14. Qual pródiga semente (Mc 4,1-25)


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1 Outra vez, à beira-mar, Jesus começou a ensinar, e uma grande multidão se ajuntou ao seu redor. Por isso, entrou num barco e sentou-se, enquanto toda a multidão ficava em terra, à beira-mar.2 Ele se pôs a ensinar-lhes muitas coisas em parábolas. No seu ensinamento, dizia-lhes:3 “Escutai! O semeador saiu a semear.4 Ao semear, uma parte caiu à beira do caminho, e os passarinhos vieram e comeram.5 Outra parte caiu em terreno cheio de pedras, onde não havia muita terra; brotou logo, porque a terra não era profunda,6 mas quando o sol saiu, a semente se queimou e secou, porque não tinha raízes.7 Outra parte caiu no meio dos espinhos; estes cresceram e a sufocaram, e por isso não deu fruto.8 E outras sementes caíram em terra boa; brotaram, cresceram e deram frutos: trinta, sessenta e até cem por um.”9 E acrescentou: “Quem tem ouvidos para ouvir, ouça!”10 Quando ficaram a sós, os que estavam com ele junto com os Doze faziam perguntas sobre as parábolas. 11 Ele dizia-lhes: “A vós é confiado o mistério do Reino de Deus. Mas para aqueles que estão fora tudo é apresentado em parábolas,12 de modo que, por mais que olhem, não enxergam, por mais que escutem, não entendem, e não se convertem, nem são perdoados”.13 Jesus então perguntou-lhes: “Não compreendeis esta parábola? Como então, compreendereis todas as outras parábolas?14 O semeador semeia a palavra.15 Os da beira do Caminho onde é semeada a palavra são os que a ouvem, mas logo vem Satanás e arranca a palavra semeada neles.16 Os do terreno cheio de pedras são aqueles que, ao ouvirem a palavra, imediatamente a recebem com alegria,17 mas não têm raízes em si mesmos, são de momento; chegando tribulação ou perseguição por causa da palavra, desistem logo. 18 Outros ainda são os que foram semeados entre os espinhos: são os que ouvem a palavra,19 mas quando surgem as preocupações do mundo, a ilusão da riqueza e os outros desejos, a palavra é sufocada e fica sem fruto. 20 E os que foram semeados em terra boa são os que ouvem a palavra e a acolhem, e produzem frutos: trinta, sessenta e cem por um”.21 Jesus dizia-lhes: “Será que a lâmpada vem para ficar debaixo de uma caixa ou debaixo da cama? Pelo contrário, não é ela posta no candelabro? 22 De fato, nada há de escondido que não venha a ser descoberto; e nada acontece em segredo que não venha a se tornar público. 23 Quem tem ouvidos para ouvir, ouça!”24 Jesus dizia-lhes: “Considerai bem o que ouvis! A medida que usardes para os outros, servirá também para vós, e vos será acrescentado ainda mais.25 A quem tem, será dado; e a quem não tem, será tirado até o que tem.
O Semeador
Pode parecer inusitado ensinar à beira mar. Não para Jesus, cuja boa notícia de um reino já chegado é tão urgente que exige ser anunciada em todo lugar, para todos quantos queiram ouvir (v. 1). A multidão percebe a novidade e se ajunta para ouvi-la. Jesus se senta (v. 2), como todo mestre de seu tempo, que ensina assentado. Nos Evangelhos, cada vez que “Jesus se senta”, pode-se esperar um ensinamento importante. E, tal como aos mestres (Mc 3,23), Jesus novamente ensinará em parábolas.
O ensino é precedido pelo convite “escutai”. O primeiro mandamento, a “profissão de fé” do povo de Israel, principiava exatamente por este imperativo, o de escutar: “Shemá Israel”, “Escuta, Israel, o Senhor teu Deus é um” (Dt 6,4).
Apesar da estranheza própria da parábola, o texto que segue (v. 3-8) nos é bastante familiar: um semeador que espalha sementes a esmo, sem preparar terra ou cultivar, nos lugares mais inesperados. E, se os lugares da semeadura são inusitados, assim como a atitude do semeador, o fim dessas sementes é bastante previsível: à beira do caminho, são comidas pelos pássaros; em meio às pedras, as plantas são esturricadas pelo sol; entre os espinhos, os brotos são sufocados; somente em terra boa, a plantação floresce e frutifica. A menos que fizesse isso por inexperiência, por que um semeador, consciente do custo e da importância das sementes, as espalha assim, com tanta prodigalidade, beirando o descuido? É uma atitude inquietante, um desperdício quase escandaloso.
A explicação da parábola evidencia o que quer dizer Jesus (v. 13-20). Jesus não explica suas parábolas, nos Evangelhos, de modo que, provavelmente, se trata de um acréscimo posterior. Mas vejamos: a semente é a palavra, semeada a todos, sem distinção. Ainda que cada qual a acolha conforme sua debilidade e necessidade, uma só é a boa notícia, à qual todos têm direito. Mesmo sabendo, como semeador experiente, o possível fim que essa semente terá em cada campo, o anunciador da palavra anuncia sempre, lança com generosidade suas sementes. Ainda que inculto seja o solo, pouco profundo ou tomado de ervas daninhas, nada disso deveria impedir a semeadura. Do mesmo modo, nenhuma condição deveria ser imposta, a princípio, àqueles que vêm em busca da palavra. A primeira providência deveria ser sempre lançar a semente e deixar que, a seu tempo e modo, possa frutificar. Somente depois, quando o próprio solo do coração se desse conta da preciosidade da semente lançada e demonstrasse desejo de cultivo, se procederia aos manejos necessários, de modo que pudesse produzir trinta, sessenta ou cem por um.
