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12. Bendita vulnerabilidade

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23.12.2024 | 11 minutos de leitura
Frei João F. Júnior - OFMCap
Evangelho do Cuidado
12. Bendita vulnerabilidade
“Ao entrar no mundo, Cristo afirma:
‘Tu não quiseste vítima nem oferenda,
mas formaste-me um corpo’”.
(Hb 10,5)

Há seis semanas, temos retomado alguns dos textos mais importantes do magistério católico sobre o tema dos abusos, desde Crimen Sollicitationis (1922 | 1962) até Vos Estis Lux Mundi (2019 | 2023). Juntos, esses textos formam a chamada “resposta da Igreja”1 ao apelo de diversos segmentos da sociedade civil por uma postura clara de enfrentamento e prevenção dos abusos sexuais, de consciência e de poder em ambientes eclesiais. Como vimos, cada texto ou cada bloco de textos expressa um momento da reflexão sobre o tema e propõe, a seu modo, uma série de medidas de intervenção e de prevenção. Vos Estis Lux Mundi instalou o momento eclesial em que estamos e os esforços desde então tomam esse documento como marco teórico necessário. 

Um trabalho que ainda podemos fazer mais adiante é verificar o quanto a disciplina eclesiástica tem ou não correspondido a esse empenho magisterial. Ou, dito de outro modo, o quando a Igreja Católica, no cotidiano de suas instituições, na formação de seus ministros e nas práticas de suas comunidades de fé, tem ou não assimilado os pressupostos e as práticas ditadas pelo magistério no que se refere ao tema dos abusos. O Relatório 2023 da Pontifícia Comissão pro Tutela Minorum, recentemente publicado em português2, ajuda a ter uma ideia inicial do tamanho da pendência... E disso certamente falaremos mais adiante. 

Mas hoje é antevéspera de Natal... E convém permitir que alguns aspectos dessa celebração iluminem também este nosso tema, às vezes tão árido e sempre marcado por tanta dor e tanta desesperança. Afinal, desde o início temos insistido que os compromissos eclesiais que surgem no enfrentamento dos abusos não são mera disciplina eclesiástica, mas expressam a identidade evangélica da Igreja, ou seja, dizem de sua pretendida pertença à herança carismática e espiritual de Jesus. Se assim for, então as festas deste tempo têm algo a nos dizer.

Um Deus radicalmente encarnado

Este será sempre o escândalo da fé cristã, inclusive (principalmente?) para os próprios cristãos: a encarnação de seu Deus, com todas as suas consequências. Um Deus confortavelmente acomodado nas alturas do céu legitima igualmente conceitos confortavelmente acomodados nas estruturas mentais de qualquer tempo. Assim como gera compromissos de fé confortavelmente orientados às sumas alturas, à ascensão espiritual e, no máximo, a alguma ascese corporal em vista da nobreza da alma e de suas destinações celestiais. Em nome desse Deus e de suas altíssimas vontades, é possível pisotear irreverentemente a poeira da história, em sua precária incapacidade de corresponder à imaginada eternidade. Assim como é possível (quando não necessário) suster a todo custo a ordem por Ele estabelecida, doa a quem doer, sofra quem sofrer, mate-se a quem se precisar matar, a custo do silêncio de quem for necessário silenciar. Afinal, que é o insignificante grito da dor humana diante do ribombo de sua voz ou da inexorabilidade de suas ordens imutáveis? Não estranhamente, há quem viva em paz com esse Deus, tanto pessoas e suas intenções secretas, quanto instituições e suas mazelas manifestas.

