20. Serviços de Proteção (I)
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17.03.2025 | 6 minutos de leitura

Evangelho do Cuidado

“…eu era estrangeiro e me recebestes em casa,
estava nu e me vestistes…”
(Mt 25,35-36)
Tendo tratado o tema das Políticas de Proteção (textos 16 a 19), passamos agora à estrutura institucional que opera essas Políticas, cuidando por sua implementação, execução e monitoramento: o Serviço de Proteção.
Orginalmente, os Serviços de Proteção foram previstos por Vos Estis Lux Mundi (2019 | 2023):
Art. 2 – Recepção das denúncias e proteção dos dados§ 1. Tendo em conta as indicações eventualmente assumidas pelas respetivas Conferências Episcopais, pelos Sínodos dos Bispos das Igrejas Patriarcais e das Igrejas Arquiepiscopais Maiores, ou pelos Conselhos dos Hierarcas das Igrejas Metropolitas sui iuris, as Dioceses ou as Eparquias devem dispor, individualmente ou em conjunto, de organismos ou serviços facilmente acessíveis ao público para a recepção das denúncias. É a tais organismos ou serviços eclesiásticos que se devem apresentar as denúncias (grifos nossos).§ 2. As informações a que alude este artigo são tuteladas e tratadas de forma a garantir a sua segurança, integridade e confidencialidade nos termos dos cânones 471-2ºCIC e 244-§ 2, 2ºCCEO.
Vale sempre lembrar o problema ainda vigente no que se refere às traduções dos documentos eclesiásticos ao português do Brasil1: “denúncia” aqui se refere à notificação ou comunicação de um abuso cometido em ambiente eclesial, apresentada às próprias estruturas da Igreja Católica. Essa comunicação pode ser feita de forma oral ou escrita, ainda que não contenha indícios conclusivos sobre o delito reportado. Difere, por exemplo, da “denúncia” apresentada ao Poder Judiciário pelo Ministério Público ou pelos cidadãos aos diversos canais civis de apresentação de delitos e violações.
E vale também notar que o Código de Direito Canônico (1983) estabelece que essas notificações devem, de maneira geral, ser dirigidas ao Ordinário (bispo diocesano, superior maior ou seu equivalente): “Quando o Ordinário tiver notícia, ao menos verosímil, de um delito, inquira cautelosamente, por si mesmo ou por meio de pessoa idónea, sobre os factos e circunstâncias e acerca da imputabilidade, a não ser que tal inquirição pareça de todo supérflua” (CDC, can. 1717). No caso dos delitos de abuso, porém, VELM interpõe o Serviço de Proteção: “É a tais organismos ou serviços eclesiásticos que se devem apresentar as denúncias”. Isso não significa que o Ordinário esteja proibido de receber diretamente as notificações, nem que essas comunicações não lhe possam chegar por outras pessoas ou outros canais (muito menos que o Ordinário não possa ou não deva agir caso a comunicação lhe chegue por outras vias). Mas, após tantos anos de acobertamento sistemático dos abusos por parte das autoridades eclesiásticas, interpor um serviço eclesial como canal mais adequado para recepção das notificações não deixa de ser uma providência importante. Supõe-se que após o atendimento da suposta vítima, o próprio Serviço de Proteção elaborará a comunicação formal e a apresentará ao Ordinário. E o Ordinário, tendo-a recebido do Serviço de Proteção, deve-lhe prestar contas do tratamento dado às informações recebidas: arquivamento, abertura de investigação prévia, aplicação de medidas cautelares etc. Ou seja, a interposição do Serviço de Proteção nas comunicações de abuso é uma medida preventiva real de transparência contra as práticas sistemáticas e reiteradas de acobertamento e silenciamento, sobretudo por parte dos Ordinários, mas também com a cumplicidade dos diversos atores do ambiente eclesial.
Observe-se que o §2 aponta para a necessidade de “segurança, integridade e confidencialidade” das informações prestadas ao Serviço de Proteção. Isso se aplica, com certeza, à identidade e à boa fama da pessoa contra quem se dirige a notificação, quer dizer, ao/à suposto/a autor/a do abuso. Afinal, ninguém pode ser considerado culpado antes do justo processo. Mas se aplica também (talvez, sobretudo) à pessoa que faz a notificação, seja ela a própria suposta vítima ou outra pessoa. Pois pode acontecer (e frequentemente acontece) que o notificante deseje manter sua identidade em sigilo, às vezes por um tempo, às vezes permanentemente, seja por medo, seja por outra razão. E VELM garante a essa pessoa o direito à confidencialidade de seus dados – inclusive diante do Ordinário. Ou seja, os arquivos do Serviço de Proteção gozam de uma política de segurança semelhante àquela que no Brasil damos aos arquivos de trabalho do assistente social ou do psicólogo, por exemplo. Atentar contra esse direito à confidencialidade ou impor à pessoa notificante qualquer tipo de retaliação configura certamente abuso, por parte de quem quer que seja, sobretudo do Ordinário.
Também decorre diretamente da leitura de VELM o caráter necessariamente público e acessível dos Serviços de Proteção. Não basta que ele exista, nomeado pelo Ordinário e “guardado a sete chaves” para nunca ser encontrado. Como me dizia, certa vez, um responsável pelo Serviço de Proteção de uma entidade eclesial: “nós aqui nunca fomos chamados para nenhuma notificação” – “graças a Deus”, ele acrescentava. Pudera: o decreto de criação do Serviço de Proteção, emanado pelo Ordinário, não mencionava seus canais oficiais de atendimento; não havia, em nenhum canal oficial, o decreto de nomeação dos membros do Serviço de Proteção, para que eventualmente alguém os conhecesse; o site e as redes sociais da entidade não traziam nenhuma menção à existência de um Serviço de Proteção ou qualquer referência à Política de Proteção da entidade; tampouco os canais de atendimento do Serviço (endereço, e-mail, telefone…) estavam divulgados nos meios de comunicação da entidade. Não era, portanto, difícil compreender por que esse Serviço não tinha demandas de recepção de notificações. E não era “graças a Deus”, infelizmente. Nos termos de VELM, o Serviço de Proteção deve gozar de publicidade e acessibilidade, as mesmas publicidade e acessibilidade de qualquer organismo eclesial, inclusive com seus contatos publicados nos canais oficiais da entidade, preferentemente com a composição de seus membros, dando ao notificante a chance de fazer contato e apresentar, da maneira mais livre e segura possível, sua comunicação de abuso.
Além disso, como veremos mais adiante, as tarefas no Serviço de Proteção não se reduzem apenas à recepção das comunicações. Como operador da Política de Proteção, o Serviço terá também atribuições de prevenção e monitoramento, auxiliando também nos expedientes formativos da entidade eclesial. É isso que começaremos a discutir na próxima semana.
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1Nos textos iniciais, já aludimos a problemas semelhantes na tradução de termos como “tutela”, “menores”, “comissão”, “denúncia” etc.
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Ao longo da tratativa deste tema, pode ser que alguém sinta necessidade de falar, seja para contar experiências ou para tirar dúvidas. Se isso acontecer, você pode procurar a Comissão de Cuidado e Proteção ou o Serviço de Escuta da sua diocese, das congregações religiosas ou de outros organismos eclesiais. Ou pode escrever para joao.ferreira@clar.org para se informar melhor.
Um abraço e até a próxima semana!
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