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4. Descobrindo algumas armadilhas (II)

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21.10.2024 | 6 minutos de leitura
Frei João F. Júnior - OFMCap
Evangelho do Cuidado
4. Descobrindo algumas armadilhas (II)
Os olhos são a lâmpada do corpo. 
Se os teus olhos forem bons, todo o teu corpo será cheio de luz. 
Mas se os teus olhos forem maus, todo o teu corpo estará em trevas. 
Portanto, se a luz que está em ti são trevas, quão grandes serão tais trevas!
(Mt 6,22-23)

À medida que os escândalos midiáticos e a crescente avalanche de denúncias revelaram o abuso em ambientes eclesiais como um fenômeno estrutural, amplamente conhecido pela hierarquia e historicamente tratado com silêncio cúmplice ou encobrimento leniente, surgiram também alguns “discursos apologéticos”. Uma espécie de “mecanismo de defesa” diante do horror que a realidade trazia, ora por sincero desconhecimento da complexidade da questão, ora com a ardilosa má intenção de sustentar a cultura do silêncio e da cumplicidade criminosa. Como dizíamos na semana anterior, Pe. Amedeo Cencini, em seu livro “Algo mudou na Igreja depois dos escândalos sexuais? – análise e propostas para a formação1, publicado em 2016, faz um apanhado desses “reverendos analfabetismos” que podem estar presentes também em nosso olhar e em nossos discursos a respeito do tema. Vejamos alguns deles. 

“Na minha comunidade isso não acontece” ou “se acontecesse aqui, eu saberia”. Os casos de abuso que ganharam visibilidade nos meios de comunicação foram, muitas vezes, tão emblemáticos que foram assimilados a partir de dois pontos de vista. Primeiro, ganharam ares de uma situação meio caricatural, com contornos muito exagerados. E, pelo exagero dos contornos, não é difícil reconhecer uma caricatura. Consequentemente, se uma situação como aquela acontecesse “aqui onde estou”, seria facilmente notada por mim e por todos – assim se pensa. O segundo ponto de vista foi a apresentação desses casos midiáticos como uma realidade muito distante, daquelas tão inacreditáveis que dificilmente aconteceriam “aqui, na vida real”, ou melhor, “na minha vida real”. Podem até acontecer, mas é como uma “coisa de novela”, lá em lugares muito distantes, ou em realidades muito diferentes da pacatez da nossa vida cotidiana. Na Igreja institucional, os abusos foram tratados às vezes como realidades circunscritas a alguns países ou típicas de algumas culturas específicas: “acontece na África ou na Amazônia, que são Igrejas jovens, onde o celibato não foi bem assimilado”, ou “acontece nos Estados Unidos, que têm uma cultura muito liberal e hedonista, sem limites morais...”. Foi preciso que as denúncias “se globalizassem” e pipocassem inclusive em Igrejas tradicionalmente muito comprometidas e contra clérigos muito dedicados e de moral pretensamente ilibada, por exemplo, para que esse discurso se calasse. E, pior: notou-se que os abusos apareciam nesses lugares de maneira muito silenciosa, cotidiana e sorrateira, praticamente naturalizada, que nada tinham a ver com aquela caricatura facilmente reconhecível. Segundo Pe. Cencini, essa “deslocalização geográfica” da percepção dos abusos anda de mãos dadas com outra “deslocalização geográfica”: a prática sistemática de transferência de clérigos ou religiosos abusadores por seus superiores, de um lugar a outro, sem nenhuma tratativa eficiente do problema. Apenas se transferia, como se transferir o problema para onde os olhos não veem (ou não viram ainda) já fosse um modo de resolvê-lo. Ao menos, até o próximo escândalo. 

“Isso é coisa de gente doente, desequilibrada psicologicamente...”. Expressões como “pedofilia na Igreja” e “padres pedófilos” nascem exatamente dessa percepção equivocada, segundo a qual a realidade dos abusos é, em primeiro lugar, uma questão “clínico-patológica”. E, em boa parte, essa interpretação foi fortalecida pela própria Igreja institucional, em sua maneira inicial (entre os anos 2000 e início dos anos 2010) de tratar os abusos a partir tão somente da responsabilização individual do agressor – certamente necessária, mas não suficiente. Foi o famoso discurso das “maçãs podres”, que precisam ser retiradas antes que apodreçam todo o cesto de maçãs saudáveis. Para os defensores dessa hipótese, os abusos em ambientes eclesiais são praticados (unicamente) por clérigos ou religiosos que padecem de alguma enfermidade psíquica/psiquiátrica, ou de alguma parafilia psicossexual. E que a solução, portanto, passa por uma prática “sanitarista” de retirar do clero ou da vida religiosa esses indivíduos doentes, ou de tratar sistematicamente (inclusive com tratamentos obrigatórios coercitivos) os indivíduos psicologicamente comprometidos, mas ainda “recuperáveis”. A prática de certas terapias obrigatórias durante o processo de formação inicial ou a implementação de certos “testes psicológicos milagrosos” na seleção dos candidatos (que ainda existem em muitos lugares) são resquícios dessa crença. Como se fosse possível “detectar um abusador” a partir de um diagnóstico clínico ou por meio de alguma ferramenta psicológica. Um agravante dessa percepção equivocada é que exatamente seu ponto de partida, a responsabilização individual, se vê por fim comprometido. Afinal, se o abuso nasce de uma fragilidade de saúde mental, o agressor, em última instância, não pode ser completamente responsabilizado. E vale lembrar: a imensa maioria dos abusadores denunciados, julgados e condenados (superior a 90%) não padecia de nenhuma parafilia psicossexual. 

“Isso é coisa de clérigos pervertidos, que descuidam a vida espiritual”. Por fim, vale tocar nesse “juízo moralista / espiritualista”, que lança os abusos na conta da “falta de oração”. Ledo engano, presente muitas vezes na boca de quem pressupõe uma divisão entre aqueles que são demasiados “espirituais” e “zelosos” e os demais que sucumbem às “armadilhas demoníacas” próprias de gente imoral e que não se compromete com as “exigências do ministério ou da vida religiosa consagrada”. Um dado interessante e bastante comum nos casos denunciados e julgados é exatamente o uso de uma certa “linguagem espiritual”, ou de uma tergiversação de categorias do acompanhamento espiritual ou da confissão, por exemplo, para encobrir o abuso. Uma espécie de “piedade perversa”, que mascara o abuso com justificativas espiritualizantes. Foi o susto que surpreendeu muitas comunidades diante de acusações de abuso: “mas justamente este padre/este religioso? Até esperaríamos de outro, mas não deste...”.
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 CENCINI, Amedeo. ¿Ha cambiado algo en la Iglesia después de los escándalos sexuales?: Análisis y propuestas para la formación. Madrid: Sígueme, 2016.



Ao longo da tratativa deste tema, pode ser que alguém sinta necessidade de falar, seja para contar experiências ou para tirar dúvidas. Se isso acontecer, você pode procurar a Comissão de Cuidado e Proteção ou o Serviço de Escuta da sua diocese, das congregações religiosas ou de outros organismos eclesiais. Ou pode escrever para joao.ferreira@clar.org para se informar melhor. 
Um abraço e até a próxima semana!



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