2. Inspiração e verdade


Não só dos Evangelhos, mas de todos os textos da Sagrada Escritura, se ensina: “são textos inspirados”; ou ainda: “foram escritos sob inspiração do Espírito Santo” (Catecismo da Igreja Católica §105ss). Assim como na relação entre “fato e verdade” (que tratamos na primeira reflexão), também entre “inspiração e verdade” há alguns aspectos que merecem ser explicitados.
A maioria dos equívocos no que concerne à inspiração dos textos sagrados está numa compreensão limitada daquele que gera a inspiração, como a própria palavra já insinua: o Espírito. Comumente, o conceito de “espírito” é utilizado para marcar a separação daquilo que escapa (quando não se opõe) à materialidade e à corporeidade, fundando o tão difundido dualismo entre “corpo/alma”, “carne/espírito”, “terra/céu”, “mundo/Deus”, “tempo/eternidade”. Essas e outras tantas duplas de conceitos são apenas diferentes enunciados que descrevem a mesma ideia: a realidade, como a vemos, seria apenas um rastro enganoso e provisório das verdadeiras realidades, essas sim eternas e perfeitas. Por isso, para além daquilo que cotidianamente compõe esta vida passageira, muito mais importante seria buscar aquilo que não passa, aquilo que é eterno. Talvez, muitos de nós já estejamos tão acostumados a essa maneira de interpretar o mundo que tenhamos até nos esquecido de que é exatamente isto: uma interpretação. De origem grega, essa “cosmovisão” termina por dividir tudo em dois: o mundo, o tempo, a vida, a pessoa... tudo se encontraria moralmente dividido entre bom e mau, dependendo de sua orientação intrínseca para o bem ou o mal, para a perdição ou a salvação. Assim, as “coisas do mundo” se oporiam às “coisas de Deus”, enquanto as “coisas materiais” se separariam radicalmente das “coisas espirituais”.
Entretanto, a experiência bíblica do Espírito em nada se assemelha a isso. Tanto a ruah hebraica quanto o pneuma grego (palavras que serão traduzidas pela forma latina spiritus) se traduzem, antes de tudo, por “vento”, “movimento de ar”. Fazem, portanto, referência originalmente a algo material, com características próprias: não se vê o vento, mas são visíveis seus efeitos; não se pode aprisioná-lo ou dispor dele, pois não se sabe nem de onde vem e nem para onde vai; mesmo sem tomá-lo nas mãos, sente-se o frescor de sua passagem. Assim, os antigos usavam essa imagem para descrever aquelas realidades que traziam em si algo de oculto, de misteriosamente livre, capaz de modificar tudo a sua volta, sem, ainda assim, deixar-se ver ou instrumentalizar; aquilo que, à primeira vista, podia até passar despercebido, mas experienciável através de um pouco de intimidade. E, por isso, o “vento” serviu para descrever a presença de Deus mesmo. Silenciosa, essa presença sustenta e impulsiona, não a partir de fora, mas de dentro, o ser de todas as coisas; constitui-se no princípio vital que se mostra, simultaneamente, aquilo que de mais íntimo há em nós e aquilo que de mais comum nos une a todos.
Desse modo, ao contrário do que às vezes se crê, a inspiração não pode ser um processo originado “no céu”, fora de nós e do mundo, como um “meteoro” que cai pronto no chão da história, ou uma mensagem “psicografada” pelos autores sagrados, em que cada palavra e cada vírgula são ditadas pelo próprio Deus, em voz audível. A constituição dogmática Dei Verbum, do Concílio Vaticano II, em 1965, já advertia que, justamente porque se compreende Deus como autor da Escritura, segue-se que os textos são fruto do esforço de seres humanos que, em suas potencialidades e qualidades, são também seus verdadeiros autores (cf. §11). Porque também para a Escritura vale o princípio da encarnação: Deus, quando quis nos falar, fez-se um de nós, assumindo nossa natureza, nossa cultura e nossa linguagem. Feito homem, mostrou-nos tudo o que Ele é, enquanto nos fez compreender também tudo o que somos. Se a suprema revelação do Pai, Jesus Cristo, falou-nos a partir de nossa natureza e de nosso mundo, assim também o Espírito nos fala pelas Escrituras, supondo e assumindo nossa vida e as limitações da nossa linguagem.
Por isso, reconhecer a inspiração das Escrituras não dispensa o estudo e o aprofundamento. Pois, se é verdade que por elas nos fala o Espírito, é também verdade que nos fala através de um texto escrito num determinado período, circunscrito num determinado contexto, com determinadas intenções, a partir de um paradigma cultural específico. Encontrar a Palavra de Deus nas entrelinhas dos Escritos Sagrados – essa é a tarefa que nos ocupa. Tanto judeus quanto cristãos concordam que, sem a cuidadosa interpretação, o texto é morto. Mas, cada vez que os olhos de um leitor atento o percorrem, o próprio Espírito o conduz e as palavras antigas ganham nova vida. De modo que a inspiração começa na redação do texto, mas continua em sua leitura e interpretação. E, para tanto, serão sempre muito úteis as ferramentas da exegese e da hermenêutica, da linguística e da semiótica, da história e dos gêneros literários do povo de Israel e das primeiras comunidades cristãs que, conduzidas pelo Espírito e atentas aos desafios de seu tempo, sedimentaram sua experiência religiosa nos textos que hoje nos são oferecidos, portadores eficazes da Palavra de Deus, disponível àqueles que a buscam com os meios adequados e de coração sincero.
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