8. O Batista, o Reino, a Notícia, o Chamado (Mc 1,14-20)


1
14 Depois que João foi preso, Jesus veio para a Galileia, proclamando a Boa Nova de Deus:15 “Completou-se o tempo, e o Reino de Deus está próximo. Convertei-vos e crede na Boa-Nova”.16 Caminhando à beira do mar da Galileia, Jesus viu Simão e o irmão deste, André, lançando as redes ao mar, pois eram pescadores. 17 Então disse-lhes: “Segui-me, e eu farei de vós pescadores de homens”. 18 E eles, imediatamente, deixaram as redes e o seguiram. 19 Prosseguindo um pouco adiante, viu também Tiago, filho de Zebedeu, e seu irmão, João, consertando as redes no barco. 20 Imediatamente, Jesus os chamou. E eles, deixando o pai Zebedeu no barco com os empregados, puseram-se a seguir Jesus.
Depois de João
Conforme nosso estudo anterior, o Evangelho de Marcos começa com uma demarcação literário-temporal, segundo a qual Jesus inicia sua atividade “depois que João foi preso” (v. 14), cumprindo as palavras do próprio Batista: “Depois de mim vem aquele que é mais forte do que eu” (v. 7). Mais do que histórica, essa marcação insinua que, por um lado, a atividade de Jesus, embora preparada pela de João, não se confunde com ela e dela independe; por outro, que João Batista foi o último dos profetas da Antiga Aliança, que Jesus plenificaria. Mais tarde, segundo Mc, Jesus dirá que João cumpriu a antiga fé dos fariseus, segundo a qual Elias voltaria como precursor do Messias (cf. Mc 9,11-13).
O Reino do evangelho[1]
As primeiras palavras de Jesus em Mc já explicitam a profunda novidade de sua pregação: o tempo esgotado e o Reino que desponta (v. 15). Há quem defenda, aliás, uma tradução diferente do texto grego: “o tempo se esgotou (ou expirou), o Reino (ou reinado) de Deus é chegado”. Afinal, se o tempo se esgotou, não há mais o que esperar e o Reino, mais que próximo, já está às portas, como o sol do amanhecer, na alvorada de novos tempos.
“Completou-se o tempo”. Toda a promessa das Escrituras e a expectativa do Messias encontram, já agora, seu cumprimento – visto que, para Mc, Jesus é o Messias. Não há mais razão para esperar ou para supor que o Reino de Deus seja outra coisa senão a proposta que Jesus faz, já agora. “O Reino de Deus chegou”. Tampouco para depois da morte se deve guardá-lo, pois o Reino é dom para esta vida. É o governo de Deus, sua presença amiga que restaura e anima nossa vida neste mundo. Deixar Deus reinar é a proposta de Jesus. Como ele o faz? Simples, Marcos vai mostrar isso em todo o seu Evangelho. É no desejo de servir, de ser o menor, de fazer o amor acontecer que o Reino de Deus se torna presente. Marcos, que insiste constantemente que Jesus é o messias inesperado, mostra que o Reino não é fácil de acolher, pois exige mudança de paradigmas. Do maior ao menor, do glorioso ao servo, do desejo de salvar a vida à disposição de entregá-la. Jesus faz o Reino de Deus acontecer, pois Deus reina na sua própria vida. E começando por sua vida que é governada pelo Pai, mostra-nos como vale a pena deixá-lo governar a nossa. Alguns questionam se a expressão “Reino de Deus” é autenticamente jesuânica. Sabemos que ela pertence à literatura apocalíptica, que muito deve ter influenciado Jesus. Se a expressão tem sua paternidade em Jesus, não sabemos. Mas sabemos – nós que cremos – que, nele, ela ganha sentido, expressão, força, plenitude.
