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13. Olhando mais de perto: “abusos”, “abuso de poder” e “abuso espiritual

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06.01.2025 | 14 minutos de leitura
Frei João F. Júnior - OFMCap
Evangelho do Cuidado
13. Olhando mais de perto: “abusos”, “abuso de poder” e “abuso espiritual

Desde o início desta coluna, temos utilizado termos como “abuso”, “ambientes eclesiais”, “cuidado e proteção”, “prevenção”, “política de proteção” e tantos outros. Em boa parte, o significado desses termos se pressupõe a partir da discussão ampla do tema dos abusos dentro e fora da Igreja, em diversos segmentos da sociedade civil. Em um trecho ou outro dos textos anteriores, cuidamos de aclarar algum significado mais específico. Mas é importante que nos detenhamos mais demoradamente diante de alguns desses termos, sobretudo considerando o sentido próprio que alguns desses conceitos podem assumir, bem como sua aplicabilidade específica na tratativa dos temas do abuso e da prevenção em ambientes eclesiais. A isso dedicaremos as reflexões das próximas semanas. 

Como ponto de partida utilizaremos o “Glossário de Termos” encontrado como anexo no “Marco Universal das Linhas Guia”, publicado pela Pontifícia Comissão pro Tutela Minorum em março de 20241, enriquecendo-o ou contrapondo-o com outros materiais, quando necessário. 

Abuso(s)

Como vimos, a expressão “abuso” não é original dos documentos eclesiásticos. Inicialmente, se utilizavam na Igreja os conceitos canônicos de “delito contra o sexto mandamento” e “solicitação em confissão” para se referir a essa realidade. Somente a partir da “Carta ao Povo de Deus” (2018) e seu esforço por desprivatizar a discussão dos âmbitos estritamente jurídicos, a denominação civil “abuso” passa a ser adotada também nos textos pontifícios . E já aparece ali com a tríade “abusos sexuais, de poder e de consciência”, contrariando a compreensão de “abuso” tão somente como “abuso sexual”. 

Na mesma linha dessa abertura semântica, o Glossário da Pontifícia Comissão distingue etariamente entre abuso de crianças e adolescentes, abuso de adultos e abuso de idosos; e tipologicamente entre abuso físico, abuso emocional, abuso de poder, abuso espiritual, abuso financeiro, abuso institucional e, finalmente, abuso sexual. Se muitas são as definições, muito mais numerosas serão as formas pelas quais se efetivam cada um desses tipos de abuso. E isso, por si só, já desafia qualquer tentativa de redução do “abuso” a “abuso sexual” e do “abuso sexual” a “abuso sexual contra crianças e adolescentes” em ambientes eclesiais. Vale a já repetida constatação do fenômeno do abuso como um constitutivo estrutural e estruturante de diversas relações, em seus diferentes meios e formas, nas múltiplas estruturas institucionais da Igreja Católica.

No que se refere às distinções etárias:

- Abuso de crianças e adolescentes. O Glossário adota a definição de abuso de crianças e adolescentes formulada pela Organização Mundial de Saúde (OMS): “todas as formas de maltrato físico ou emocional, abuso sexual, negligência, exploração comercial ou de outra natureza, que resultem em dano real ou potencial para a saúde, a sobrevivência, o desenvolvimento ou a dignidade da criança e do adolescente no contexto de uma relação de responsabilidade, confiança ou poder”. Interessante notar que a deflagração das múltiplas formas de abuso que podem ser cometidas contra uma criança ou um adolescente (físico, emocional, sexual, negligência, exploração etc.) se configura no seio de uma “relação de responsabilidade, confiança ou poder” que se exerce sobre ela/e. E daí decorre a gravidade do dano causado pelo ato abusivo, uma vez que fere a vítima em sua referência de autoridade, segurança, confiança, bem como em todo o afeto envolvido nessas relações, ao longo de um processo de estruturação e amadurecimento psíquico e emocional. 

- Abuso de adultos. Multiplicidade semelhante se encontra na definição do abuso cometido contra adultos: “tratamento inadequado de um adulto que resulta na probabilidade real e/ou potencial de causar dano físico ou emocional. O abuso pode se apresentar de muitas formas, tais como maltrato físico ou verbal, negligência, lesões, violação, práticas injustas, crimes, exploração, abuso sexual e outros tipos de agressão”. Cada país terá seu enquadramento legal para tratar essas distintas formas de abuso. No Brasil, figuras jurídicas como “dano moral” e “assédio moral”, “constrangimento” e “humilhação”, por exemplo, além de toda a taxonomia dos crimes de violência, se movem nesse horizonte. 

