6. Ensaiando respostas (I)
Ler do Início
04.11.2024 | 8 minutos de leitura

Evangelho do Cuidado

“Agora minha alma está perturbada.
Que direi: Pai, ‘salva-me desta hora’?
Mas foi precisamente para esta hora que eu vim!”
(Jo 12,27)
“Não era um crime desconhecido. Era envolto em segredo, escondido por trás da rotina da cidade… das fachadas bucólicas… dos altares… até o jornalismo jogar luz numa rede obscura de impunidade a pedófilos, que destruiu famílias, manipulando a confiança de quem tem fé”. Com essas palavras começa a reportagem intitulada “Os bastidores da investigação que expôs centenas de abusos sexuais na Igreja Católica”, exibida pelo Fantástico, na Rede Globo de Televisão, no último dia 27 de outubro1. Com quase 15 minutos, a reportagem reconstrói o trabalho investigativo operado pela equipe Spotlight do jornal The Boston Globe, entre julho e dezembro de 2001. A publicação, em 06 de janeiro de 2002, expôs uma verdadeira rede de acobertamento de abusos de crianças e adolescentes. Os abusos tinham sido perpetrados por membros do clero daquela arquidiocese e a rede de encobrimento e transferências sistemáticas dos acusados era operada por agentes civis e eclesiásticos, inclusive o arcebispo Bernard Cardeal Law. O final da história nos é conhecido: após sucessivos pedidos do cardeal, sua renúncia foi aceita pelo Papa João Paulo II, em dezembro de 2002 – menos de um ano após a publicação feita pela Spotlight. Mas Law jamais respondeu às autoridades estadunidenses. Em vez disso, foi imediatamente trasladado a Roma, onde João Paulo II o nomeou arcipreste da basílica de Santa Maria Maior. Bento XVI o removeu do cargo somente em 2011, quando o cardeal completou 80 anos. Ainda assim, Law permaneceu em Roma, atuou no hoje chamado Dicastério para os Bispos e morreu na capital italiana, em 2017. Apesar das centenas de vítimas em Boston, apesar das dezenas de padres (acobertados por ele) julgados e condenados, apesar do processo aberto na justiça estadunidense, Bernard Law nunca foi julgado civilmente; nunca sofreu o processo canônico promulgado pelo próprio João Paulo II, em 2001, e renovado por Bento XVI, em 2010; nunca sequer perdeu suas funções de cardeal, mas permaneceu com toda a “cidadania eclesiástica” até sua morte.
Um detalhe: infelizmente, há uma abundante literatura jornalística2 que demonstra o quanto o tratamento dado por João Paulo II ao cardeal Law não foi uma exceção, mas o modo como Wojtyla escolheu tratar os escândalos de abuso que lhe chegaram ao longo de seu pontificado. Foi assim, inclusive, com o emblemático caso de Pe. Marcial Maciel, fundador dos Legionários de Cristo e amigo pessoal do papa. As denúncias contra Maciel somente seriam acolhidas pelo Dicastério para a Doutrina da Fé após a morte de João Paulo II. E, mesmo depois, Maciel nunca foi julgado.
Ainda sobre a reportagem da Rede Globo (que vale a pena assistir), suas palavras iniciais fazem pensar no quanto é realmente possível que estejamos diante do fenômeno dos abusos sem nos darmos conta disso. Por vários motivos, às vezes misturados entre si: seja em razão da densa cortina de encobrimento que segue sendo deliberadamente reforçada em muitos ambientes eclesiais; seja porque naturalizamos alguns dos mecanismos mais comuns e mais perigosos da prática abusiva; seja porque recusamos lançar um olhar mais crítico a determinadas posturas eclesiásticas ou a certos líderes que desempenham para nós ou nossas comunidades papéis de referência; seja porque negamos de maneira pueril a existência dos abusos, por medo de nos responsabilizarmos por seu enfrentamento... enfim. E é fato que, muitas vezes, para sustentar nossa distância ou nossa ignorância frente a esse crime “escondido por trás da rotina da cidade, das fachadas bucólicas e dos altares”, recorremos a justificativas controversas ou equivocadas. São as “armadilhas” sobre as quais refletimos nas últimas três semanas. Ao todo, foram sete exemplos, inspirados na lista muito maior proposta por Pe. Cencini3: (1) deslocalização geográfica, (2) explicação clínico-patológica, (3) juízo moralista e espiritualista, (4) falta de oração, (5) teoria do complô, (6) culpa só do passado e (7) números pequenos demais. Segundo Cencini, por fim, esgotadas as justificativas, somos “forçados a admitir” a realidade dos abusos em ambientes eclesiais, que aqui temos caracterizado como um fenômeno estrutural, amplamente conhecido pelas autoridades eclesiásticas e historicamente tratado com negligência culpável ou reiterada leniência.
