28. Os mais frágeis do Reino (Mc 10,1-16)


1 Jesus se pôs a caminho e foi dali para a região da Judéia, pelo outro lado do rio Jordão. As multidões mais uma vez se ajuntaram ao seu redor, e ele, como de costume, as ensinava.2 Aproximaram-se então alguns fariseus e, para experimentá-lo,perguntaram se era permitido ao homem despedir sua mulher.3 Jesus perguntou: “Qual é o preceito de Moisés a respeito?”4 Os fariseus responderam: “Moisés permitiu escrever um atestado de divórcio e despedi-la”.5 Jesus então disse: “Foi por causada dureza do vosso coração que Moisés escreveu este preceito.6 No entanto, desde o princípio da criação Deus os fez homem e mulher.7 Por isso, o homem deixará pai e mãe e se unirá à sua mulher,8 e os dois formarão uma só carne; assim, já não são dois, mas uma só carne.9 Portanto, o que Deus uniu o homem não separe!”10 Em casa, os discípulos fizeram mais perguntas sobre o assunto.11 Jesus respondeu: “Quem despede sua mulher e se casa com outra, comete adultério contra a primeira.12 E se uma mulher despede seu marido e se casa com outro,comete adultério também”.13 Algumas pessoas traziam crianças para que Jesus as tocasse. Os discípulos, porém, as repreenderam.14 Vendo isso, Jesus se aborreceu e disse: “Deixai as crianças virem a mim.Não as impeçais, porque a pessoas assim é que pertence o Reino de Deus.15 Em verdade vos digo: quem não receber o Reino de Deus como uma criança, não entrará nele!”16 E abraçava as crianças e, impondo as mãos sobre elas, as abençoava.
Situando...
A partir daqui, Jesus começa sua subida para Jerusalém. Mc a apresentará como duplamente decisiva: decisiva para quem ainda deseja conhecer “quem é Jesus”, mas também decisiva na trama de maldade que tentará por fim à sua vida. Dois esforços que terão um final comum: o mistério pascal. Nele, os opositores de Jesus pensarão ter vencido; mas é exatamente quando o discípulo compreenderá, de modo definitivo, quem é o seu Mestre. Logo de saída, um traço distintivo do Messias Jesus: a predileção pelos mais frágeis do Reino.
As divorciadas
Jesus “se põe a caminho” (v. 1) – como sempre, em Mc. Virá não pela Samaria, pelas terras estrangeiras, “do outro lado do Jordão”. As multidões continuam a segui-lo e ele lhes ensina – uma cena que já vimos repetidamente.
Porém, mal ele principia o caminho para Jerusalém, vêm ao seu encontro alguns fariseus (v. 2). Segundo Mc, eles serão corresponsáveis pela morte de Jesus. Diferentes da multidão, que vêm para ouvir Jesus, os fariseus querem “experimentá-lo”, ou melhor, “pô-lo à prova”, “tentá-lo”. Também esse comportamento não lhes é novo. Desta vez, impõem a Jesus uma questão particularmente controversa: a legalidade do divórcio.
É importante, para nós que lemos o texto hoje, considerarmos que ele não se refere à nossa doutrina católica sobre a indissolubilidade do sacramento do Matrimônio. Isso seria anacronismo. Pelo contrário, nossa doutrina é que se reporta a uma determinada interpretação desse texto e de outros, acrescida de uma longa caminhada histórica de formulação. Além disso, o texto tem como horizonte o matrimônio judaico e as implicações sociais e culturais dessa instituição. Ou seja, somente de modo indireto e mediado pela interpretação podemos tomá-lo como referido ao matrimônio cristão.
Voltemos ao texto. Os fariseus impõem a Jesus a questão pela legitimidade do divórcio – para experimentá-lo, nos assegura Mc. Assim como em outras ocasiões, a pergunta é controversa e qualquer resposta que fosse dada serviria à condenação. Se Jesus aprovasse o divórcio, os fariseus o acusariam de atentar contra o casamento instituído por Deus, colocando-o em descrédito diante da multidão. Se Jesus reprovasse o divórcio, o acusariam de desconsiderar a Lei de Moisés e o ofereceriam igualmente ao descrédito. Poderia se dizer: era uma “sinuca de bico”, uma armadilha.
Jesus devolve-lhes pergunta: “Que diz o preceito de Moisés?” (v. 3). É justo que eles respondam, pois quem lhe está pondo à prova são fariseus, entendedores e professores da Lei de Moisés. Eles, mais que ninguém, devem saber lidar com os preceitos da Torah, por mais controversos que sejam. E a resposta dos fariseus está, de fato, fundamentada na Lei: é permitido ao homem escrever uma “carta de divórcio” e despedir sua mulher (cf. Dt 24,1).