Um Deus encarnado é muito mais incômodo. Pois será preciso tomar a sério as circunstâncias e as vicissitudes de sua vida – tão desdenhosamente terrestre e tão incomodamente humana quanto a nossa. Será preciso considerar normativamente as opções que orientaram sua vida; ou elevar ao status de “cânon” suas decisões mais importantes perante as pessoas; ou mesmo assumir como caminho de realização espiritual a narrativa de sua existência histórica, com tudo o que ela tem de santo e de não-santo, inclusive com as mil ambiguidades entre uma coisa e outra. Com um Deus encarnado não se aprendem normas positivas, mas sim olhares e perspectivas dirigidos às pessoas e ao mundo; não se decoram decretos eternos e imutáveis, mas se recordam suas palavras que estabelecem relações e que mudam os rumos da vida. Em razão de sua encarnação, a carne se enobrece e se torna a portadora legítima e permanente de sua mensagem divina, agora disponível a todos/as aqueles/as que, como Ele, são de carne e osso. A história se descobre emprenhada de uma história divina. Razão pela qual os compromissos da fé num Deus encarnado apontam não para o céu, mas para a terra histórica e para a carne existente, lá onde seu Deus fez morada. E aí, precisamente aí, nessa radical condição encarnada de Deus, cada gota de suor, de lágrima ou de sangue se torna sagrada, pois expressa Deus. Cada grito, cada choro e cada dor se tornam sagrados, pois os ouve Deus. Cada sorriso, cada realização e cada abraço se tornam sagrados, pois realizam Deus. Consequentemente, cada gesto de violência, de tirania e de covardia se torna infinitamente mais detestável, pois mata Deus. Ou seja, a consequência última da encarnação de Deus é que tudo o que se passa na face da terra, de mais belo e de mais miserável, no escancarado do meio-dia ou no escondido de um abuso, agora tem a ver com Ele e com sua Palavra – os toca, os acaricia ou os fere. E, no fim, nada que nos faça alegria ou dor é insignificante aos olhos desse Deus, por coerência à sua encarnação.  

Um Deus vulnerável

“Vulnerabilidade” é dos termos mais controversos, dentro e fora da Igreja, no que se refere ao tema dos abusos. Não se nega, por exemplo, o avanço que significa a consideração de “adultos vulneráveis” como potenciais vítimas de abuso sexual, de consciência e de poder. Afinal, muitos dos que afirmam ter sofrido abuso em ambientes eclesiais não são crianças e adolescentes, mas pessoas adultas que, nos ambientes formativos, pastorais ou de atendimento individual, foram vítimas de práticas abusivas. De modo que restringir as preocupações de prevenção e intervenção a crianças e adolescentes é responder apenas parcialmente ao problema. Mas aí surgem as perguntas: o abuso se deu porque a vítima “era vulnerável”? Se ela estivesse em condição de “menor vulnerabilidade”, o abuso teria sido evitado? Isso não termina por impor sobre a vítima ou sobre sua “condição de vulnerabilidade” a responsabilidade pelo abuso, ainda que parcialmente? Ou não termina por admitir que existem pessoas que, em razão de “alguma vulnerabilidade” são “compreensivamente abusáveis”? Certamente que não. 

Contrariando nosso sonho moderno de onipotência, de sermos absolutamente suficientes em nós mesmos, é preciso admitir que certa “condição de vulnerabilidade” nos constitui a todos – e que não há nada de mau nisso. É uma característica, não um defeito. Característica, aliás, que dividimos com tudo o que existe. Seja porque nossas capacidades físicas são limitadas e, fatalmente, experimentamos males ou perigos maiores do que nós; seja porque cedo ou tarde a vida nos apresenta a realidades de fraqueza, de doença ou de morte; seja porque nunca sabemos tudo quanto poderíamos ou nunca temos todas as respostas que gostaríamos... seja como for, a vulnerabilidade nos é constitutiva se revela, cedo ou tarde (na verdade, cedo e tarde). Sem cuidado recíproco e sem relações que nos protejam, nossa vulnerabilidade nos é letal. Viver implica abraçar a vulnerabilidade que nos constitui.

Poeticamente, somos ainda mais vulneráveis quando amamos. Afinal, o amor nos faz descer da autossuficiência para nos colocar na codependência do outro; retira-nos a absoluta autonomia da própria vontade para nos colocar à espera da vontade do outro; despe-nos da onipotência de governar a própria vida a partir de si mesmo para nos convidar a dividi-la com outro, às vezes de maneira desigual, na desproporcionalidade da capacidade de amar de cada um. Quem ama não é senhor absoluto de si, pois confia no outro, constrói com o outro, aposta com o outro, com todos os riscos que isso implica. Se viver já implica acolher e abraçar a vulnerabilidade que nos constitui, amar e confiar escancaram nossa condição vulnerável frente ao outro...

Assim, vulneráveis, estaremos sempre à mercê da violência de alguém – física, psicológica, sexual, de qualquer natureza. Quando um abuso acontece, não ocorre em razão última da vulnerabilidade da vítima (uma vez que, em última instância, vulneráveis somos todos), mas em razão do comportamento violento do abusador. Um comportamento que se vale de elementos situacionais, funcionais, institucionais, culturais, econômicos e tantos outros que circunstanciam uma relação de desigualdade: compreensões desiguais, percepções desiguais, liberdades desiguais, conhecimentos desiguais, meios desiguais... Um risco real, com certeza. 