Uma segunda constatação, a partir da reportagem exibida pela Rede Globo, é que a tratativa do tema dos abusos na Igreja passou por mudanças significativas ao longo desses quase 23 anos, desde a reportagem da Spotlight em The Boston Globe. É verdade que há ainda muita inércia e muita resistência, seja por parte do laicato, seja por parte sobretudo da hierarquia eclesiástica. Mas não passa despercebido o salto qualitativo que se verifica entre os dispositivos institucionais disponíveis na época dos casos de Boston ou de Pe. Maciel (acrescidos das posturas lamentáveis e amplamente condenáveis de João Paulo II) e o cenário pretendido pelo Motu Proprio “Vós sois a luz do mundo”, confirmado pelo Papa Francisco, em 2023. São dois paradigmas eclesiais muito diferentes no modo de tratar a questão dos abusos. O quanto somos ou seremos a Igreja querida por “Vós sois a luz do mundo”, isso é o desafio que nos toca.
Um exemplo dessa diferença foi a publicação, no último dia 29 de outubro, do Relatório Anual 2023 da Pontifícia Comissão pro Tutela Minorum4. É o piloto da publicação de um relatório anual pela própria Igreja, disponível ao confronto com dados levantados por outras entidades governamentais e não governamentais, em todo o mundo. Baseado nos princípios de “conversão”, “verdade”, “justiça”, “reparação” e “garantias de não reincidência”, o Relatório Anual representa um compromisso da Comissão (e da Igreja) com os principais desafios para a proteção e a prevenção, atualizados a cada ano. O Relatório 2023 enumera os seguintes desafios: (1) o acesso de informações processuais às vítimas, sem silêncios ou ocultamentos que resultem em revitimização; (2) a definição mais integral e efetiva do sentido de “vulnerabilidade”; (3) a delimitação mais clara das competências dos organismos da Igreja no combate aos abusos; (4) a simplificação do processo de remoção de autoridades eclesiásticas em razão de abuso ou de acobertamento, quando necessário; (5) o envolvimento mais explícito do magistério teológico e pastoral; (6) o estudo de políticas efetivas de reparação às vítimas; e (7) a profissionalização dos serviços de proteção na Igreja. O Relatório Anual também pretende apresentar uma “radiografia” da situação de (arqui)dioceses, conferências episcopais e congregações religiosas no que se refere à implementação de políticas de proteção e os resultados alcançados (ou não). A metodologia supõe a publicação de determinado número dessas análises a cada ano, de modo que toda a Igreja Católica seja revisada em ciclos de 5 ou 6 anos, com parecer crítico e encaminhamentos por parte da Comissão. Ao final de 10 ou 12 anos, já será possível estabelecer, pela primeira vez, parâmetros objetivos sobre o desenvolvimento das políticas e seus resultados, em cada instituição eclesial e em cada área do planeta. A falta de transparência dos organismos da Cúria Romana e a necessidade de solidariedade econômica entre conferências episcopais mais ricas e mais pobres para sustento das políticas de proteção também receberam destaque no Relatório 2023.
