3. Os Evangelhos: testemunhos do Ressuscitado


Compreendida a distinção entre fato e verdade, que não se opõem, mas se complementam, assim como entre inspiração e verdade, podemos nos perguntar: Como nasceram os textos dos Evangelhos? Já sabemos que não são “relatórios”, nem “atas”, nem “reportagens” sobre Jesus. Ou seja, que sua preocupação fundante não são os fatos históricos da vida de Jesus. Nesse sentido, não são biografias de Jesus, no sentido moderno da palavra. Tanto que um exame simples de comparação dos textos revelaria, certamente, coincidências nos relatos, mas também contradições inconciliáveis, se considerarmos as referências históricas como critério último de análise. E, curiosamente, essas constatações não perturbaram as primeiras comunidades, pois nem os autores, nem os leitores procuravam nos textos relatos que hoje chamaríamos “históricos”. A preocupação fundamental dos evangelhos é teológica, acompanhada da convicção de que as verdades profundas da vida e da fé podem ser ditas de muitos modos...
É comum o conhecimento de que Jesus não escreveu seus ensinamentos. Hoje, sabemos que tampouco seus contemporâneos escreveram uma linha sequer do Novo Testamento. As crenças de que, talvez, o autor do Evangelho de Mateus fosse “Levi, o Publicano”, chamado por Jesus, ou de que o Quarto Evangelho fosse obra de João, um dos Doze, são, atualmente, cada vez mais questionadas. Disto, falaremos melhor na introdução a esses Evangelhos. Mas, de acordo com os estudos recentes, podemos afirmar com certeza que, nos primeiros anos das comunidades cristãs, não havia a necessidade de escrever os relatos acerca de Jesus. A própria comunidade era testemunho vivo de suas palavras e suas ações, seja através de testemunhas oculares (que conheceram Jesus), seja através da pregação dos Apóstolos. Mais tarde, aparecem as Cartas de Paulo às várias comunidades e, somente a partir do ano 70, surgem os Evangelhos que conservamos na Bíblia. Ou seja, entre a segunda e a terceira geração de cristãos, quando as testemunhas oculares e os apóstolos já começam a faltar e quando já principiam as perseguições aos seguidores de Jesus, tanto por parte dos judeus, quanto pelos romanos, é aí que os Evangelhos que conhecemos são escritos.
O que encontramos, portanto, nos Evangelhos? Encontramos os relatos acerca da experiência de Jesus Ressuscitado, feita por uma determinada comunidade, num contexto específico. Nesses relatos, sobrevivem memórias de testemunhas, ou seja, o modo como Jesus era lembrado nessas comunidades (suas palavras, suas posturas, suas ações e, sobretudo, sua paixão e morte), mas também a maneira como essas comunidades de discípulos do Senhor encontram respostas aos desafios de sua fé no contexto em que vivem, iluminadas pela experiência do Ressuscitado: Jesus vive e caminha conosco, sempre. Ou seja: a “pedra fundamental” dos evangelhos é a experiência do Ressuscitado. Toda a vida de Jesus (passado), como também a vida e a esperança da comunidade (presente e futuro) são relidas à luz dessa experiência fundamental.
E como essa experiência é transmitida? Jesus era judeu – plenamente – e os evangelhos foram gestados num ambiente que mesclava elementos culturais judaicos e gregos. Para um judeu, a Escritura é a “Palavra de Deus feita livro”, mas só é possível acessar essa Palavra pelo ensino, numa relação de mestre-discípulo. Para os antigos judeus, assim como para os cristãos católicos, a interpretação da Escritura não é individual. Mesmo quando se lê sozinho, a Bíblia deve ser interpretada no seio da comunidade, a partir da comunidade e em vista da comunidade de fé – através do ensino. Os evangelistas herdam essa concepção judaica e, a partir dos elementos mais fundamentais da fé de Israel, compõem um ensino acerca de Jesus, cada qual a seu modo. Os Evangelhos são, pois, catequeses sobre Jesus, construídas com a intenção (ora explícita, ora implícita) de transmitir um determinado ensino sobre a fé no Ressuscitado – fé que funda, caracteriza e constitui a Igreja.
Por isso, cada um dos evangelhos reconstrói a figura de Jesus a seu modo, com características próprias, a partir do ensino a ser transmitido. Como veremos, a própria estrutura dos textos evangélicos, a escolha dos temas, das palavras a serem utilizadas, tudo isso já demonstra qual o ensino pretendido pelo “autor-catequista”.
Assim, compreendendo bem as chaves de leitura dos textos, suas perguntas fundantes e sua preocupação fundamental, a leitura dos Evangelhos se torna muito mais produtiva e volta àquela intenção primordial dos autores: oferecer à comunidade um ensino que convide a aprofundar sempre mais a fé em Jesus Cristo Ressuscitado, nosso Senhor.
Crédito da imagem: http://mensageira-jb.blogspot.com.br/2010/06
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