sua diocese, das congregações religiosas ou de outros organismos eclesiais. Ou pode escrever para joao.ferreira@clar.org para se informar melhor.Um abraço e até a próxima semana!
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