- Abuso de idosos: Na compreensão do abuso de idosos, pressupõem-se todas essas formas possíveis de abuso contra um adulto, mas com um acréscimo importante: “refere-se a um único ou repetido ato, à falta de uma ação apropriada, que ocorre dentro de qualquer relação em que exista uma expectativa de confiança e que causa dano ou angústia em uma pessoa idosa”. Ou seja, o abuso pode se dar por um ato abusivo, pela repetição sistemática desse ato abusivo ou pela negligência dos cuidados específicos que devem ser dirigidos a uma pessoa idosa3. E não se refere somente ao dano em si, mas ao potencial dano ou angústia, no seio de uma relação em que se espere cuidado e confiança – tal como na caracterização do abuso de crianças e adolescentes. 

Na tipologia dos abusos, o Glossário da Pontifícia Comissão pro Tutela Minorum também estabelece algumas referências importantes: 

- Abuso de poder: significa o abuso de posição, função ou dever para aproveitar-se do outro. Pode assumir muitas formas e incluir situações nas quais uma pessoa tem poder sobre a outra, em virtude de sua relação (por exemplo: empregador e empregado, professor e estudante, treinador e atleta, pai/tutor e criança, clérigo/religioso e fiel) e utiliza esse poder em seu benefício”. 

Embora o abuso sexual em ambientes eclesiais frequentemente envolva algum tipo de abuso de poder, esta forma de abuso não tem o aproveitamento sexual como único benefício possível. Note-se que o ponto de partida para esse tipo de abuso são as relações assimétricas, em razão do ofício, da posição ou da função exercida por alguns em detrimento de outros. 

Nesse sentido, é certo que algumas estruturas eclesiásticas serão mais propensas a posturas abusivas que outras, em razão da grande concentração de poder nas mãos de alguns indivíduos ou do modo monocrático como se exerce ali a autoridade. Mas é igualmente certo que muitas dessas assimetrias abissais e potencialmente abusivas são não apenas lenientemente toleradas pela instituição, mas culturalmente incentivadas em suas dinâmicas pastorais, deliberadamente consolidadas em seus ambientes formativos e sacramentalmente canonizadas em sua estrutura organizacional. A própria teologia do sacramento da Ordem, ao propor uma “diferenciação ontológica” (seja lá o que isso signifique) entre ministros ordenados e fiéis leigos, já instala a pedra de toque sobre a qual as relações assimétricas se desenvolverão nos ambientes pastorais. Estruturas formativas altamente hierarquizadas e separadas das comunidades eclesiais, como os seminários e os conventos, colaboram no engendramento de mentalidades elitistas, tanto em quem toma parte dessas estruturas quanto no povo que as vê desde fora, como uma vocação radicalmente separada e diferente do “comum dos fieis”. Por fim, a organização predominantemente monocrática do governo da Igreja em todos os níveis (a paróquia centrada no poder do pároco, a diocese centrada no poder do bispo, a Igreja Romana centrada no poder papal), relegando as estruturas de participação (conselhos, assembleias, sínodos…) a um papel secundário e consultivo, quando não figurativo e meramente formal, termina por cimentar uma cultura institucional de poder estruturalmente marcada pelo potencial abusivo. 

Essa cultura, legitimada em nível macro, se reproduz e se encarna nos moldes das relações entre ministros ordenados e o povo, entre bispos e seu presbitério, entre altos oficiais das cúrias e aqueles que deles dependem, entre líderes e membros de um movimento eclesial, entre fundadores carismáticos e os membros de institutos de vida apostólica, entre formadores e seminaristas etc. É verdade que a vida religiosa consagrada, quando alcança constituir dispositivos de autêntica vida comunitária, de colegialidade nas decisões e de tempo determinado e alternância de pessoas para os serviços de autoridade, consegue atenuar os riscos estruturais do abuso de poder, mas não os mitiga completamente. O voto de obediência dos/as religiosos/as e os modos como historicamente ele foi compreendido e praticado já constituem, por si só, um capítulo à parte dessa problemática. 

- Abuso espiritual:é um tipo de abuso que utiliza as crenças religiosas e a fé de uma pessoa para lhe causar dano. Pode ocorrer como uma experiência secundária de abuso quando é perpetrado por alguém em uma posição de autoridade espiritual e confiança dentro da Igreja e pode ter impacto negativo sobre a espiritualidade de uma pessoa”. 

