3. Descobrindo algumas armadilhas (I)
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14.10.2024 | 4 minutos de leitura

Evangelho do Cuidado

“Os olhos são a lâmpada do corpo.
Se os teus olhos forem bons, todo o teu corpo será cheio de luz.
Mas se os teus olhos forem maus, todo o teu corpo estará em trevas.
Portanto, se a luz que está em ti são trevas, quão grandes serão tais trevas!”
(Mt 6,22-23)
Nas aulas de Introdução às Escrituras, costumo dizer aos estudantes que os textos bíblicos estão cheios de problemas e de armadilhas. Afinal, foram escritos há muito tempo, com expressões culturais bem diferentes das nossas, com referências de mundo e de vida que às vezes não detemos, em línguas que frequentemente desconhecemos... mas que isso é apenas a metade. Pois a outra metade dos problemas e das armadilhas – assim digo a eles – não está no texto, mas nos olhos da gente. Pois é ali, nos olhos do leitor desavisado, que se escondem os princípios para uma leitura fundamentalista, uma interpretação moralista ou judicialista, uma dedução ingênua ou uma projeção doutrinalista, que violenta o texto fazendo caber nele afirmações dogmáticas enviesadas. E a realidade das comunidades (inclusive e sobretudo nas comunidades virtuais) demonstra o quanto esta segunda lista de armadilhas costuma fazer mais estrago do que aquela primeira...
Vale para a interpretação dos textos, vale para a interpretação da vida. Ao longo dos últimos anos, as denúncias e os informes produzidos em tantos lugares, dentro e fora da Igreja, apresentaram a existência dos abusos em ambientes eclesiais como (1) uma realidade sistêmica, (2) amplamente conhecida pela hierarquia e frequentemente (3) tratada com silêncio cúmplice ou encobrimento leniente. E, à medida que essa realidade foi sendo revelada, cada vez com mais clareza e abundância de denúncias, surgiram igualmente muitos “discursos apologéticos”, com objetivo de explicar, elucidar, justificar, abonar, desculpabilizar, minimizar, relativizar, desacreditar, desimputar... como acontece em todo sistema político-ideológico. Ora orientados a defender a instituição Igreja, ora preocupados em eximir os acusados, essas ferramentas atuaram, não raro, como um “mecanismo de defesa” da própria comunidade eclesial (de toda ela), pouco disposta (inclusive por susto e medo) a encarar a gravidade da situação e a assumir as consequências das opções evangélicas que nasceriam dessa descoberta. No fim, essa armadilha do “olhar que não quer ver”, esse mascaramento da realidade por meio de “discursos apologéticos” faz tão mal e é tão perigosa quanto os atos de abuso que termina por encobrir.
Pe. Amedeo Cencini, em seu livro “Algo mudou na Igreja depois dos escândalos sexuais? – análise e propostas para a formação”1 , publicado em 2016, faz uma longa lista dessas armadilhas. Ele as chama, atrevidamente, de “reverendos analfabetismos”, insinuando que, por mais bem-intencionados que pareçam, esses discursos revelam sempre duas possibilidades por parte de quem fala: ou sincero desconhecimento da complexidade questão, ou a ardilosa má intenção de sustentar a cultura do silêncio e da cumplicidade criminosa.
Afinal, até hoje, diante de novas denúncias de abusos, é comum que a gente ouça respostas como: “isso só acontece lá longe, aqui na nossa diocese/comunidade/congregação não existe”; ou “isso é coisa só de padres doentes, pedófilos e perversos, não é um problema da Igreja”; ou ainda “os casos são tão poucos, a mídia é que exagera”; ou “é um complô da mídia, que se aproveita da Igreja para ganhar dinheiro”; e “os denunciantes são mal-intencionados e só querem tirar dinheiro da Igreja”; ou mesmo “a Igreja é feita de seres humanos pecadores, por isso há que se tolerar que essas coisas aconteçam” e tantas outras afirmações... Cada uma delas representa um desses “discursos apologéticos”, verdadeiras armadilhas para quem deseja compreender melhor o fenômeno dos abusos e dedicar-se verdadeiramente à prevenção. Nas próximas semanas, vamos nos deter em algumas delas.
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1CENCINI, Amedeo. ¿Ha cambiado algo en la Iglesia después de los escándalos sexuales?: Análisis y propuestas para la formación. Madrid: Sígueme, 2016.
Ao longo da tratativa deste tema, pode ser que alguém sinta necessidade de falar, seja para contar experiências ou para tirar dúvidas. Se isso acontecer, você pode procurar a Comissão de Cuidado e Proteção ou o Serviço de Escuta da sua diocese, das congregações religiosas ou de outros organismos eclesiais. Ou pode escrever para joao.ferreira@clar.org para se informar melhor.
Um abraço e até a próxima semana!
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