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20. Vida, luz e palavra da fé (Mt9,18-38)

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17.04.2015 | 13 minutos de leitura
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Curso Bíblico
20. Vida, luz e palavra da fé (Mt9,18-38)

9


18 Enquanto Jesus estava falando, um chefe aproximou-se, prostrou-se diante dele e disse:“Minha filha faleceu agora mesmo; mas vem impor a mão sobre ela, e viverá”.
19 Jesus levantou-se e o acompanhou, junto com os discípulos.
20 Nisto, uma mulher que havia doze anos sofria de hemorragias veio por trás dele e tocou na franja de seu manto.
21 Ela pensava consigo: “Se eu conseguir ao menos tocar no seu manto, ficarei curada”.
22 Jesus voltou-se e, ao vê-la, disse:“Coragem, filha! A tua fé te salvou”. E a mulher ficou curada a partir daquele instante.
23Chegando à casa do chefe, Jesus viu os tocadores de flauta e a multidão agitada,
24 e disse:“Retirai-vos! A menina não morreu; ela dorme”. Mas eles zombavam dele.
25 Afastada a multidão, ele entrou, pegou a menina pela mão, e ela se levantou.
26 E a notícia disso espalhou-se por toda aquela região.
27 Partindo Jesus dali, dois cegos o seguiram, gritando: “Tem compaixão de nós, filho de Davi!”.
28 Quando entrou em casa, os cegos se aproximaram dele, e Jesus lhes perguntou: “Acreditais que eu posso fazer isso?” Eles responderam: “Sim, Senhor”.
29 Então tocou nos olhos deles,dizendo: “Faça-se conforme a vossa fé”.
30 E os olhos deles se abriram. Jesus os advertiu:“Tomai cuidado para que ninguém fique sabendo”.
31 Mas eles saíram e espalharam sua fama por toda aquela região.
32 Enquanto os cegos estavam saindo, as pessoas trouxeram a Jesus um possesso mudo.
33Expulso o demônio, o mudo começou a falar. As multidões ficaram admiradas e diziam: “Nunca se viu coisa igual em Israel”.
34 Os fariseus, porém, diziam: “É pelo chefe dos demônios que ele expulsa os demônios”.
35 Jesus começou a percorrer todas as cidades e povoados, ensinando em suas sinagogas,proclamando a Boa Nova do Reino e curando todo tipo de doença e de enfermidade.
36 Ao ver as multidões, Jesus encheu-se de compaixão por elas, porque estavam cansadas e abatidas, como ovelhas que não têm pastor. Então disse aos discípulos:
37 “A colheita é grande, mas os trabalhadores são poucos.
38 Pedi, pois, ao Senhor da colheita que envie trabalhadores para sua colheita!”.
Situando...

Estamos no último bloco da parte narrativa que precede o Sermão Missionário. Ou seja, são as últimas atitudes de Jesus que preparam os ouvidos do discípulo às palavras que estão por vir. Nessa parte derradeira, Mt intercala textos de Mc e da Fonte Q, conforme indicados em cada perícope.


Fé que dá vida


Mt retorna ao cap. 5 de Mc, logo depois do possesso de Gerasa, à perícope da filha de Jairo e da mulher com hemorragias (Mc 5,21-43). Embora resumido, o texto conserva a estrutura típica de Mc: a “inclusão”, que consiste em iniciar a narrativa (A), interrompê-la com outra (B) e retomá-la para concluir (A). Conforme vimos nos estudos de Mc (cf. Estudo 17 do Evangelho de Marcos, p. ex.), essa estrutura tem dupla finalidade: facilitar a memorização das duas narrativas, mas sobretudo guardar certa relação entre elas, constituindo-as uma só perícope. Neste caso, a narração principia pela morte da filha do “chefe” (vv. 18-19), passa à mulher com hemorragias (vv. 20-22) e volta à filha do “chefe” (vv.23-26). Note-se que Mateus não nomeia o pai na menina, que em Mc se chama Jairo.


