2. Desmontando preconceitos
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07.10.2024 | 4 minutos de leitura

Evangelho do Cuidado

“Pois nada há de oculto que não venha a ser revelado,
e nada em segredo que não seja trazido à luz do dia.”
(Mc 4,22)
Quando falamos da “crise dos abusos” na Igreja, estamos nos referindo a um processo complexo desencadeado pelas sucessivas denúncias de abuso sexual por parte de membros do clero e da vida religiosa consagrada, perpetrados contra crianças e adolescentes, sobretudo em ambientes eclesiais. Existem documentos que atestam essas ocorrências desde muito tempo, mas o primeiro caso de repercussão pública foi denunciado em 1985, nos Estados Unidos. A partir dos anos 2000, as denúncias se multiplicaram em vários países e revelaram, em parte graças ao jornalismo investigativo, a realidade dos abusos como um fenômeno sistêmico, amplamente conhecido pela hierarquia da Igreja e historicamente tratado de maneira leniente e encobridora. Os sucessivos escândalos e sua ampla repercussão na sociedade civil instalaram uma profunda crise na credibilidade da Igreja Católica, exigindo uma resposta à altura. A seu tempo, vamos falar sobre os passos dessa resposta.
Mas existe um dado importante que precisa ser considerado, já no início da conversa: o assunto foi pautado pela sociedade e pela Igreja porque muitos casos ganharam repercussão através dos meios de comunicação; mas isso não significa que todas as faces do abuso em ambientes de Igreja correspondam àqueles elementos presentes nos casos que viraram notícia.
Vamos explicar melhor. Quase sempre, os casos que ganharam destaque na imprensa tinham algumas características em comum: (1) os abusadores eram ministros ordenados (em geral, presbíteros); (2) as vítimas eram crianças (ou seja, de até 11 ou 12 anos de idade); (3) em geral, o mesmo perpetrador abusava de muitas crianças, sucessivamente ou ao mesmo tempo; (4) o abuso, já de saída, tinha natureza explicitamente sexual; (5) o abuso supunha sempre atitudes de deflagrada violência física ou ameaça. A coincidência desses elementos nos casos noticiados pela mídia permitiu, inclusive, que se cunhassem expressões como “pedofilia na Igreja Católica”, “padres pedófilos” etc. E pode ser que muitos de nós, quando ouvimos falar em “abusos na Igreja”, tenhamos ainda na cabeça essa imagem preconcebida do problema e esse “perfil” predeterminado de abusador.
Porém, um olhar para os casos que efetivamente foram denunciados, investigados e julgados revela uma realidade bastante diferente – e, talvez, mais grave. (1) De saída, descobrimos que não somente os ministros ordenados podem abusar, embora esse percentual seja o mais alto; já temos, por exemplo, sentenças de condenação por abuso dirigidas a ministros leigos e a religiosas consagradas. (2) Descobrimos também que a incidência de ‘pedofilia’ não representa a maioria dos abusos perpetrados em ambientes eclesiais, mas o percentual mais alto entre as vítimas é de adolescentes, entre 13 e 17 anos. E que podem acontecer abusos, inclusive, contra pessoas adultas que se encontrem em alguma situação de vulnerabilidade frente ao agressor. (3) Do mesmo modo, embora existam casos de abusadores em série, muitas vezes acobertados e transferidos por superiores religiosos ou por bispos, a maior parte dos casos registrados é de agressores que tiveram um número limitado de vítimas. (4) Constatamos que o abuso sexual, quando chega a acontecer, geralmente foi precedido de sucessivos abusos de poder e de consciência. Ou mesmo de “abuso espiritual”, que é um conceito novo, do qual falaremos mais adiante. (5) E, por fim, que o abuso pode acontecer durante muito tempo e com um grau tão grande de manipulação da consciência, dos sentimentos e das emoções, que a vítima demore a se dar conta do caráter abusivo da relação.
Ou seja, os escândalos midiáticos têm o seu papel e foram, em grande parte, responsáveis por uma maior atenção da sociedade e da Igreja para o tema. Mas a realidade é muito mais complexa e exige de nós muito mais atenção e mais coragem do que parece.
Se algum desses termos ou desses temas deixou você em dúvida, não se preocupe. Teremos oportunidade de retomar todos eles, pouco a pouco.
Ao longo da tratativa deste tema, pode ser que alguém sinta necessidade de falar, seja para contar experiências ou para tirar dúvidas. Se isso acontecer, você pode procurar a Comissão de Cuidado e Proteção ou o Serviço de Escuta da sua diocese, das congregações religiosas ou de outros organismos eclesiais. Ou pode escrever para joao.ferreira@clar.org para se informar melhor.
Um abraço e até a próxima semana!
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