15. Olhando mais de perto: “abuso sexual”
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03.02.2025 | 8 minutos de leitura

Evangelho do Cuidado

“Não vos chamo servos, mas amigos”
(Jo 15,15)
Ao longo das últimas semanas, nos dedicamos à caracterização dos diversos tipos de abuso, partindo do Glossário do Marco Universal das Linhas-Guia1, promulgado ad experimentum pela Pontifica Comissão pro Tutela Minorum em março de 2024: abuso de poder, abuso espiritual, abuso emocional, abuso institucional e abuso financeiro. Resta, portanto, a caracterização do “abuso sexual”.
A caracterização dessa multiplicidade de tipos de abuso, ao menos nos documentos eclesiásticos, se apoia diretamente na tríplice definição inaugurada pelo Papa Francisco na “Carta ao Povo de Deus”, (2018)2, da qual já tratamos anteriormente: “abuso sexual, de consciência e de poder”. E a consciência dessa diversidade de tipos de abuso ajuda a compreender a afirmação de que fenômeno do abuso se constituiu como um componente estrutural em diversos ambientes eclesiais, amplamente conhecido pela hierarquia e historicamente tratado com leniência ou mesmo com cumplicidade deliberada.
Tratando especificamente do abuso sexual, o Glossário faz questão de ressaltar que este abuso pode ser cometido contra crianças e adolescentes, mas também contra adultos. E, para ambos os casos, oferece a mesma definição:
- Abuso sexual: “é uma forma de agressão sexual. O abuso sexual inclui a violação, a agressão indecente, o assédio sexual e qualquer invasão de caráter sexual. A atividade sexual com um adulto que está incapacitado por uma condição mental ou física que afeta sua capacidade de outorgar um consentimento se define como agressão sexual ou abuso. A agressão sexual ou abuso inclui os casos em que, mediante a força, ameaças ou abuso de autoridade, um indivíduo comete o delito canônico ou força alguém a realizar ou a submeter-se a atos sexuais. O abuso sexual é um crime”.
O princípio fundamental do abuso sexual está contido na definição: a incapacidade, por parte da vítima, de outorgar um consentimento. E um consentimento se outorga com a capacidade de compreender do que se trata, a liberdade para escolher e o exercício da vontade. Sempre que faltar compreensão, liberdade e vontade, por parte de ambos, estamos diante de uma agressão sexual. É por isso que crianças e adolescentes (no Código de Direito Canônico, assim como na legislação brasileira, menores de 18 anos) estarão sempre sob as políticas de proteção. Pois a lei eclesiástica compreende que o processo de desenvolvimento e amadurecimento emocional, efetivo e sexual de uma criança ou um adolescente deve ser protegido de interferências sexuais por parte de uma pessoa adulta. Ainda não completamente capaz de compreender, de escolher e de querer (com a consciência e a responsabilidade que isso implica, além de uma autonomia ainda não consolidada perante a lei e mesmo em suas condições se sustento de responsabilização por si mesmo), uma criança ou um adolescente, comparado a uma pessoa adulta, estará em assimetria de condições para uma conduta sexual. Portanto, estará potencialmente à mercê de manipulações, de chantagens emocionais, de abuso de consciência, de abuso de poder, de constrangimentos ou ameaças etc.
A novidade, já inserida por Vos Estis Lux Mundi (2019 | 2023)3 é que essa assimetria na capacidade de outorgar um verdadeiro consentimento, não se aplica apenas a crianças e adolescentes, mas também a pessoas adultas. A esse respeito, afirma o documento:
“‘Adulto vulnerável’ é toda a pessoa em estado de enfermidade, deficiência física ou psíquica, ou de privação da liberdade pessoal que de fato, mesmo ocasionalmente, limite a sua capacidade de entender ou querer e, em todo o caso, de resistir à ofensa” (VELM, 2023, Art. 1, §2, b).
A equivalência legal entre crianças ou adolescentes e um adulto em situação de enfermidade que lhe restrinja o “uso da razão” é mais antiga e já se encontrava no Código de Direito Canônico (cf. can 1398). Tanto que VELM começa enunciando como “vulnerável” a pessoa “em estado de enfermidade, deficiência física ou psíquica”. Tal como o Glossário, que menciona um “adulto que está incapacitado por uma condição mental ou física que afeta sua capacidade de outorgar um consentimento”.