Para Jesus, são muitos os que recebem a semente da palavra. Alguns estão à beira do caminho, por onde passam os transeuntes, coisa impensada para o evangelista Marcos, para quem o caminho com o mestre é tão importante. Na verdade, quem está à beira do caminho está à beira de si mesmo, incapaz de construir algo além do transitório. O caminhante pode não se comprometer com o caminho, pois o que vê ao longo do trajeto não é seu. Não é sem razão que Satanás arranque desses a semente da palavra. Quem se põe à beira do caminho da vida, à margem de si e de suas decisões, não sustentará a semente da palavra por muito tempo.
Entre as pedras, estão os “rasos”, pessoas sem profundidade. Podem até receber a palavra com alegria, mas faltará solo em que ela possa florescer. Pois a palavra floresce na interioridade, de dentro para fora – o Reino começa dentro, porque é uma consciência. Em tempos como os nossos, em que frequentemente fugimos de nós mesmos, com medo da interioridade, é comum que o sol escaldante dos desafios sem fim da vida queimem a palavra recém brotada e as convicções por ela despertadas, sempre imaturas e superficiais. Sem “raízes em si mesmo”, não é possível acolher a palavra de modo duradouro.
Entre os espinhos, figuram os que se iludem por mil desejos, contrários à semente recebida. Pois não se cultivam num mesmo canteiro flores e tiriricas – diz o bom jardineiro. Deixar crescer os espinhos e as ervas daninhas (que crescem depressa demais), por descuido ou negligência, resultará no sufocamento das flores. Não é possível cultivar a palavra do reino e, ao mesmo tempo, viver como se ele ainda não tivesse chegado, alimentando espinho e tiriricas...
Por fim, a terra boa do coração que acolhe pode produzir frutos diversos. A mesma semente, acolhida em corações distintos, produz frutos em quantidade diferente: trinta, sessenta ou cem. Mas em nada Jesus insinua que a terra que produziu cem seja melhor que a que produziu trinta. Todas são, igualmente, terra boa. De fato, cada qual produz a seu modo, no seu ritmo, de acordo com suas possibilidades. A semente respeita o solo ao qual foi lançada e a multiplicidade do fruto revela a riqueza da semente.
Jesus termina a parábola com a advertência: “quem tem ouvidos para ouvir, ouça” (v. 9). Já vimos o quanto a boa notícia de Jesus, por vezes inusitada e surpreendente, exige conversão. É preciso educar os ouvidos, formá-los para ouvir, acolher e crer nessa boa notícia. Afinal, como aceitar, sem conversão, que o semeador desperdice sementes de tão boa qualidade? Como admitir que nossos melhores esforços pastorais sejam dirigidos exatamente àqueles que aparentemente não merecem e em nada progridem? Como lançar a mesma semente a terrenos tão diferentes, se é aparentemente evidente o fim estéril que essas sementes vão levar? Pois é exatamente esse o escândalo do evangelho, e deixar-se surpreender pelos frutos que vêm dos lugares mais impróprios é condição para seguir Jesus.
As perguntas dos discípulos (v. 10-12) fazem retomar a distinção marcana entre “os de dentro” e “os de fora”. Somente aos de dentro, que convivem e seguem o Mestre, é possível compreender seu caminho. Importante, porém, perceber que as parábolas não são contadas com intenção deliberada de que os “de fora” não as compreendam. A tradução “... tudo é apresentado em parábolas para que não enxerguem, não compreendam...” (v. 12) não parece a mais apropriada. Melhor seria: “tudo é apresentado em parábolas, de modo que não enxergam, não compreendem...”. Ou seja, os de fora não compreendem as parábolas em razão de seu “estar fora”, em consequência dessa sua condição – e não por intenção de Jesus. Enquanto não adentrem o convívio dos discípulos e passem a integrar “os de dentro”, as parábolas lhes serão sempre estranhas, incompreensíveis.
A lâmpada e a medida
Nesse sentido, se compreendem, no contexto das parábolas, a “lâmpada” e a “medida”. É certo que, por enquanto, os “de fora” não compreendem, por mais que queiram. Mas, assim diz Jesus, não é possível esconder uma lâmpada sob a cama. É necessário que ela brilhe sobre o candelabro (v. 21). Nada do que está escondido ficará para sempre oculto, mas será revelado (v. 22). Isso se refere ao segredo messiânico, certamente, e consequentemente ao reino anunciado nas parábolas. Agora, está oculto a muitos, como o messianismo de Jesus, revelado apenas aos “de dentro”. Mas, tal como a lâmpada, um dia brilhará para todos – eis nossa esperança. Numa comunidade, como a de Mc, em que conviviam cristãos de origem judaica e gentílica, isso se torna ainda mais evidente, à medida que os judeus criticam os pagãos por não esperarem o Messias, enquanto eles mesmos o desprezam. Daí o cuidado com a “medida” (v. 24-25) da acolhida.
* * *
A medida de Jesus é a generosidade sem medida. É por ela que o reino deve ser anunciado a todos, sem distinção. Talvez até com mais insistência naqueles terrenos aparentemente mais pedregosos ou espinhosos. Porque todos têm o direito ao reino, custe quanto tempo custar. À nossa frente, vai a esperança de que uma luz não se esconde por muito tempo, mas brilha sobre as trevas.
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