Pois bem. Uma consequência da encarnação é que Deus se submete aos mesmos dilemas e aos mesmos riscos da nossa vulnerabilidade. “Amou tanto que deu seu Filho”, nas palavras do Evangelho de João (Jo 3,16). Movido de amor, aposta e assume o risco da história; vivendo na história, aposta e assume o risco das relações de amor e de confiança; no seio das relações, aposta e assume o risco da decepção, do descrédito e do abandono. Abandonado, encara de frente a violência humana e vive a morte como entrega de si. Eis a vulnerabilidade da encarnação. 

Colocado frequentemente, nos imaginários doentios ou perversos, ao lado do poder de quem abusa (o que pode tudo, que sabe tudo, que manipula tudo, que controla tudo...), o Deus encarnado se revela de fato na vulnerabilidade de quem sofre. A partir da encarnação, descobrimos que não só é possível manipular Deus, utilizando-o como argumento perverso de poder e de justificação do abuso, mas que é igualmente possível abusar de Deus, feri-lo, violentá-lo, violá-lo. E encontrá-lo na solidão das vítimas de todos os tempos que, silenciadas, choraram sua dor. Se assim for, existe de verdade um “magistério das vítimas”, encabeçado pelo Deus encarnado, vulnerável e vitimado. Um magistério que, surpreendentemente, testemunha também a vida que pode renascer da dor, lá onde as vítimas recusam a tragédia como última palavra e se lançam ao caminho pascal de se reconhecerem como sobreviventes. Uma ousadia igualmente divina. 

Um Deus feito criança 

Os Evangelhos desenham com capricho o cenário do que hoje chamamos “natal de Jesus”. Com as variantes próprias de cada texto, imitando o caminho dos grandes heróis da história e da memória do povo, aparecem nesse cenário alguns traços muito interessantes. Um rei, tão tirano quanto covarde, que treme ante a possibilidade de perder a coroa e, descobrindo-se enganado, reage com toda a violência e consente no assassinato de inocentes. Uns magos do oriente, suspeitos em sua raça, sua cultura e sua religião, mas que são capazes de ler nas estrelas aquilo que os sábios autorizados da corte não conseguem ler nas escrituras. Muitos pastores de ovelhas, gente desimportante dos campos, tidos frequentemente por mentirosos e enganadores, mas reverentes em escutar na madrugada erma um canto angélico que mais ninguém escuta – e de acreditar nele o suficiente para se colocarem em marcha. Um casal de viajantes, migrantes estrangeiros; ela, na iminência de dar à luz fora da precária segurança que teria em casa, nos improvisos de uma viagem desajeitada; ele, empenhado em encontrar o mínimo que suprisse a urgência desse momento, tão grave quanto invisível aos olhos de todos. Uma estrela titubeante, uma gruta, um estábulo de animais, um cocho de capim... e, no centro da cena, qual protagonista improvável, está uma criança recém-nascida, na mais contundente expressão do desamparo de nossa fragilidade e do imperativo de cuidarmos uns dos outros. 

Afinal, na narrativa de um Deus feito criança, não aparece só a “vulnerabilidade” que decorre da encarnação. Nessa cena, a fragilidade se torna atributo divino, virando de ponta-a-cabeça a ideia estranha de um Deus que se basta. Necessitado de colo materno e carinho paterno, Deus abençoa nossa fragilidade e prescreve a necessidade de relações seguras e protetoras. E, assim, a proteção dos pequenos emerge como mandamento divino e o cuidado se torna categoria teológica. 

Que o mistério de um Deus encarnado nos enterneça o coração, mas também nos inquiete com suas consequências: reconcilie-nos com a bendita vulnerabilidade que nos constitui, irmane-nos com a fragilidade de tudo quanto existe e comprometa-nos com cuidado e a proteção como a melhor das boas-notícias (euaggelion – evangelho) deste Natal.
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1Disponível em: https://www.vatican.va/resources/index_po.htm. 
2Disponível em: https://www.tutelaminorum.org/wp-content/uploads/2024/12/Anual-Repport-2024-Final-Version-Portuguese.pdf.pagespeed.ce.ckDo4JLlzZ.pdf
 


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Ao longo da tratativa deste tema, pode ser que alguém sinta necessidade de falar, seja para contar experiências ou para tirar dúvidas. Se isso acontecer, você pode procurar a Comissão de Cuidado e Proteção ou o Serviço de Escuta da sua diocese, das congregações religiosas ou de outros organismos eclesiais. Ou pode escrever para joao.ferreira@clar.org para se informar melhor. 
Um abraço e até a próxima semana!


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