29. O Discípulo Rico e o Mestre Pobre (Mc 10,17-34)


10
17 Jesus saiu caminhando, quando veio alguém correndo, caiu de joelhos diante dele e perguntou: “Bom Mestre, que devo fazer para ganhar a vida eterna?”18 Disse Jesus: “Por que me chamas de bom? Só Deus é bom, e mais ninguém.19 Conheces os mandamentos: não cometerás homicídio, não cometerás adultério, não roubarás, não levantarás falso testemunho,não prejudicarás ninguém, honra teu pai e tua mãe!”.20 Ele então respondeu: “Mestre, tudo isso eu tenho observado desde a minha juventude”.21 Jesus, fitando-o, com amor, lhe disse:“Só te falta uma coisa: vai, vende tudo o que tens, dá o dinheiro aos pobres e terás um tesouro no céu. Depois, vem e segue-me”.22 Ao ouvir isso, ele ficou pesaroso por causa desta palavra e foi embora cheio de tristeza, pois possuía muitos bens.23 Olhando em volta, Jesus disse aos seus discípulos: “Como é difícil, para os que possuem riquezas, entrar no Reino de Deus”.24 Os discípulos ficaram espantados com estas palavras. E Jesus tornou a falar:“Filhos, como é difícil entrar no Reino de Deus!25 É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus!”.26 Eles ficaram mais admirados e diziam uns aos outros: “Quem então poderá salvar-se?”27 Olhando bem para eles, Jesus lhes disse:“ Para os homens isso é impossível, mas não para Deus. Para Deus tudo é possível!”28 Pedro começou a dizer-lhe: “Olha, nós deixamos tudo e te seguimos”.29Jesus respondeu: “Em verdade vos digo: todo aquele que deixa casa, irmãos, irmãs, mãe, pai,filhos e campos, por causa de mim e do evangelho,30 recebe cem vezes mais agora, durante esta vida – casas, irmãos, irmãs, mães, filhos e campos, com perseguições –, e no mundofuturo, vida eterna.31 Muitos, porém, que são primeiros, serão últimos; e muitos que são últimos serão primeiros”.32 Estavam a caminho, subindo para Jerusalém. Jesus ia à frente, e eles, assombrados,seguiam com medo. Jesus, outra vez, chamou os doze de lado e começou a dizer-lhes o que estava para acontecer com ele:33 “Estamos subindo para Jerusalém, e o Filho do Homem será entregue aos sumos sacerdotes e aos escribas. Eles o condenarão à morte e o entregarão aos pagãos.34 Vão zombar dele, cuspir nele, açoitá-lo e matá-lo, mas três dias depois, ele ressuscitará”.
Situando...
Jesus continua seu caminho para Jerusalém, onde sua identidade de Messias inesperado será finalmente exposta a todos. Nesse caminho derradeiro, os discípulos têm ainda muitas chances de compreender seu Mestre. Ele já lhes falara das crianças, cujo exemplo deve ser seguido por todos que queiram adentrar o Reino (cf. Mc 10,14-15). É ainda sobre isso que lhes falará na perícope que segue.
O pretenso discípulo rico
“Jesus saiu caminhando” (v. 17), com aquela pressa que lhe é característica em Mc. Afinal, é urgente anunciar a boa notícia do tempo que se cumpriu e do Reino que chegou – já não há mais o que esperar (cf. Mc 1,15). É quando, de modo inusitado, vem ao seu encontro uma pessoa e se prostra. O Evangelho de Mateus dirá que é um jovem. Marcos não esclarece, mas insinua ser alguém mais vivido, pois ele afirmará cumprir os mandamentos “desde a juventude” (v. 20). De todo modo, parece estranha a atitude desse homem que vem “correndo” no caminho. Chega a nos lembrar o endemoninhado de Gerasa, que corre e se prostra diante de Jesus, gritando quem ele é e violando o segredo messiânico (cf. Mc 5,6-7). Pela sua correria, logo se vê que não é alguém “do caminho”, familiarizado com o seguimento. Pois, se “o caminho” é o símbolo que Mc utiliza para o discipulado, poderíamos nos perguntar: acaso será possível correr “no caminho”? Ou seja, fazer apressadamente os passos de Jesus e querer dele respostas imediatas para as questões profundas do coração? Ou ainda: seria possível compreender de uma vez por todas e às pressas quem é Jesus? Mc já nos está ensinando que não...