O Glossário da Pontifícia Comissão não menciona o chamado “abuso de consciência” e essa omissão pode ter, pelo menos, duas razões. A primeira é evitar o termo “consciência”, muito controvertido nas discussões eclesiais4. A segunda, mais afeita ao nosso tema, talvez seja evitar assumir uma posição na longa discussão conceitual sobre os limites entre “abuso de consciência”, “abuso de poder” e “abuso espiritual”. Nas diversas abordagens sobre o tema, há quem admita certa interpenetração entre esses tipos de abuso e a impossibilidade de distingui-los completamente. Outros pretendem delimitar ao menos alguns elementos fundamentalmente distintos, que permitam caracterizar cada qual separadamente. E uma conclusão sobre essa discussão parece longe do fim5

Mais importante, porém, do que essa discussão conceitual é o coro de vozes das vítimas de abusos em ambientes eclesiais, segundo o qual a abordagem que finalmente conduz ao abuso passa não raramente por uma “manipulação de consciência” (“eu sei o que você quer”) que envolve também “manipulação religiosa” (“eu sei o que Deus quer de você”). 

Em outras palavras, a abordagem do abusador em ambientes eclesiais não envolve, num primeiro momento, recurso à violência ou o apelo explícito ao pretendido abuso sexual, por exemplo6. Em vez disso, o potencial abusador recorre a técnicas de sedução, de isolamento e controle da vítima, de uma progressiva erotização da relação que passa também pela normalização de tocamentos e de invasão da privacidade, além de uma aproximação para conquista da confiança do entorno familiar… e nesse contexto, ocorre frequentemente que a vítima adentra o cenário do abuso sem percebê-lo como abusivo – ao menos, num primeiro momento7. Nos relatos, aparecem afirmações das vítimas como: “ele/a me convenceu de que eu era especial”; “ele/a não vinha ao meu encontro sem um presente”; “ele/a me pedia segredo, pois dizia que ninguém compreenderia a natureza tão íntima de nossa relação”; “ele/a me disse que eu era seu/sua preferido/a”… Considerando o papel que o clérigo/religioso/líder tem no grupo ou na comunidade, não é difícil compreender o alcance dessas afirmações. E, na conquista da confiança, o abusador manipula de tal maneira a vítima que ela abandona a crítica e, crendo tratar-se de um consentimento seu, legítimo e deliberado, cede. 

Dando um passo mais, Celis descreve a passagem do abuso de consciência ao abuso espiritual. O trecho é longo, mas muito elucidativo:

Nesses casos, ocorria que os agressores tinham muito poder na instituição e na vida das vítimas; por exemplo, em muitos casos, como acompanhantes espirituais, conheciam grande parte da vida das vítimas, que dependiam emocionalmente de sua orientação; em outros casos, seu poder se devia ao fato de que tinham um papel superior na instituição em que as vítimas estavam se formando. Nesse sentido, se deu uma relação de progressiva sexualização ou erotização do acompanhamento espiritual […]. No caso das mulheres, elas eram, noviças no momento da agressão e conheciam o agressor no papel de seu orientador ou acompanhante espiritual, sendo uma pessoa com papel muito relevante dentro da instituição e muito admirada. Elas, porém, estavam num lugar de vulnerabilidade, distantes de suas famílias, no convento ou em retiros de silêncio. Nesses casos, apareceu o aproveitamento dessa vulnerabilidade e a dinâmica abusiva sexual foi estabelecida como uma suposta expressão de amor e espiritualidade. A dinâmica dá conta da manipulação espiritual no fato de que o agressor faz parecer à vítima que a relação estabelecida é parte do amor de Deus, como uma relação esponsal, tergiversando a situação do abuso sexual como um encontro com Deus. O vínculo prévio estabelecido entre vítima e agressor foi descrito por uma delas como uma relação de “pai-filha”; por outra, como de “pares-irmãos”. Seja como for, gerou-se em ambos os casos uma confusão e ambas tenderam a pensar que o sacerdote havia se apaixonado por elas e que a relação adquiria ares de flerte e sedução erótica8

Sem pretender pôr fim à discussão entre os limites de “abuso de poder”, “abuso de consciência” e “abuso espiritual”, a definição do Glossário é assertiva ao caracterizar o “abuso espiritual” como um recurso a elementos da linguagem, das práticas e da fé religiosas para concretização do abuso. “Tergiversando a linguagem religiosa”, como afirma Celis, o agressor opera uma manipulação de consciência com alcance religioso, valendo-se inclusive de sua autoridade institucional, moral e espiritual. Nesse sentido, o “abuso espiritual” pode ocorrer paralelo ao “abuso de poder” e ao “abuso de consciência”, guardando diante deles essa singularidade. Seu dano sobre a confiança religiosa e a espiritualidade da vítima, ao lado dos outros danos físicos e psicológicos que advêm de todo abuso, são certamente catastróficos. 

