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8. Ensaiando respostas (III)

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18.11.2024 | 7 minutos de leitura
Frei João F. Júnior - OFMCap
Evangelho do Cuidado
8. Ensaiando respostas (III)
Agora, minha alma está perturbada.
Que direi: ‘Pai, salva-me desta hora’?
Mas foi precisamente para esta hora que eu vim!
(Jo 12,27)

Na semana passada, começamos a percorrer o itinerário recente da “resposta da Igreja”1 ao tema dos abusos. Caracterizamos algumas definições importantes da instrução Crimen Sollicitationis (1922 / 1962), bem como algumas referências do Código de Direito Canônico (1983). E percebemos que, ao menos no enquadramento jurídico da época, o tema já havia sido tratado e os delitos já estavam tipificados. Então, por que as práticas abusivas continuaram ocorrendo em ambientes eclesiais? 
Sacramentorum Sanctitatis Tutela (2001): Uma resposta pode ser encontrada na carta apostólica sob a forma de motu proprio2 Sacramentorum Sanctitatis Tutela3, de João Paulo II, publicado em 2001, e nas “Normas” que a acompanham. O texto tem duas partes: (1) as “normas substanciais”, que listam exaustivamente os “delitos mais graves” (delicta graviora) que não podem ser julgados pelos Ordinários (bispos diocesanos e superiores de congregações clericais) e que passam à responsabilidade jurídica da então “Congregação para Doutrina da Fé”, em Roma; e (2) as normas processuais, que descrevem o procedimento para juízo desses delitos. Na lista dos delitos reservados à Doutrina da Fé, aparecem, pela primeira vez: 
- Nos delitos contra o Sacramento da Penitência: “a solicitação ao pecado contra o sexto mandamento do Decálogo no ato ou por ocasião ou com o pretexto da confissão”;
- Nos delitos contra os costumes: “o delito contra o sexto mandamento do Decálogo cometido por um clérigo com um menor de dezoito anos”.
Note-se que se trata dos mesmos delitos já previstos na Crimen Sollicitationis. Alguns limites da abordagem são reiterados como, por exemplo, a compreensão do abuso como “delito contra o sacramento” ou “contra os costumes” – e não contra a pessoa abusada. Também reaparece a previsão de que o delito possa ser praticado somente por um clérigo. E que, somente nesse caso, se aplicam as indicações previstas para os “delitos mais graves”, reservados à Doutrina da Fé. 
Mas voltemos à pergunta inicial de por que os abusos continuaram a acontecer, mesmo depois da tipificação canônica de 1983. Ao incluí-los na lista dos “delitos mais graves” e com isso reservá-los ao juízo direto da Santa Sé, Sacramentorum Sanctitatis Tutela responde: porque os Ordinários, tanto bispos quanto superiores religiosos, não agiam conforme a determinação legal. Exatamente como acontecera em Boston, conforme a denúncia de 20024: mesmo com conhecimento seguro das ocorrências, o Ordinário – seja para se proteger, para proteger a imagem institucional ou para proteger o acusado – se recusava a tomar as providências cabíveis, tanto em âmbito canônico quanto civil. Em vez disso, o acusado era temporariamente afastado das atividades eclesiásticas ou simplesmente transferido a outra localidade, de modo a silenciar o escândalo. Na nova localidade, novas denúncias apareciam e o acusado era novamente transferido... formando uma rede ampla de encobrimentos e silenciamentos. E essa prática corporativista, centrada na defesa das instituições, ao lado de uma cultura do silêncio constantemente reforçada, era mais forte do que a determinação canônica. E, condenavelmente, foi mais forte também do que a compaixão pelas vítimas e o compromisso evangélico com a verdade. Por isso, em 2001, centralizar os julgamentos e submetê-los diretamente à Santa Sé parecia uma solução. Uma perspectiva de solução ainda limitada à intervenção, compreendida como investigação-condenação, e à responsabilização individual do acusado. E a história demonstraria que isso era pouco...
Sacramentorum Sanctitatis Tutela – novas Normas (2010): Os anos 2009 e 2010 – exatamente o Ano Sacerdotal convocado por Bento XVI – foram marcados por novos escândalos de abuso sexual de crianças e adolescentes em ambientes eclesiais: Irlanda, Alemanha, Áustria, Bélgica...5, mesmo quase 10 anos depois da publicação de Sacramentorum Sanctitatis Tutela e da inclusão desses abusos na lista dos “delitos mais graves” reservados Santa Sé, por meio do tribunal da então Congregação para a Doutrina da Fé. Assim, Bento XVI reformou as “Normas” da carta apostólica, com as seguintes novidades6
- Julgamento de bispos e outros prelados: até este momento, bispos e outras autoridades eclesiásticas só podiam ser julgados pelo papa. A partir das novas “Normas” da Sacramentorum Sanctitatis Tutela, esses prelados passaram a estar sujeitos ao mesmo processo penal, no tribunal da Doutrina da Fé. Casos como o do Cardeal de Boston, por exemplo, acusado civilmente pelo encobrimento de centenas de abusos, não estariam mais à disposição de uma decisão monocrática do papa, mas se submeteriam ao processo ordinário.