Note-se que o homem é bem intencionado e chega a chamar Jesus de “Bom mestre”. Isso não significa, porém, que ele saiba “quem é Jesus”. Se soubesse o significado de chamá-lo “bom mestre”, ele se mostraria “bom discípulo”. Mas o “bom discípulo” não corre atrás do mestre, não lhe passa à frente, mas segue-o com paciência, aprendendo de cada passo dado no caminho. Tanto que Jesus não se deixa bajular e reage: “Só Deus é bom e mais ninguém” (v. 18).
No entanto, para além dessas limitações, o homem traz a mais importante e mais profunda de todas as perguntas, aquela que brota de todo coração humano, de todos que estão “dentro” mas também daqueles que estão “fora do caminho”: “Que devo fazer para ganhar a vida eterna?”. Todos nós, discípulos ou não, cedo ou tarde, nos deparamos com essa pergunta. Afinal, diante de tanto sofrimento e angústia, de tanta desilusão e morte, há algo que torne eterna nossa vida? Existe alguma realidade que possa ser verdadeiramente objeto de nossa esperança? Qual? Essa foi a pergunta que levou o homem a Jesus – como pode ter trazido também muitos de nós.
Jesus responde ao homem com os mandamentos da Escritura, apresentados a todo judeu como caminho de salvação: “não matarás, não cometerás adultério, não roubarás, não mentirás, não prejudicarás a ninguém, honrarás pai e mãe” (v. 19). O homem, que até agora nos surpreendeu, responde de maneira ainda mais surpreendente: “Tudo isso tenho observado desde a minha juventude” (v. 20). Mas há algo errado aqui. De um lado, os mandamentos apresentados por Jesus são seis – número de imperfeição, de incompletude, de precariedade. Tanto que, mesmo fiel a esses preceitos, o homem procura algo mais. O estrito cumprimento da Lei não lhe sanou a sede de eternidade que ele traz no coração. E por isso ele vem a Jesus. O discípulo já sabe: não basta cumprir os mandamentos. De outro lado, o homem se gloria de cumpri-los. A retidão lhe enche de orgulho e já não lhe falta nada para alcançar aquela perfeição apregoada pela Lei. Por que então o coração ainda lhe pede alguma coisa?
Jesus sabe o que falta ao homem. Como descobriu? “Fitando-o com amor” (v. 21). Pois somente o amor é capaz de revelar as verdadeiras necessidades do coração, de penetrar as fendas mais profundas da alma, de sanar todas as buscas. “Só uma coisa te falta” – diz Jesus ao acrescentar o “sétimo mandamento”, que confere perfeição aos outros seis: “Vai, vende tudo o que tens, dá o dinheiro aos pobres e terás um tesourono céu. Depois, vem e segue-me”. Se o cumprimento dos seis mandamentos anteriores o enchia de orgulho, falta-lhe um que o esvazie de si mesmo; se os outros seis acumulavam méritos, esse último abre à humildade e à pequenez. Tal como as crianças, a quem Jesus disse pertencer o Reino (cf. Mc 10,14-15– Estudo 28), também a esse homem Jesus pede que seja pequeno, que se esvazie das expectativas de um Messias conformado ao Rei poderoso e da espera de um Reino implantado pelo rigor da Lei. O “sétimo mandamento”, proposto ao homem por Jesus, não dispensa os outros seis, mas completa-lhes o sentido: não importa ajuntar merecimentos pelo cumprimento perfeito da Lei, numa atitude orgulhosa que enche de si mesmo, mas interessa a sabedoria de saber-se dependente de Deus, limitado de si mesmo, doado aos pobres e entregue às incertezas do caminho do seguimento. Essa liberdade falta ao homem – e é exatamente o que Jesus lhe oferece.
O homem se decepciona, “pois possuía muitos bens” (v. 22). Talvez possuísse de fato muitos recursos, mas sobram-lhe principalmente pretensão e orgulho. Não é possível adicionar nada àquele que se acredita cheio; não adianta oferecer água a quem não tem sede. No caminho do seguimento, não se acumulam riquezas nem seguranças. Pelo contrário, a incerteza do caminho arranca até as seguranças que se pensava possuir. O caminho do discípulo, tal como o do Mestre, será o de gradativo abandono nas mãos de Deus, esperança última de quem quer chegar. O Reino de Deus pertence, pois, aos pobres – insiste Jesus (v. 23). Não a pobreza miserável da falta dos bens necessários à vida, mas a mesma pobreza das crianças, despretensiosas por natureza, que não podem se gloriar a não ser de sua dependência.
