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7. Ensaiando respostas (II)

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11.11.2024 | 8 minutos de leitura
Frei João F. Júnior - OFMCap
Evangelho do Cuidado
7. Ensaiando respostas (II)
Agora minha alma está perturbada. 
Que direi: Pai, ‘salva-me desta hora’?
Mas foi precisamente para esta hora que eu vim!
(Jo 12,27)

Na semana passada, falávamos sobre o Relatório Anual 2023 publicado pela Pontifícia Comissão pro Tutela Minorum1, ainda em inglês e italiano, com promessa de breve disponibilização do texto em português. O Relatório faz parte dos trabalhos dessa comissão pontifícia, encarregada de articular as iniciativas da Igreja para proteção de crianças, adolescentes e adultos vulneráveis, bem como a prevenção de abusos sexuais, de consciência e de poder em todo o mundo. Fundada em 2014 por ordem do Papa Francisco, a Comissão pro Tutela Minorum2 integra os departamentos do Dicastério para a Doutrina da Fé, que desde 2001 se encarrega do julgamento dos casos de abuso praticados por ministros ordenados. É certo que ainda falta muito por fazer... mas é igualmente certo que muito já foi feito. De modo que poderíamos nos perguntar: como chegamos às atuais “respostas da Igreja”3 ao tema dos abusos? 

Crimen Sollicitationis (1922 | 1962). Existem referências esparsas sobre o tema, ao longo da história da Igreja. Mas o início de uma resposta propriamente institucional pode ser localizado em 1922, com o envio da instrução Crimen Sollicitationis4 às dioceses e demais entes eclesiásticos. Emanado pela então “Suprema Sagrada Congregação do Santo Ofício” (hoje, o Dicastério para a Doutrina da Fé), o documento trazia a advertência: “para ser guardado cuidadosamente no arquivo secreto da Cúria para uso interno; não deve ser publicado ou aumentado com comentários”. Note-se que Crimen Sollicitationis surge apenas 5 anos após a publicação da primeira versão do Código de Direito Canônico, em 1917. E uma leitura rápida da instrução confirma que não se trata de mera coincidência. A tratativa do tema dos abusos em ambientes eclesiais nasce profundamente marcada pelo enquadramento canônico, participando daquele grande empenho jurídico da Igreja no início do séc. XX, do qual são frutos tanto o Código de Direito Canônico quanto outros textos legislativos, inclusive Crimen Sollicitationis. Uma consequência dessa origem canônica da discussão é que, até hoje, há quem compreenda as ações de cuidado e proteção em caráter apenas de intervenção, investigação e punição – tal como previsto no processo penal. Assim como há ainda hoje canonistas que pretendem uma “privatização jurídica” do tema dos abusos, como se ele devesse ser tratado única ou predominantemente em seu viés canônico. Embora uma eficiente tratativa canônica seja crucial, a história recente da resposta da Igreja aos abusos, como vamos ver, demonstra que um enfrentamento apenas jurídico fracassou e segue fracassando. 

Aparentemente, a versão de 1922 da Crimen Sollicitationis não alcançou os objetivos pretendidos pelo Santo Ofício. Tanto que, em 1962, o documento foi reimpresso para ser distribuído aos bispos na abertura do Concílio Vaticano II – e essa é sua versão mais conhecida. Suas definições mais importantes talvez sejam as seguintes: 

(1) “Crime de solicitação em confissão”5: é a definição que dá nome à instrução, tomada de Sacramentum Poenitentiae, de 1741. Refere-se ao delito deflagrado quando o confessor, no âmbito do Sacramento da Confissão, ou logo depois, ou tomando o sacramento como pretexto, ou mesmo valendo-se do sigilo sacramental, propõe ou insinua ao penitente algum conteúdo ou prática de conotação sexual. 

(2) Crimen pessimum: é a maneira como a instrução define o ato sexual entre pessoas do mesmo sexo – um nome que, por si só, já rende uma discussão interessante. Mas interessa-nos que Crimen Sollicitationis equipara ao crimen pessimum a prática sexual com crianças e adolescentes, além dos atos zoofílicos – tudo num único grau, o que também resulta bastante curioso e revelador da moral sexual que lhe serve como pando de fundo. 

(3) Necessidade de uma “investigação prévia”: já está prevista na instrução aquilo que depois ganharia o nome de “investigação prévia”, hoje disposta no direito processual canônico. Trata-se de uma checagem prévia e obrigatória de toda informação que parecer verossímil, no caso de acusação dos delitos de solicitação em confissão. 

(4) Julgamento do Bispo Diocesano: o delito de solicitação em confissão deveria ser julgado pelo bispo diocesano, ainda que o acusado fosse um clérigo religioso, ou seja, membro de alguma ordem ou congregação religiosa. O crimen pessimum poderia ser julgado pelo Ordinário do acusado, ou seja, pelo bispo diocesano no caso de um clérigo diocesano e por um superior maior religioso (superior provincial, abade ou cargo equivalente) no caso de clérigo religioso. 