No entanto, os relatos de abusos sexuais contra pessoas adultas que vieram à tona revelaram a abundante existência de casos em que as vítimas não apresentava nenhum quadro clínico dessa natureza. E que, ainda assim, sofreram abuso em ambientes eclesiais. Esses casos incluíam:
- a velha “solicitação em confissão” (de Crimen Sollicitationis, 1922 | 1962)4, em que o confessor abusava do/a penitente;- a orientação espiritual, em que o/a orientador/a se valia da intimidade da relação ou das informações ali colocadas pela manipular o/a orientando/a e abusar sexualmente;- o atendimento pastoral, em que a vítima acorria ao clérigo/religioso/a em busca de aconselhamento ou auxílio em situações de fragilidade, dificuldade ou sofrimento e, em razão disso, cedia a posturas abusivas de quem o/a atendia;- a formação religiosa, em que o/a formando/a, no âmbito da relação de acompanhamento personalizado com o/a formadora se via seduzido e resultava vítima de abuso sexual…
E tantos outros exemplos se poderiam acrescentar5. Em razão desses casos, tanto VELM quanto o Glossário da Pontifícia Comissão alargam a compreensão de “adulto vulnerável”, para além dos quadros clínicos. VELM inclui como vulnerável a pessoa em situação de uma “privação da liberdade pessoal que de fato, mesmo ocasionalmente, limite a sua capacidade de entender ou querer e, em todo o caso, de resistir à ofensa”. E o Glossário define que “a agressão sexual ou abuso inclui os casos em que, mediante a força, ameaças ou abuso de autoridade, um indivíduo comete o delito canônico ou força alguém a realizar ou a submeter-se a atos sexuais”. Nesses casos, delineia-se a figura de um/a abusador/a que se vale de sua autoridade religiosa, em razão do ministério ordenado, de uma função, de um ofício ou da confiança que alguém lhe credita em razão de seu lugar institucional, carisma pessoal ou atuação religiosa. E, desde esse lugar de confiança e credibilidade, opera as manipulações emocionais e cognitivas necessárias (abuso de consciência, abuso emocional), não raro com a própria linguagem religiosa (abuso espiritual), ou mesmo recorre ao constrangimento, à ameaça ou à perseguição (abuso de poder) para finalmente cometer o abuso sexual. Cometido o abuso, essas mesmas ferramentas abusivas continuam a operar com objetivo de perpetuá-lo e de manter o silêncio da vítima.
Não sem razão, considerando esse gradativo desenvolvimento das práticas abusivas em torno do abuso sexual, o Glossário inclui como abusivas práticas como “agressão indecente, o assédio sexual e qualquer invasão de caráter sexual”, além da “violação”, propriamente dita. Ou seja, o abuso sexual não está restrito ao coito sexual, nem a gestos explicitamente sexuais, nem mesmo ao contato físico entre o agressor e a vítima. É possível abusar sexualmente inclusive sem contato físico, por meio das redes sociais e de chats de conversa, por exemplo. Basta que o conteúdo de texto e/ou imagens sejam suficientemente como “agressão indecente, o assédio sexual e qualquer invasão de caráter sexual”. Ou, dito de outro modo, que o conteúdo dessa relação (física ou virtual) transgrida o limite que a potencial vítima tenha de compreender, escolher e querer, com autonomia e liberdade, o conteúdo ou o ato sexual imposto pelo agressor6. Recentemente, uma vítima relatava: “Era assédio mesmo. Por um tempo curto, eu acho que correspondi, então me sinto meio culpado. De início, eu não aceitei que era isso, foi somente depois que me dei conta”. Nesse caso concreto, nunca houve contato sexual entre o agressor e a vítima. Houve posturas dúbias e mensagens virtuais. Mas, na relação de confiança do acompanhamento religioso que ali existia, com assimetria de poderes e compreensões, isso bastou para que a vítima mudasse os rumos da vida, levando consigo o peso de uma culpa que não era sua. A estratégia do abuso foi altamente eficiente.
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1 Disponível em: https://www.tutelaminorum.org/wp-content/uploads/2024/05/EN-Guidelines-book-01Abr24.pdf.pagespeed.ce.5maISukBuW.pdf.
2 Disponível em: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/letters/2018/documents/papa-francesco_20180820_lettera-popolo-didio.html.
3 Disponível em: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/motu_proprio/documents/20230325-motu-proprio-vos-estis-lux-mundi-aggiornato.html.
4 Disponível em: https://www.vatican.va/resources/resources_crimen-sollicitationis-1962_en.html. Cf. texto 7: Ensaiando repostas, disponível em: https://www.fiquefirme.com.br/7-ensaiando-respostas-ii-2024.
5 As “técnicas” do abuso sexual de pessoas adultas ambientes eclesiais podem ser encontraram em obras como: CELIS, Ana María (org). El Abuso Sexual en Contextos Eclesiales: Análisis del caso chileno, aprendizajes y desafíos. Madrid: PPC Editorial, 2024. Ou: PERISSÉ, Gabriel. Abuso Espiritual: a manipulação invisível. São Paulo: Paulus, 2024.
6 Mais adiante, falaremos sobre práticas como “grooming” e “distorções cognitivas”, por exemplo.
***Ao longo da tratativa deste tema, pode ser que alguém sinta necessidade de falar, seja para contar experiências ou para tirar dúvidas. Se isso acontecer, você pode procurar a Comissão de Cuidado e Proteção ou o Serviço de Escuta da sua diocese, das congregações religiosas ou de outros organismos eclesiais. Ou pode escrever para joao.ferreira@clar.org para se informar melhor.Um abraço e até a próxima semana!
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