Ao que parece, até os discípulos, que já há tempos estão no caminho, se assustam com essa constatação de Jesus (v. 24), ao que ele insiste: é difícil entrar no Reino de Deus (v. 25). Não deveriam se surpreender, pois esta foi exatamente a primeira advertência de Jesus, em sua primeira pregação: embora o tempo já tenha se cumprido e o Reino já tenha chegado, é preciso se converter para acreditar nessa boa notícia (cf. Mc 1,15). E Jesus continua, com uma imagem que ficou na memória de muita gente: “É mais fácil um camelo passar peloburaco de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus!” (v. 25). Muitos tentam explicar o que seria esse “camelo” e esse “buraco de agulha”, mostrando que seria possível passar um pelo outro, com alguma dificuldade. Talvez, essa frase pudesse ser entendida assim mesmo, como uma imagem exagerada, uma parábola desconcertante – como todas as parábolas. Porque, de fato, segundo Mc, é impossível entrar no Reino sem renunciar às pretensões. Aos discípulos, que entendem literalmente as palavras do Mestre e se desesperam pela impossibilidade de seu cumprimento (v. 26), Jesus responde com um olhar fixo e um sábio conselho: apenas para Deus isso é possível (v. 27). Ou seja, quando nos convertemos e cremos na boa notícia do Reino, renunciando às pretensões e entrando nele com alegria, mesmo aí é a graça de Deus que age em nós. O discípulo não se gloria de nada, nem mesmo de sua conversão e sua fé. Pois também elas são dons confiados a ele pelo Espírito. Se nos convertemos, já é uma resposta ao convite de amor que nos foi feito. O primeiro passo é sempre de Deus. É, portanto, possível que seja verdadeira aquela hipótese de que Marcos fosse companheiro de Paulo. Pois também nesse aspecto – a primazia da graça – os dois se aproximam muito (cf. Gl 6).
Como de costume, Pedro fala em nome dos doze: “Deixamos tudo e te seguimos” (v. 28). Estaria também ele tomado da mesma presunção do homem “rico”? Se sim, Jesus responde à altura com duas promessas: cem vezes mais de tudo aquilo que foi deixado, mas com as perseguições inerentes ao seguimento e ao Reino; e a vida eterna – tão desejada pelo homem “rico” que se entristeceu e foi embora (v. 29-30). Mas que Pedro e os outros não se enganem, porque também aqui não há lugar para julgamentos e aparências. Muitos que parecem ser os “primeiros” no seguimento, capazes de abandonar tudo pelo Reino, podem se revelar “últimos” no discipulado; enquanto outros considerados “últimos” sejam na verdade “primeiros” no seguimento (v. 31). Todo o julgamento estará no campo da Lei, dos seis mandamentos citados por Jesus ao homem “rico”. Mas agora sabemos: o sétimo será decisivo.
O inesperado messias pobre
Pela última vez, na “reta final” do caminho do discipulado, rumo a Jerusalém (v. 32), Jesus falará sobre sua identidade messiânica. Ele segue à frente, como cabe ao mestre. Os discípulos, que a esta altura já estão se dando conta do tipo de Messias que seguem, vão atrás, temerosos. E é claro que essa conversa tão íntima se dá “no caminho”, “a sós”, como deve ser entre mestre e discípulos.
Pela primeira vez, Jesus diz claramente para onde vai: Jerusalém (v. 33). E se refere ao seu fim como “entrega” nas mãos das autoridades judaicas, que por sua vez o “entregarão aos pagãos”. Mais uma vez, Mc sintetiza o processo tramado contra Jesus e nomeia seus responsáveis. Para quem ainda tivesse dúvida, as palavras de Jesus são claras: zombaria, cusparada, açoite e morte – esse é o messias a quem seguem. Nada de presunção, nem honraria, nem mérito. Pois exatamente do fundo desse lamaçal de maldade e violência emergirá o Ressuscitado (v. 34).
* * *
No seguimento de Jesus, não há lugar para que o discípulo se glorie de coisa alguma. Pois ele sabe que, desde quando se converteu, acreditou no evangelho e se pôs a caminho, está nas mãos de Deus. Também a nós se impõe a necessidade de nos esvaziarmos de toda expectativa que se oponha ao Mestre que seguimos. Sem a graça, não há pretensa justiça capaz de nos adentrar no Reino.
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