Em Mc, o texto iniciava com Jesus “atravessando o lago” e os acontecimentos se dão “à beira mar” (Mc 5,21). Na cena seguinte, Jesus está na sua terra, escandalizando seus compatriotas com seu ensinamento (Mc 6,1s). A última referência de Mt era que Jesus está em Cafarnaum, o que não contraria Mc. Mas não é a geografia que mais importa. Mc faz questão de iniciar com uma “travessia” insinuando o caráter pascal do texto (morte-vida). Ao retirar essa referência e deslocar o texto, Mt modifica esse significado primário.


“Enquanto Jesus falava” (v. 18), numa imediatez que bem poderia ser de Mc, um “chefe” (da sinagoga, como em Mc?) se aproxima de Jesus, comunicando a morte da filha. Em Mc, a menina está ainda doente e, só quando Jesus estiver já a caminho, lhe chegará a notícia da morte (cf. Mc 5,35). O pai manifesta a Jesus uma fé incomum: prostrado, numa reverência quase cúltica, pede auxílio para a menina que já morreu, mas na certeza de que, se Jesus lhe impuser as mãos, viverá. Jesus faz silêncio, mas sua resposta à fé do pai esperançoso se expressa na prontidão com que “se levanta e o acompanha, junto com os discípulos” (v. 19). Um contraste interessante: a menina está morta (sono, decadência); o pai está prostrado (deitado, mas em reverência e fé) e Jesus se põe de pé (vida, ressurreição), convidando todos a também se levantarem e se colocarem a caminho com ele. Talvez, seja mesmo assim, também conosco: estamos mortos enquanto distantes do Mestre. Mas, uma vez diante dele, em profunda reverência e fé esperançosa, seremos convidados por ele mesmo, o Ressuscitado (levantado), a nos levantarmos e o seguirmos de novo.


Enquanto está a caminho da casa do homem, aproxima-se de Jesus uma mulher doente. Há doze anos, sofre de hemorragias (v. 20) – o que é bastante emblemático: doze anos é a idade da maioridade entre os judeus (lembremo-nos de Jesus aos doze anos, no Templo, em Lc, p. ex.); em Mc, a menina morta também tem doze anos, o que liga ainda mais as duas narrativas; o sangue não é apenas o símbolo, mas é a própria vida que, nesse caso, se esvai... Dessa mulher anônima, poderíamos dizer: já há muito tempo, o tempo de uma vida inteira, um ciclo fechado de tempo, a força de viver lhe escapa. Mas dela sabemos algo mais. Embora não tenha se aproximado de Jesus pela frente e se prostrado, como o pai da menina morta; embora tenha preferido se achegar por trás, tocando apenas a franja do manto, o que a move é o mesmo que movia o pai esperançoso: a fé. Pois ela trazia consigo a convicção de que bastaria um toque em Jesus para que seu sangramento estancasse (v. 21).


Mt não narra a cena do constrangimento da mulher, ao Jesus se voltar à procura de “quem o tocou”, pois “uma força saiu dele” (cf. Mc 5,30). Aqui, Jesus apenas “se volta” e vê a mulher, reconhecendo nesse “ver” a maior das virtudes dela: “tua fé te salvou” (v. 22). E Mt atesta a cura da mulher, “a partir daquele instante” (v. 23). De qual instante: do toque no manto de Jesus, do olhar do Mestre ou de suas palavras? Talvez, de tudo isso. Pois a fé já a movia desde quando decidiu se aproximar de Jesus; a mesma fé Jesus reconheceu ao olhar para ela e confirmou com suas palavras. Um encontro apenas, mas que, amoldurado pela fé, foi capaz de estancar para sempre a fuga da vida que lhe enfraquecia, havia doze anos.


