13. A Família Dividida e a Família Unida (Mc 3,20-31)


3
20 Jesus voltou para casa, e outra vez se ajuntou tanta gente que eles nem mesmo podiam se alimentar.21 Quando seus familiares souberam disso, vieram para detê-lo, pois diziam: “Está ficando louco”.22 Os escribas vindos de Jerusalém diziam que ele estava possuído por Beelzebu e expulsava os demônios pelo poder do chefe dos demônios.23 Jesus os chamou e falou-lhes em parábolas: “Como pode Satanás expulsar Satanás?24 Se um reino se divide internamente, ele não consegue manter-se.25 Se uma família se divide internamente, ela não consegue manter-se.26 Assim também, se Satanás se levanta contra si mesmo e se divide, ele não consegue manter-se, mas se acaba.27 Além disso, ninguém pode entrar na casa de um homem forte para saquear seus bens, sem antes amarrá-lo; só depois poderá saquear a sua casa.28 Em verdade, vos digo: tudo será perdoado às pessoas, tanto os pecados como as blasfêmias que tiverem proferido.29 Aquele, porém, que blasfemar contra o Espírito Santo nunca será perdoado; será réu de um ‘pecado eterno’”.30 Isso, porque diziam: “Ele tem um espírito impuro”.31 Nisso chegaram a mãe e os irmãos de Jesus. Ficaram do lado de fora e mandaram chamá-lo.32 Ao seu redor estava sentada muita gente. Disseram-lhe: “Tua mãe e teus irmãos e irmãs estão lá fora e te procuram”.33 Ele respondeu: “Quem é minha mãe? Quem são meus irmãos?”34 E passando o olhar sobre os que estavam sentados ao seu redor, disse: “Eis minha mãe e meus irmãos!35 Quem faz a vontade de Deus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe”.
Estamos diante da primeira das “inclusões” do Evangelho de Marcos. Nessa estrutura literária, duas narrações são entrelaçadas, de modo que a primeira cena (A) é interrompida por outra (B) para só depois ser retomada e concluída (A). É o conhecido sanduíche literário, tão comum no Evangelho de Mc. Além de facilitar a memorização das duas cenas, esse recurso evidencia relações literárias e teológicas entre as duas narrações. Nessa primeira ocorrência, Marcos principia falando da família biológica de Jesus (v. 20-21), passa a falar sobre a possível relação de Jesus com Beelzebu (v. 22-30) e novamente retorna à sua família (v. 31-35).
A família dividida (A)
“Jesus voltou para casa” (v. 20). É difícil dizer com exatidão a que casa se refere; pela semelhança literária com Mc 2,1, inclusive pela multidão que se ajunta, podemos inferir que Jesus está de novo em Cafarnaum. Importa, porém, que ele está “em casa”. Já vimos que essa expressão será utilizada para distinguir os discípulos como aqueles que estão com Jesus “em casa”, ou ainda “no caminho” ou “atrás dele”. Aqueles que não o seguem ou não creem nele, pelo contrário, serão chamados os “fora da casa” ou “à beira do caminho”.
Pela primeira vez, Mc menciona a família biológica de Jesus, que vem (de Nazaré?) “para detê-lo” sob acusação de loucura (v. 21). Já vimos que Mc não possui os chamados “evangelhos de infância”, que narram os eventos em torno do nascimento e dos primeiros anos de Jesus e só aparecerão em Mt e Lc. Assim, essa primeira aparição da parentela de Jesus parece motivada pela incompreensão diante da estranheza de seu ensinamento. A seus olhos, o ensino de Jesus se revela uma insanidade. A tentativa de “detê-lo” é justificável à medida que, segundo os relatos dos cap. 2 e 3, suas pregações já despertam a ira das autoridades civis e religiosas, defensores de interesses escusos sob aparência das “sãs tradições”. Os parentes podem temer pela segurança de Jesus, mas também pela sua própria, pois os interditos religiosos não recaíam somente sobre o “herege”, mas também sobre sua família e sua cidade.
Portanto, a partir de Mc, mas também conforme mencionam os outros evangelistas, a boa notícia de Jesus não recebeu, ao menos a princípio, boa aceitação entre seus familiares mais próximos.
O Reino de Beelzebu dividido (B)
O incômodo despertado pela boa nova de Jesus já rende inspeções de Jerusalém, sede do controle religioso (v. 23). De lá, vêm os escribas, homens entendidos das Escrituras e prontos a dar um diagnóstico: Jesus está possuído pelo chefe dos demônios. Daí advém seu “poder”. Um engano bastante comum, o de confundir drasticamente as realidades em matéria de política e religião, sobretudo quando pessoas desconhecidas oferecem soluções apressadas sobre assuntos examinados à distância, tendo como referencial não as pessoas envolvidas, mas o sistema legal estabelecido que as legitima.