É interessante perceber que, neste momento da reflexão, o delito de solicitação em confissão (ou seja, o abuso cometido contra adultos naquilo que hoje chamaríamos de “certa condição e vulnerabilidade”) ocupa muito espaço e mobiliza muito mais o empenho jurídico da Igreja do que propriamente o abuso sexual cometido contra crianças e adolescentes. Além disso, a nuance de circunscrever o delito no âmbito do sacramento da confissão terminou por caracterizá-lo como delito “contra o sacramento” e não tanto contra a pessoa abusada. Essa centralidade do “sacramento violado” e não da vítima violada é também uma das marcas que determinou (e ainda determina, muitas vezes) o tom da tratativa do fenômeno dos abusos na Igreja. 

Código de Direito Canônico (1983). Após o Concílio Vaticano II, era logicamente esperada uma ampla reforma do Direito Canônico, adaptando-o às definições conciliares. Essa reforma acabou demorando mais do que se previa e foi concluída em 1983, quando veio à luz o novo Código de Direito Canônico. Nele, três cânones são particularmente significativos para o tema dos abusos: 

(1) Assimilação da definição de Crimen Sollicitationis e definição de sua pena, no can. 1387: “O sacerdote que, no ato ou por ocasião ou a pretexto de confissão, solicita o penitente a pecado contra o sexto mandamento do Decálogo, seja punido segundo a gravidade do delito, com suspensão, proibições ou privações e, nos casos mais graves, seja demitido do estado clerical”.

(2) Previsão do abuso de poder, inclusive no caso de negligência, e definição de sua pena, no can. 1389: “§ 1. Quem abusar do poder eclesiástico ou do cargo seja punido segundo a gravidade do ato, sem excluir a privação do ofício [...]. § 2. Quem, por negligência, realizar ou omitir ilegitimamente com dano alheio um ato de poder eclesiástico, ou de ministério ou do seu cargo seja punido com pena justa”.

(3) Previsão de delito sexual contra crianças e adolescentes e previsão de sua pena, no can. 1395: “§ 2. O clérigo que, por outra forma, delinquir contra o sexto mandamento do Decálogo, se o delito for perpetrado com violência ou ameaças ou publicamente ou com um menor de dezoito anos, seja punido com penas justas, sem excluir, se o caso o requerer, a demissão do estado clerical.

Ou seja, o Código de Direito Canônico assimilou as duas definições importantes da Crimen Sollicitationis: a solicitação em confissão e o delito sexual cometido contra crianças e adolescentes, prevendo para eles as devidas penas. Também manteve a obrigatoriedade da investigação prévia e a reserva do juízo desses delitos ao Ordinário (o bispo diocesano ou o superior religioso). A novidade é a inserção do “abuso de poder” como também punível com “pena justa”. É interessante notar, entretanto, que a casuística do legislador se mantém no agressor clérigo, não se cogitando a possibilidade de que o abuso seja cometido por um leigo ou por uma religiosa, por exemplo. 

Note-se que, do ponto de vista legal, as situações de abuso sexual contra crianças, adolescentes e adultos vulneráveis (ou, ao menos, em certa condição de vulnerabilidade, como na confissão) em estavam enquadradas e definidas, com processos penais previstos e penas determinadas, pelo menos desde 1983. Entretanto, isso não impediu que os abusos continuassem a acontecer e chegassem aos escândalos dos anos 2000 como um fenômeno estrutural, amplamente conhecido pela hierarquia eclesiástica e tratado com a mesma leniência histórica e o mesmo encobrimento culpável. Isso veremos na próxima semana.

***

Ao longo da tratativa deste tema, pode ser que alguém sinta necessidade de falar, seja para contar experiências ou para tirar dúvidas. Se isso acontecer, você pode procurar a Comissão de Cuidado e Proteção ou o Serviço de Escuta da sua diocese, das congregações religiosas ou de outros organismos eclesiais. Ou pode escrever para joao.ferreira@clar.org para se informar melhor. 

Um abraço e até a próxima semana!

___________

1Disponível em: https://www.tutelaminorum.org/annual-report/. 
2 Os trabalhos da Pontifícia Comissão podem ser, em parte, acompanhados em: https://www.tutelaminorum.org/. 
3 Uma coleção de documentos sobre o tema dos abusos, agrupados sob o título “Abuso de menores – a resposta da Igreja”, pode ser encontrada no site da Santa Sé: https://www.vatican.va/resources/index_po.htm. 
4 Literalmente, “Crime de Solicitação”. Disponível em: https://www.vatican.va/resources/resources_crimen-sollicitationis-1962_en.html.
5 Uma checagem do tema nos documentos da Igreja exigirá do leitor uma adaptação constante da linguagem. Observe, por exemplo, que na Crimen Sollicitationis quanto não aparece a palavra “abuso”, mas sim “solicitação em confissão” e “delito sexual contra menores”. Mais adiante, no Código de Direito Canônico, a palavra “abuso” aparecerá, mas para se referir ao “abuso de poder” e não ao abuso sexual. Para o abuso sexual se guardam outras expressões, como se verá mais adiante. 



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