Finalmente, Jesus e os discípulos chegam à casa do “chefe” (v. 23). Lá, a cena do velório já está montada: tocadores de flauta e agitação da multidão. Se o homem era alguém importante da sinagoga, é compreensível que a morte da filha desperte tanta agitação. Jesus os repreende, afirmando que a menina não morreu, mas dorme (v. 24). Já sabemos: morte e sono, assim como ressurreição e levantamento, são semanticamente aparentados. Em todo caso, Jesus e essa multidão agitada veem coisas diferentes. Para esses, a morte é motivo de agitação e lamento; para Jesus, um sono breve que não tarda a terminar. Posta para fora a multidão, Jesus entrou onde a menina estava (sozinho, ao que parece, e não com os discípulos, como em Mc), “tomou-a pela mão e ela se levantou” – o mesmo verbo da ressurreição (v. 25). Também não há a menção da ordem de Jesus para que “dessem de comer à menina” ou que ela “começou a andar, pois já tinha doze anos” (Mc 5,41-42). Mas o final é muito familiar a Mc: “a notícia se espalhou por toda a região” (v. 26).


Que o discípulo não duvide, portanto: ao ser enviado por Jesus, é portador de uma palavra de vida. Seja dirigida a alguém cuja vida lhe escapa e as forças lhe fogem por desesperança, cansaço ou tristeza – mesmo que já há muitos anos; seja dirigida a outra que mal começou a viver e já experimentou a angústia abissal da morte; seja a quem for: o evangelho é força para viver e, uma vez descoberto, pode se tornar fonte que jorra abundantemente e sacia com largueza. Não há sangramento (esvanecimento, decadência) ou sono (abandono, morte) que não possa ser revertido pela palavra de Jesus, levada com cuidado pelo discípulo. Para tanto, basta que essa palavra seja acolhida com fé. E que o discípulo não se engane ao querer julgar, pois a fé pode brotar em todos os corações, tanto naqueles que se aproximam com a dignidade da adoração, quanto naqueles a quem, muitas vezes, restou apenas a marginalidade do embaraço e da vergonha. Todos são merecedores da mesma palavra de vida.


Fé que faz ver e anunciar

A seguir, Mateus insere dois textos com a mesma temática da fé: um próprio do seu Evangelho (vv. 27-31) e outro possivelmente da Fonte Q, pois o encontramos também no Evangelho de Lucas (Lc 11,14-15).


No primeiro, Jesus sai da casa do “chefe” e passa a ser seguido por dois cegos, que imploram compaixão, chamando Jesus de “Filho de Davi” (v. 27). Ora, “Filho de Davi” é um título messiânico. Nele, os cegos afirmam que Jesus é o descendente de Davi que, conforme as Escrituras, não só perpetuaria o Reino de seu pai, mas inauguraria um Reino escatológico, que não tem mais fim. Não é exatamente isso que Mateus deseja provar com seu Evangelho? E não é exatamente isso que as autoridades dos judeus negam e, mesmo com todo o estudo da Escritura, são incapazes de reconhecer em Jesus o Messias prometido aos antigos? Isso faz pensar até que ponto esses homens são realmente “cegos”. Pois, do fundo de sua cegueira, ainda “seguem Jesus até em casa” (v. 28), confessando aos gritos quem ele realmente é...


Nos Evangelhos, as curas de Jesus conservam certa constante: quem não o segue é coxo, quem não ouve suas palavras é surdo, quem não anuncia o evangelho é mudo e quem não o reconhece é cego, por exemplo. Nesse sentido, esses dois cegos já demonstraram ver com clareza pelos olhos da fé – muito mais do que as autoridades e as multidões. Por isso, não resta senão abrir-lhes os olhos. Em casa (na intimidade do discipulado, diria Marcos), Jesus lhes dá oportunidade de professar a fé: “credes em mim?”; ao que respondem prontamente, com outro título messiânico: “sim, Senhor”. E Jesus confirma, tocando-lhes os olhos e sentenciando que “se cumpra conforme a fé” que confessaram (v. 29).