Com uma parábola, Jesus demonstra quão infundada é a conclusão dos escribas: não é possível que Satanás se ponha contra si mesmo (v. 23-24.26). E é também aí que o evangelista demonstra a relação entre as duas narrações: assim como não pode um reino se sustentar quando dividido (nem mesmo o de Satanás, o pai da divisão), do mesmo modo não pode uma família se sustentar enquanto estiver dividida – como os parentes de Jesus, logo acima (v. 25). Se nos lembramos de que o texto de Mc data aproximadamente do ano 70, é possível compreender que essa advertência se circunscreve num contexto de perseguições, em que famílias judias estão divididas entre aqueles que creem e os que não creem em Jesus. As discussões se darão nas sinagogas, mas também nas casas. Mt cuidará de expor a gravidade da questão, ainda mais inflamada em seu tempo: “pai conta filho e filho contra pai; sogra contra nora e nora contra a sogra” (cf. Mt 10,35s).
Além da insustentabilidade da divisão, Jesus apresenta outro argumento contra os acusadores: ele é um “homem forte” e não há nele espaço para Beelzebu (v. 27). De onde vem sua força? Do Espírito, como já vimos (cf. Mc 1,10.12.27). Assim, a acusação se torna mais grave, pois atinge não só Jesus em sua ação, mas o Espírito, de quem vem sua “força” (v. 28-30). Este é o pecado contra o Espírito: recusar-se a reconhecer sua ação salvadora, preferindo ver nela a atuação de um demônio; ou ainda: combater o Espírito de Deus em nome do próprio Deus. Não são poucos, ontem e hoje, o que admitem ou até creem sinceramente em Deus, mas não estão dispostos a tirar as consequências dessa fé. Deus é Deus enquanto favorece ou legitima os seus interesses; mas no momento em que o mesmo Espírito demonstra querer salvar a todos, atentando contra os mecanismos de exclusão sagrada, já não é mais o Espírito, mas um demônio. Os que assim agem, como os escribas, esses sim estão divididos, pois se põem contra o Reino de Deus, acreditando estar ao lado do mesmo Deus. Nisso consiste seu pecado. Imperdoável? Eterno? Sim, pois sem abertura ao Espírito, não haverá conversão; sem conversão não haverá arrependimento; sem arrependimento não haverá pedido de perdão; sem contrição, não se acolhe o perdão de Deus. Não, pois só é eterno e imperdoável enquanto não se abre para o perdão de Deus. Deus é maior que todo pecado! Basta desejar a conversão e Deus agirá. O pecado contra o Espírito Santo deixará de sê-lo, pois Deus é o Deus da gratuidade e da misericórdia, sempre disposto a perdoar.
A família dividida e a família unida (A)
A família agora ganha contornos claros: trata-se da mãe e dos irmãos de Jesus (v. 31). Deixaremos de lado, ao menos por ora, a secular discussão sobre a natureza desses “irmãos”, já que as possibilidades são muitas e inconclusas, sobretudo em Mc. Importa, porém, que eles estão “do lado de fora da casa”, no lugar apropriado daqueles que não creem e não seguem Jesus – reafirmando a incompreensão que Jesus encontrou nos seus parentes mais próximos, no começo de sua atuação.
A resposta de Jesus é interessante: sua mãe e seus irmãos são, na verdade, os “de dentro da casa”, que estão assentados ao seu redor e escutam sua palavra – os discípulos (v. 32-35). Na boa nova de Jesus, mais que os laços de sangue, interessam os laços de adoção filial do Espírito, que formam uma “família escatológica”, imagem da humanidade unida em torno do Cristo que vem.
Mais tarde, tendo compreendido isso, Lc dirá que Maria, mãe de Jesus, “ouviu a palavra, acreditou e a pôs em prática”, ou seja, fez-se sua discípula – nisso, e não propriamente na maternidade, reside seu mérito em Lc. Mas isso já é outro assunto...
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O Reino de Deus, pregado por Jesus, não se faz de laços de sangue, nem da defesa de interesses particulares. Seu Reino se constrói com a adesão que torna discípulo, gerando a filiação pelo Espírito através da acolhida e prática da palavra. A essa unidade não há divisão que resista, nem a de Beelzebu. Atentar-se à difusão desse Reino, que questiona as exclusões e inclui a todos, é condição para evitar o pecado contra o Espírito.
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