Novamente, o voto de obediência e os modos como historicamente ele foi compreendido e praticado, como lugares de exercício do poder em foro externo e interno do indivíduo, constituem um elemento estrutural de risco no que se refere ao abuso de poder e ao abuso espiritual.
_________________
1 Disponível em: https://www.tutelaminorum.org/universal-guidelines-framework/, em inglês. Está publicada também uma tradução de trabalho, não oficial, em espanhol. E pretende-se que uma tradução similar seja divulgada em português. Vale notar que, nas próprias palavras do documento, “o Glossário do Marco Universal das Linhas Guia não tem força legal e está destinado tão somente a servir como uma ferramenta de referência para esse Marco”. Porém, uma vez que nem a “Carta ao Povo de Deus” (2018), nem “Vos Estis Lux Mundi” (2019 | 2023) e nem qualquer outro documento magisterial apresenta essas definições, o Marco Universal para as Linhas Guia é, neste momento e com todos os seus limites, a referência eclesial mais autorizada para essa consulta terminológica. Mais adiante, teremos oportunidade de lançar um olhar a esse importante documento da Pontifícia Comissão pro Tutela Minorum. Por ora, a versão em espanhol pode ser solicitada pelo email: joao.ferreira@clar.org.
 2Note-se que a denominação “abuso”, que já ganhou cidadania nos textos magisteriais, nunca foi incorporada pelo Código de Direito Canônico, nem mesmo em sua reforma do Direito Penal, em 2021. 
 3 No Brasil, o Estatuto da Pessoa Idosa delimita bem as responsabilidades por atos ou omissões diante dos direitos dos idosos. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.741.htm.
 4 O termo “consciência” ganhou cidadania nos textos magisteriais a partir do Concilio Vaticano II, sobretudo da Constituição Pastoral Gaudium et Spes (cf. por ex.  GS 3. 16. 17. 19…). E isso era uma tentativa de pôr fim a uma velha contenda entre a primazia da verdade revelada e os riscos da liberdade de consciência (condenados pelo Syllabus Errorum de Pio IX, em 1864, por exemplo). Por outro lado, “consciência” nunca se tornou uma categoria canônica. Em vez disso, o Código de Direito Canônico utiliza uma das significações possíveis de “foro interno”, no intento de torná-lo mais “mensurável” que uma categoria tão subjetiva quanto “consciência”. Uma abordagem interessante sobre as discussões teológico-eclesiásticas sobre a categoria “consciência” pode ser encontrada no nº 124 / v. 44 da revista Perspectiva Teológica, disponível em: https://www.faje.edu.br/periodicos/index.php/perspectiva/article/view/2895. 
 5 Cf., por exemplo: https://rayhannezago.com/ja-nao-vos-chamo-servos-abusos-de-poder-e-consciencia-na-vida-consagrada/; ou: https://www.ihu.unisinos.br/categorias/630517-como-evitar-o-abuso-de-consciencia-e-de-poder-artigo-de-enzo-bianchi; ou ainda: https://ihu.unisinos.br/categorias/611817-jose-rodriguez-carballo-o-vaticano-esta-investigando-uma-dezena-de-fundadores-por-abusos-ou-gestao-economica; bem como: https://franciscanos.pt/o-abuso-espiritual/; e: https://rayhannezago.com/abuso-de-consciencia/. 
 6 Disso falávamos no texto nº 2, “Desmontando preconceitos”. 
 7 Uma descrição interessante dessas “estratégias de vitimização” pode ser encontrada em: CELIS, Ana María (org). El Abuso Sexual en Contextos Eclesiales: Análisis del caso chileno, aprendizajes y desafíos. Madrid: PPC Editorial, 2024. pp. 63ss.
 8 Ibid. p. 82.


***
Ao longo da tratativa deste tema, pode ser que alguém sinta necessidade de falar, seja para contar experiências ou para tirar dúvidas. Se isso acontecer, você pode procurar a Comissão de Cuidado e Proteção ou o Serviço de Escuta da sua diocese, das congregações religiosas ou de outros organismos eclesiais. Ou pode escrever para joao.ferreira@clar.org para se informar melhor. 
Um abraço e até a próxima semana!


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