Há semelhanças entre este texto de Mt e outras narrativas de Mc, seja na confissão de fé (“se queres, tens o poder de me curar” – Mc 1,41), seja na invocação de Jesus como “Filho de Davi” (Mc 10,47-48), seja no final da narrativa, em que Jesus ordena inutilmente o segredo messiânico (v. 30), sempre desobedecido pelos curados (v. 31). Em nenhum texto, porém, os cegos são dois. Sinal de que a tônica da perícope de Mt é mesmo a fé e seu testemunho.


No segundo texto, está diante de Jesus um possesso mudo (v. 32). Tudo acontece muito rápido, ao modo de Mc, pois os cegos ainda estão saindo. A série ininterrupta de curas também faz lembrar o “Dia de Cafarnaum” de Mc 1–2. Se o homem é mudo, está possuído por um “espírito mudo” ou um “demônio de mudez”. Também como em Mc, os demônios são aqui impedimentos do Reino, que precisam ser expulsos cada vez que o Evangelho é anunciado (cf. Estudo 12 do Evangelho de Marcos). A cura (v. 33), porém, parece um pretexto para que o evangelista insira, após a “admiração da multidão” – típica de Mc – a discussão sobre a origem da autoridade de Jesus. Para os fariseus, que Mt considera os mestres da escritura e da observância da pureza e que se utilizam dessa docência para impor pesados fardos nas costas dos simples (cf. Mt23,4), não há dúvida: o poder de Jesus vem do chefe dos demônios (v. 34). A discussão não é desenvolvida por Mt, mas se encontra em Lc 11,14ss – o que faz pensar que o texto provém da Fonte Q. Em Lc, o pretexto da discussão é idêntico, ao que Jesus proporá a parábola do reino dividido contra si mesmo, para finalmente concluir: sua autoridade provém de Deus, pelo Espírito, e o Reino de Deus já chegou (Lc 11,20). Em Mt, com o corte da perícope na incompreensão dos fariseus, a lição parece semelhante à da refeição com os pecadores, na casa de Mateus (cf. Estudo 19): a boa notícia de Jesus não encontrará somente concordâncias, mas severas oposições. Foi assim com o Mestre e será assim com os discípulos.


Fé que faz partir

 Na conclusão de Mt a essa parte narrativa, é possível reconhecer alguns textos de Mc. O v. 35, que relata Jesus percorrendo todas as cidades, pregando o evangelho e curando os doentes, se assemelha muito à conclusão do “Dia de Cafarnaum” (Mc 3,7-12). Coerentemente, está presente nesse versículo o binômio “pregação do Reino – expulsão do anti-Reino” (demônios, doenças), que atravessa Mc 1–3. É interessante que esse fechamento, em Mc, precede imediatamente a escolha dos Doze discípulos, do mesmo modo que em Mt – sinal de que o plano do Evangelho é de fato muito bem elaborado.


O v. 36 também parece tomado de Mc, um pouco mais adiante. Pois é lá, depois que os Doze retornam da missão, introduzindo a perícope dos cinco pães e dois peixes, que Jesus “tem compaixão da multidão”, como de “ovelhas sem pastor” (Mc 6,34). Mas os vv. 37-38 possivelmente pertencem à Fonte Q, pois os encontramos em Lc 10,2-3, quando Jesus envia os 72 discípulos em missão.


De todo modo, é um final apropriado, pois ao mesmo tempo fecha a narração das curas – efeitos da pregação de Jesus, a ser imitada pelos discípulos – e introduz o ambiente missionário, próprio ao discurso que logo iniciaremos.


* * *


A fé é dom que pode brotar em todo coração. Mesmo daqueles mais improváveis, dos quais não esperaríamos mais nada, a não ser cegueira e morte. Mesmo lá, o Espírito opera secretamente e pode nos surpreender. Como discípulos fiéis ao Mestre, espalhemos com generosidade sua palavra de vida, confiando ao segredo dos corações o seu fruto.







Estudo anterior:   19. Gratuidade, escândalo e novidade do evangelho (Mt9,1-17)

Próximo estudo:     21. Quando partires... (Mt10, 1-25)
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