Com os limites que possam ser apontados, é inegável o avanço representado por um instrumento como esse, sobretudo no valor preventivo da transparência. Mas é de se supor que uma resposta eclesial dessa grandeza não se gesta de um dia para outro. Por isso, a partir da próxima semana, dedicaremos alguns textos às “respostas da Igreja” ao tema dos abusos, ao longo das últimas décadas. O objetivo é nos situarmos na discussão, constatando os passos já dados e os ainda pendentes. E, sobretudo, permitir que cada um faça o mesmo caminho de maturação que a Igreja vem fazendo, nos tornando mais aptos a assumir os desafios de agora. eclesiais. Ou pode escrever para joao.ferreira@clar.org para se informar melhor. Um abraço e até a próxima semana!
1 Disponível em: https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2024/10/27/os-bastidores-da-investigacao-que-expos-centenas-de-abusos-sexuais-na-igreja-catolica.ghtml.
2 Cf. por exemplo: https://www.ihu.unisinos.br/categorias/624523-wojtyla-sabia-dos-abusos-sexuais-desde-que-era-arcebispo-de-cracovia; ou https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/vaticano-admite-que-joao-paulo-ii-promoveu-arcebispo-ciente-de-suspeita-de-abuso/; ou https://brasil.elpais.com/brasil/2018/12/31/internacional/1546256111_595163.html; ou https://www.ihu.unisinos.br/noticias/40499-a-beatificacao-de-joao-paulo-ii-deixa-muitos-catolicos-indiferentes.
3 CENCINI, Amedeo. ¿Ha cambiado algo en la Iglesia después de los escándalos sexuales?: Análisis y propuestas para la formación. Madrid: Sígueme, 2016.
4 Disponível em: https://www.tutelaminorum.org/annual-report/. Estão disponíveis as versões em inglês e em italiano do relatório, além de um resumo executivo em português, espanhol e francês. Está prevista a publicação do texto integral em português nas próximas semanas.
_________
Ao longo da tratativa deste tema, pode ser que alguém sinta necessidade de falar, seja para contar experiências ou para tirar dúvidas. Se isso acontecer, você pode procurar a Comissão de Cuidado e Proteção ou o Serviço de Escuta da sua diocese, das congregações religiosas ou de outros organismos
-
21. Serviços de Proteção (II)31.03.2025 | 8 minutos de leitura
-
20. Serviços de Proteção (I)17.03.2025 | 6 minutos de leitura
-
19. Política de proteção (IV)10.03.2025 | 10 minutos de leitura
-
18. Política de proteção (III)24.02.2025 | 7 minutos de leitura
-
17. Política de proteção (II)17.02.2025 | 6 minutos de leitura
-
16. Olhando mais de perto: Política de proteção (I)10.02.2025 | 6 minutos de leitura
-
15. Olhando mais de perto: “abuso sexual”03.02.2025 | 8 minutos de leitura
-
122 - O medo de ver a realidade23.01.2025 | 1 minutos de leitura
-
14. Olhando mais de perto: abusos emocional, institucional e financeiro13.01.2025 | 16 minutos de leitura
-
13. Olhando mais de perto: “abusos”, “abuso de poder” e “abuso espiritual06.01.2025 | 14 minutos de leitura
- 20. Serviços de Proteção (I)17.03.2025 | 6 minutos de leitura
- 19. Política de proteção (IV)10.03.2025 | 10 minutos de leitura
- 18. Política de proteção (III)24.02.2025 | 7 minutos de leitura
- 17. Política de proteção (II)17.02.2025 | 6 minutos de leitura
- 16. Olhando mais de perto: Política de proteção (I)10.02.2025 | 6 minutos de leitura
- 15. Olhando mais de perto: “abuso sexual”03.02.2025 | 8 minutos de leitura
- 14. Olhando mais de perto: abusos emocional, institucional e financeiro13.01.2025 | 16 minutos de leitura
- 13. Olhando mais de perto: “abusos”, “abuso de poder” e “abuso espiritual06.01.2025 | 14 minutos de leitura
- 12. Bendita vulnerabilidade23.12.2024 | 11 minutos de leitura
- 11. Ensaiando respostas (VI)16.12.2024 | 16 minutos de leitura