O evangelho do Reino
“Evangelho” (euaggelion: eu - bom, belo; aggelion - notícia, mensagem) é, originalmente, uma palavra grega de uso civil, referida aos anúncios cotidianos de notícias boas. A tradução grega das Escrituras Judaicas (Tradução dos LXX ou ‘Septuaginta’) a utiliza no mesmo sentido. Somente no Segundo Isaías (capítulos 40 a 55) e nos escritos por ele influenciados, encontramo-la com sentido religioso: o anúncio do Messias que vem, da esperança em tempos de desespero e do refrigério em tempos de sofrimento – essa é a boa notícia.
Ao que parece, Paulo resgata esse sentido religioso e passa a aplicar “evangelho” àquela que segundo ele, seria a melhor de todas as notícias: a “Graça” – ou seja: a salvação que vem por Jesus é oferecida a todos e gratuitamente, sem distinções, merecimentos ou conquistas sacrificadas. Em outras palavras, na gratuidade da salvação para todos consistiria, para Paulo, o evangelho de Jesus. Os Evangelhos Sinóticos, sobretudo Lc, serão muito influenciados por essa compreensão paulina, até que, nos Atos dos Apóstolos, o evangelho anunciado é Cristo mesmo, feito Palavra. A partir daí, Jesus Cristo não é só o anunciador do evangelho, mas o conteúdo do evangelho anunciado pelos discípulos. Toda sua vida, com suas palavras e seus gestos, como também sua morte, vivida como entrega e oblação, são anúncio encarnado da boa notícia pregada.
É preciso, pois, crer nessa notícia boa, a melhor de todas: o Reino de Deus chegou. Isso é verdadeiro evangelho, verdadeira boa notícia na qual, até hoje, nós mesmos, às vezes, relutamos em acreditar. Basta um olhar atento para constatar se realmente cremos que o Reino de Deus chegou ou se ainda continuamos a esperar... A razão? É preciso se converter para acreditar nessa boa notícia (v.15), tão inaudita que é. E, crendo, continuar se convertendo para não desacreditar. A fé no evangelho, na salvação gratuita oferecida a todos, desaponta a muitos que gostariam de um Deus que favorecesse a uns e deserdasse a outros. O evangelho significa a implosão de nossos códigos de distinção de pessoas, mesmo e sobretudo os privilégios religiosos dos “melhores”, mais justos, mais puros ou mais santos.
O chamado do evangelho
Jesus não só pregou a melhor das notícias, mas a encarnou na própria vida e a ensinou aos seus. Tanto que, ditas suas palavras inaugurais, se põe a praticá-las. Dirige-se não aos centros dos maiores e melhores, mas à suspeita e má afamada Galileia (v.16). E lá, não procura pelos entendidos da Escritura nas sinagogas, mas pelos mestres da vida sofrida e incerta: os pescadores. Não desmerece seu saber precioso, nem se julga soberbamente frente a eles, mas, fiel à notícia que lhes pretende comunicar, parte da vida deles e lhes promete mais – serão “pescadores de gente” (v.17). Um chamado assim tão respeitoso, tão coerente se torna irresistível. Resta largar tudo e segui-lo (v. 18). Mais adiante, Jesus continua a “ver” (v. 16.19) e de seu olhar não escapa a acura de quem conserta as redes – do mar e da vida. A esses, dirige o mesmo chamado, com igual resposta. E esses homens, mal saídos da beira do mar e dos afazeres familiares, já se tornam discípulos, pois “puseram-se a seguir Jesus” (v. 20). Como? O mestre já lhes ensinou alguma lição? Sim, o modo como os chamou já é sinal do evangelho que lhes continuará a ensinar, pela própria vida.
* * *
O Reino de Deus chegou, não é preciso mais esperar. Mas é preciso se converter para conseguir crer nessa inusitada boa notícia, que não é tanto uma palavra encantadora, mas o próprio Senhor que nos convida a, como ele, encarnar o amor em nossa maneira de pensar, falar, agir e esperar. A nós também dirige o mesmo chamado que àqueles da beira da praia, assim como também nos envia a propagar esse mesmo chamado, em seu nome.
[1] Conforme já indicado, utilizaremos “evangelho” para nos referirmos à “boa nova” de Jesus e “Evangelho” para os textos que, consequentemente, levam esse nome.
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