- Aumento do prazo de prescrição: na verdade, os “delitos mais graves” se tornaram praticamente imprescritíveis. Em primeiro lugar, porque a prescrição ordinária passou a ser de 20 anos. E, em segundo lugar, porque o prazo de prescrição pode ser derrogado pela Doutrina da Fé, tornando julgáveis os delitos cometidos a qualquer tempo. Sobretudo nos casos de abuso cometidos contra crianças e adolescentes, esse aumento do prazo de prescrição foi muito importante, pois dá à vítima o tempo quase sempre necessário entre a perpetração do delito, sua elaboração na vida e na consciência e, finalmente, a denúncia.
Além disso, o parágrafo sobre o abuso de crianças e adolescentes passou a vigorar com o seguinte texto: 
- “O delito contra o sexto mandamento do Decálogo cometido por um clérigo com um menor de dezoito anos; neste número, é equiparada ao menor a pessoa que habitualmente tem um uso imperfeito da razão”; e “a aquisição ou a detenção ou a divulgação, para fins de libidinagem, de imagens pornográficas de menores com idade inferior aos quatorze anos por parte de um clérigo, de qualquer modo e com qualquer instrumento”.
É interessante perceber que, além da previsão de que o abuso possa ocorrer em uma situação de “vulnerabilidade ocasional” durante o sacramento da confissão, aparecem agora equiparados aos ditos “menores” aquelas outras pessoas “que habitualmente têm um uso imperfeito da razão”. Essa compreensão de uma “vulnerabilidade intrínseca”, ligada a situações de enfermidade ou fragilidade mental ou cognitiva será bastante incorporada à tratativa jurídica dos abusos. Pode parecer um passo adiante na definição conceitual, mas será também muito debatida, conforme veremos. 
Soma-se às novidades a compreensão de que o abuso não ocorre somente com o ato sexual ou com condutas de conotação sexual, mas que pode ocorrer também virtualmente. Tanto que o documento equipara, na gravidade e na normativa processual, o delito sexual perpetrado e a “aquisição ou a detenção ou a divulgação de imagens pornográficas” de crianças e adolescentes (neste momento, menores de 14 anos).
Do ponto de vista processual e penal, as mudanças introduzidas por Sacramentorum Sanctitatis Tutela e as sucessivas atualizações das “Normas” foram muito importantes. E refletem o aumento da preocupação com o tema dos abusos na Igreja. Mas é fácil perceber que essas preocupações ainda se centravam nas práticas de intervenção, ou seja, dos procedimentos a serem adotados no caso de o abuso já acontecido. Seria preciso esperar até a constituição da Pontifícia Comissão pro Tutela Minorum (2014) para que o tema da prevenção fosse tomado como prioridade, conforme aparece na “Carta ao Povo de Deus” (2018), do Papa Francisco. Esse será o tema da próxima semana.
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Notas:
1 Cf. compilado de textos intitulado “Abuso de menores: a resposta da Igreja” disponível em: https://www.vatican.va/resources/index_po.htm. 
2 Literalmente, “por vontade própria”. É um tipo de documento emanado pelo papa em circunstâncias ou sobre temas em que ele, por vontade própria, decide se pronunciar. 
3 Literalmente, “cuidado da santidade dos sacramentos”. Disponível em: https://vatican.va/content/john-paul-ii/pt/motu_proprio/documents/hf_jp-ii_motu-proprio_20020110_sacramentorum-sanctitatis-tutela.html. 
4 Informações sobre o caso emblemático da Arquidiocese de Boston, denunciado pela equipe da Spotligh do jornal The Boston Globe em janeiro de 2002, bem como sobre sua importância para a discussão do tema dos abusos já apareceram em textos anteriores. 
5 Para ficar apenas com jornais brasileiros de grande circulação: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2010/09/os-principais-casos-de-pedofilia-na-igreja-catolica.html, ou https://www.em.com.br/app/noticia/internacional/2018/08/22/interna_internacional,982556/relembre-os-escandalos-de-pedofilia-na-igreja-catolica.shtml, ou https://oglobo.globo.com/mundo/conheca-os-escandalos-mais-recentes-na-igreja-em-varios-paises-3034050. 
6 Disponível em: https://www.vatican.va/resources/resources_norme_po.html e https://www.vatican.va/resources/resources_rel-modifiche_po.html. 
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Ao longo da tratativa deste tema, pode ser que alguém sinta necessidade de falar, seja para contar experiências ou para tirar dúvidas. Se isso acontecer, você pode procurar a Comissão de Cuidado e Proteção ou o Serviço de Escuta da sua diocese, das congregações religiosas ou de outros organismos eclesiais. Ou pode escrever para joao.ferreira@clar.org para se informar melhor. 
Um abraço e até a próxima semana!

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