9. Ensaiando respostas (IV)
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25.11.2024 | 7 minutos de leitura

Evangelho do Cuidado

“Agora, minha alma está perturbada.
Que direi: ‘Pai, salva-me desta hora’?
Mas foi precisamente para esta hora que eu vim!”
(Jo 12,27)
Pontifícia Comissão pro Tutela Minorum. O ano era 2013. E o Papa Francisco, recém-eleito “desde o fim do mundo” para ser o novo Bispo de Roma, constituía um Conselho de Cardeais que o assessoraria no governo da Igreja Católica. Para alguns, o gesto representava um atentado contra a monocracia pontifícia, certamente mais uma excentricidade desse novo papa, já tão inusitado desde sua apresentação como pontífice. Entre os cardeais cuidadosamente escolhidos para composição desse Conselho, estava Frei Sean Cardeal O’Malley, então arcebispo de Boston, nos Estados Unidos. O’Malley era o sucessor imediato de Bernard Law e foi o responsável por administrar o escândalo que se seguiu às denúncias do jornal The Boston Globe, em 2002. Foi empossado após o antigo arcebispo se refugiar em Roma, sob a proteção de João Paulo II, para escapar dos processos judiciais instalados nos tribunais estadunidenses. Desde então, O’Malley se tornaria mundialmente conhecido por seu enfrentamento aos abusos sexuais de crianças e adolescentes em ambientes eclesiais. E sua escolha para o Conselho de Cardeais soava como um recado claro: algo na resposta da Igreja ao tema dos abusos estava para mudar.
Já em suas primeiras reuniões, em 20131, o Conselho de Cardeais sugeriu a criação de uma comissão pontifícia para tratativa do tema dos abusos e articulação de ações em toda a Igreja. A sugestão foi acolhida por Francisco, que nomeou o Cardeal O’Malley como responsável pela escolha de seus membros. Assim, em 22 de março de 2014, o papa instituiu a Pontifícia Comissão pro Tutela Minorum (em bom português brasileiro: Pontifícia Comissão para Proteção de Crianças e Adolescentes2), formada por clérigos, leigos, leigas, religiosas e religiosas, sob a presidência do Cardeal O’Malley. No documento de constituição da comissão, o papa assim a definia:
“A tarefa específica da Comissão é propor-me as iniciativas mais oportunas para proteger crianças, adolescentes e adultos vulneráveis, a fim de que possamos fazer todo o possível para garantir que crimes como os que ocorreram não se repitam mais na Igreja. A Comissão deve promover a responsabilidade local nas Igrejas particulares, unindo seus esforços aos da Congregação para a Doutrina da Fé, para a proteção de todas as crianças e adultos vulneráveis”3.
A proposta de uma “comissão para proteção” representava uma “revolução copernicana” no modo como a Igreja Católica tratava o tema dos abusos. Até esse momento, todas as grandes iniciativas eclesiais se limitavam à recepção das denúncias – quase sempre forçada pela pressão da imprensa ou pela instalação de processos penais na justiça civil – e à responsabilização individual dos perpetradores. Nesse esforço, com viés predominantemente jurídico-canônico, se encontravam as sucessivas orientações da Igreja sobre o tema, desde Crimen Sollicitationis até as “Normas” de Sacramentorum Sanctitatis Tutela – conforme vimos nas semanas anteriores. A partir do constatado fracasso dessa estratégia, o que o papa agora pedia da Comissão era:
- “... iniciativas mais oportunas para proteger...”. A tônica já não era mais o “depois” do abuso, mas o “antes”, ou seja, sua prevenção. Mais do que punir os responsáveis (o que é certamente necessário, como já reconhecido no Direito Canônico e em Sacramentorum Sanctitatis Tutela), a preocupação da comissão deveria ser primeiramente com a proteção, de modo que o abuso não aconteça.- “... proteger crianças, adolescentes e adultos vulneráveis”. Já na criação da Pontifícia Comissão, são nomeados aqueles que devem gozar de seus esforços preventivos: crianças, adolescentes e adultos vulneráveis. Pela primeira vez, ainda que de maneira incipiente, se reconhece textualmente que o abuso (neste momento, compreendido apenas como abuso sexual) pode ser perpetrado contra um adulto, fora do contexto da “solicitação em confissão”. Uma conceituação mais exata de “adulto vulnerável” ainda viria, mais adiante.- “... promover a responsabilidade local nas Igrejas particulares...”. Mais uma vez, se insiste na responsabilidade local, em nível das dioceses e de seus bispos. E atribui-se a incumbência de promover essa responsabilidade à Comissão pro Tutela Minorum. Ou seja, ainda que instalada na então Congregação para a Doutrina da Fé, a Comissão não era um organismo judicial, mas formativo e pastoral – tal como convém à prevenção. Nascia, assim, uma compreensão que ainda hoje não foi completamente assimilada: as políticas eclesiais de proteção não têm função primariamente jurídica ou de correção, mas de formação para uma consciência responsável, capaz de uma cultura institucional centrada na prevenção. Ou seja, o enfrentamento preventivo dos abusos se faz com formação e conscientização para a responsabilidade. Responsabilidade que pressupõe a transparência dos processos de intervenção e de correção, depois que o abuso já foi cometido, mas que não se restringem a eles, nem começam por eles.