Aqui, um esclarecimento sobre as graves realidades que essa prescrição produziu. Sabemos que, na cultura judaica, a mulher não é propriamente uma pessoa, mas um “bem” possuído pelo homem. São numerosos os textos em que os crimes contra a mulher são enquadrados como crimes contra a propriedade. Quando solteira, a mulher pertence ao pai e, no casamento, ela é entregue à posse do marido – tal como até hoje se insinua nos ritos cristãos do matrimônio, em que a noiva é entregue ao noivo pelo pai. Finalmente, se ocorrer de falecer o marido, a mulher passa a pertencer ao filho mais velho. Daí, compreendemos a gravidade do divórcio. No caso de ser repudiada pelo marido, resta à mulher voltar à casa do pai ou tentar se casar novamente. As duas coisas são improváveis. Primeiro, porque o pai pode não aceitar em casa a filha divorciada, envergonhada pelo repúdio do marido, que na prática constituiria novamente para a família a obrigação de procurar casamento ou a vergonha da velhice estéril. Segundo, porque dificilmente um homem preferiria se casar com uma divorciada, em vez de escolher uma virgem, acompanhada do dote do pai. Não era raro, portanto, que maridos dessem carta de divórcio a esposas idosas ou doentes e se casassem com outras mais jovens. Como também não era raro que as divorciadas terminassem desamparadas e lançadas à prostituição ou à mendicância. Esse é, pois, o pano de fundo do ensinamento de Jesus que vem a seguir.
Jesus lança mão do “argumento da antiguidade”, segundo o qual quanto mais antiga for a prescrição, mais legítima ela é. Ou seja, mais antiga do que a Lei de Moisés, dada no Sinai, na qual se encontra a brecha legal do divórcio, é o mandamento de Deus dado na criação do mundo, quando ordenou que homem e mulher se unam por amor e formem uma só carne (v. 5-8). E ainda mais: segundo Jesus, Moisés permite o divórcio, quase desautorizando o mandamento divino dado na criação, não por vontade própria ou revelação de Deus, mas por causa da “dureza do coração” do povo. Assim, se compreendem as palavras severas de Jesus: “o que Deus uniu o homem não separe” (v. 9). De fato, quando duas pessoas se unem por amor, e isso implica a bênção de Deus, que é fonte de todo amor, ninguém tem o direito de separá-las. E não há interesse ou artifício legal capaz de legitimar a separação de duas pessoas e a dissolução de um casamento unido pelo amor.
Na prática, Jesus termina por defender os mais fracos – no caso, as mulheres divorciadas. Mas também defende o fundamento do amor, contra o qual não há lei.
“Em casa”, ou seja, na intimidade com o Mestre, os discípulos fazem mais perguntas a respeito (v. 10). Jesus mantém seu ensinamento, explicitando as consequências: o homem que despede sua mulher por meio da “carta de divórcio” para se casar novamente não só comete adultério como também se torna responsável pelo possível adultério de sua mulher repudiada (v. 11), do mesmo modo como a mulher que despede seu marido para casar-se com outro responsabiliza-se pelo adultério próprio e do marido repudiado. Esses casos, em que a mulher despedia o marido, sobretudo na condição de ele exercer um trabalho impuro (como curtidor de couro, por exemplo), estavam previstos na Lei, mas eram raros os casos concretos. Afinal, ao despedir o marido, a mulher se punha em situação de grande fragilidade. Elas não se arriscavam a tal ponto. Observe que, ao final, Jesus iguala os direitos do homem e da mulher. Por mais improvável que fosse a mulher dar a carta do divórcio, que ficasse bem claro: elas também tinham este direito; coisa não reconhecida pelos fariseus no começo do texto, que aplicam a lei somente ao marido.
As crianças
Falando ainda em defender os mais frágeis, Mc insere um encontro de Jesus com crianças. Ainda em casa, ao que parece, as pessoas trazem crianças para que Jesus toque nelas, ao que os discípulos tentam impedir (v. 13). Curioso como, mesmo tendo ouvido o ensinamento de Jesus à multidão e aos fariseus, e mesmo depois de conversar com ele em casa, os discípulos ainda se enganam em relação a Jesus. A atitude dos discípulos é até justificável, pois as crianças não só poderiam perturbar o mestre, mas tocá-las constitui impureza legal. Incapazes de se purificar pelo cumprimento da Lei e entregues às traquinagens infantis, as crianças são permanentemente impuras. Um impedimento justificável, mas incompatível com o tipo de Messias que é Jesus.
Por isso, ele as toca, abraça e abençoa (v. 16). E ele esclarece: o Reino é das crianças e somente como criança se pode entrar nele (14-15). O Reino não pertence aos puros, aqueles cuja pureza é ritual, mas aos pequenos e aos mais frágeis; pois somente com o coração desarmado se pode acreditar na boa notícia de Jesus.
* * *
Acreditar na boa notícia do Reino anunciado por Jesus exige ter o coração desarmado afeiçoado aos mais pequeninos e frágeis. Do contrário, podemos continuar iludidos com os vários “messias” que nos foram prometidos, em vez de reconhecer o verdadeiro Messias, ainda que inesperado: Jesus.
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