Dito de outro modo, a criação de uma comissão pontifícia para o cuidado de crianças, adolescentes e adultos vulneráveis, com as atribuições que lhe foram dadas pelo Papa Francisco, iniciou na Igreja um deslocamento importante na compreensão do tema dos abusos e na proposição das práticas para seu enfrentamento. Um deslocamento até hoje incompleto e que consiste em retirar do centro das preocupações “a instituição” ou “o sacramento” e assumir a centralidade das vítimas como motivador do enfrentamento dos abusos em ambientes eclesiais.
Explico melhor. Se no centro da preocupação e dos esforços está a preservação da instituição (de seu prestígio, de sua imagem, de seu poder, de sua credibilidade, de seu clero etc.), é a instituição que se vê ameaçada pela prática criminosa do abusador. E, para protegê-la, o ato criminoso deve ser compreendido como “fato isolado” (o velho discurso das “maçãs podres”) e o desordeiro deve ser punido. Se assim for, as políticas de proteção se restringem a meros “protocolos de segurança” e passam a funcionar como mecanismos de autodefesa e autopreservação institucional. A vítima até tem um papel, limitado à apresentação da denúncia que, por si só, fará girar os mecanismos judiciais e penais. Por outro lado, se no centro está a preocupação com as pessoas, sejam elas vítimas que precisam de acolhida e reparação, sejam elas potencialmente vitimáveis que precisam de proteção, a prevenção assume sua devida preponderância. As políticas de proteção se tornam instrumento de formação para construção de uma cultura do cuidado e mesmo sua parte normativa e protocolar assume um papel muito mais propositivo que restritivo. Consequentemente, a responsabilidade deixa de pertencer a uma única pessoa (seja o possível abusador, seja seu superior hierárquico) para alcançar colegiadamente todos os atores institucionais. Emergem valores como “transparência”, “coparticipação”, “corresponsabilidade” e a recentemente redescoberta “sinodalidade”.
Essa “correção de rota”, sinalizada na criação da Pontifícia Comissão pro Tutela Minorum, permanece certamente inacabada na vida da Igreja, com desafios muito atuais, conforme já vimos em seu Relatório 2023, publicado recentemente4. Mas, em meio aos dilemas que permanecem, não é necessária muita elaboração teológica para verificar quais dessas opções se mostram mais coerentes e mais evangélicas. Não sem razão, algumas dessas opções foram reafirmadas e aprofundadas na “Carta ao Povo de Deus”, publicada pelo Papa Francisco em 2018, em meio aos escândalos no Chile, na Irlanda e na Pensilvânia. Isso veremos na próxima semana.
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Notas:
1 Uma cronologia completa da Pontifícia Comissão pro Tutela Minorum pode ser encontrada em seu website: https://www.tutelaminorum.org/mission/.
2 Em textos anteriores, já tratamos o problema da tradução de tutela minorum para “tutela de menores” e as razões pelas quais optamos por “proteção de crianças e adolescentes”.
3 Disponível em: https://www.tutelaminorum.org/mission/.
4 Disponível em: https://www.tutelaminorum.org/annual-report/.
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Ao longo da tratativa deste tema, pode ser que alguém sinta necessidade de falar, seja para contar experiências ou para tirar dúvidas. Se isso acontecer, você pode procurar a Comissão de Cuidado e Proteção ou o Serviço de Escuta da sua diocese, das congregações religiosas ou de outros organismos eclesiais. Ou pode escrever para joao.ferreira@clar.org para se informar melhor.Um abraço e até a próxima semana!
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