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5. O Evangelho de Marcos: origens

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28.10.2013 | 8 minutos de leitura
Frei João F. Júnior - OFMCap
Curso Bíblico
5. O Evangelho de Marcos: origens

A disposição dos livros na Bíblia pode confundir algum leitor desavisado, sobretudo se o critério buscado for a ordem cronológica de redação desses textos. O Gênesis, por exemplo, não foi o primeiro a ser escrito, muito embora narre as “origens do céu e da terra” (Gn 2,4). Tampouco os profetas estão organizados cronologicamente, ainda que se admitisse a atuação histórica de todos aqueles que dão nome aos Livros Proféticos (ou “Profetas Posteriores”) do Antigo Testamento. No Novo Testamento, ao contrário do que comumente se pensa, os Evangelhos[1] não são os escritos mais antigos sobre Jesus. E, em se tratando desse tipo de escrito, Mt não foi o primeiro. A organização de toda a Bíblia é, portanto, temática e não cronológica.


As Cartas de Paulo são, dos escritos canônicos[2] do Novo Testamento que temos ainda conservados, os mais antigos. Costuma-se datar sua redação nos anos 50 e 60 do séc. I. Paulo teria sido martirizado em Roma, antes da destruição de Jerusalém pelos romanos, no ano 70. Pelas Cartas, é possível acompanhar o amadurecimento da reflexão das primeiras comunidades. Em estilo apocalíptico, espera-se, a princípio, uma “segunda vinda” iminente de Jesus (cf. 1 e 2Ts). Aos poucos, essa preocupação vai dando lugar ao modo como se efetiva a justificação e a salvação (cf. 1 e 2Cor, Gl, Fl, Rm). Somente nas últimas Cartas, Paulo se detém na organização das Igrejas e na conservação do “depósito da fé” (cf. Tt, 1 e 2Tm)[3].


Os Evangelhos, entretanto, são mais tardios. Como vimos no Estudo 4, todos eles são posteriores à destruição de Jerusalém[4] – e isso é muito significativo. Além de portarem uma teologia mais elaborada, desenvolvida por suas comunidades de origem ao longo de um tempo mais longo, situá-los após a destruição do Templo e da Cidade Santa significa atribuir-lhes um papel identitário das comunidades cristãs. Pois, após a destruição, os judeus se veem destituídos dos mais altos referenciais religiosos e políticos: com a terra já sob domínio romano, perdem agora a cidade e o templo. Resta-lhes a Torah, ou seja, as Escrituras. As classes religiosas ligadas ao Templo (os saduceus e os sacerdotes) também desaparecem, restando apenas os sábios da Torah, os fariseus[5]. Multiplicam-se as sinagogas e, de algum modo, todos estão agora na diáspora, na dispersão[6]. Uma nova identidade judaica se constituirá dessas cinzas, herdeira direta dos tempos exílicos: o Templo não mais existe, mas cada um traz dentro de si o verdadeiro templo e o verdadeiro altar; a Cidade Santa foi sitiada, mas a presença de Deus junto ao seu povo, como nos tempos do deserto ou do exílio, é inviolável e disso as Escrituras dão testemunho; ainda que se destruíssem os rolos da Escritura, o estudo garante que a Palavra de Deus habite o coração de cada fiel e brote invicta de seus lábios. É ao lado dessa busca de identidade judaico–sinagogal que as comunidades judaico-cristãs, em torno da fé no Ressuscitado, fazem nascer seus primeiros Evangelhos, portadores de um ensinamento ordenado, uma verdadeira catequese sobre o mistério pascal de Jesus, sua relação com o Pai e a Igreja.


            Assim, Mc, o Evangelho mais antigo, datado talvez da virada dos anos 70, terá como critério organizador do texto uma pergunta: “Quem é Jesus?”. Quem é Jesus, o qual dizemos ter ressuscitado dos mortos e nos transmitido seu Espírito? Quem é Jesus, cuja palavra e ensino nos reúnem? Quem é Jesus, em torno de quem as comunidades começam a se distinguir de suas origens estritamente judaicas? Quem é Jesus, em nome de quem as Igrejas começam a acolher a todos, inclusive os gentios?


            A essa pergunta fundamental, Marcos apontará duas respostas, já expressas no primeiro versículo de seu Evangelho: “Início do Evangelho de Jesus Cristo, o Filho de Deus” (Mc 1,1). Para Mc, Jesus é o “Cristo” (o Messias) e o “Filho de Deus”. Todo o Evangelho de Mc – em sua estrutura, conteúdo e forma – se dedicará a desenvolver essas duas respostas. E, quem quiser compreender o texto de Mc, tão próximo quanto possível da intenção redacional de seu autor, deve ter sempre diante dos olhos esse pressuposto como “chave de leitura” para todo o seu Evangelho.





 






[1] Ao aprofundarmos o estudo, algumas distinções de linguagem começam a se fazer necessárias, evitando equívocos. Por exemplo: utilizaremos “Evangelho” ao nos referirmos propriamente aos textos canônicos de Mt, Mc, Lc e Jo, do mesmo modo como iniciaremos com maiúsculo as referências a outros livros bíblicos (Gênesis, Pentateuco, Históricos, Proféticos, Cartas Paulinas, p. ex.). A forma minúscula “evangelho” reservaremos para a “boa nova” de Jesus Cristo, em seu sentido mais amplo, revelada em suas obras e palavras – o que ultrapassa e origina os textos dos Evangelhos.

Por razões similares, utilizaremos as siglas (Mt, Mc, Lc e Jo) quando nos referirmos aos textos dos Evangelhos canônicos e o nome por extenso (Mateus, Marcos, Lucas e João) ao aludirmos a seus autores. Sabe-se que, na Sagrada Escritura, chamar um texto de “Evangelho segundo Mateus” não significa necessariamente supor que, historicamente, alguém chamado Mateus seja seu autor. O mesmo vale para os “livros de Moisés” (Pentateuco) e algumas Cartas de Paulo (“Pseudopaulinas”). A autoria histórica desses textos é sempre muito discutível. Houve escritos muito tardios atribuídos aos apóstolos, por exemplo, com intenção de facilitar sua aceitação nas comunidades. No que se refere ao Novo Testamento, a Tradição judaico-cristã reconheceu nesses textos certa atribuição “patronímica” ou legado espiritual que, como critério último, dá nome aos textos. E, se com esses nomes os primeiros cristãos e a Tradição posterior identificaram os textos, nós também o faremos.




[2] Chamaremos “textos canônicos” aqueles que as Igrejas recolheram no canon escriturístico, quer dizer, no ordenamento das escrituras que, mais tarde, dariam origem ao Novo Testamento. São os textos que foram considerados inspirados e dos quais seguramente, segundo o crivo das comunidades cristãs, se recolhe um ensinamento seguro sobre Jesus. Desses textos, embora cada um a seu modo, com teologias e estruturas próprias, emergem rostos de Jesus que não são contraditórios. Contrastam com eles os textos chamados “apócrifos”. Geralmente mais tardios, esses textos mesclam elementos da tradição apostólica e de outras experiências religiosas, como as “religiões mistéricas” gregas e o gnosticismo. Consequentemente, não entraram no canon do Novo Testamento. Mesmo assim, se encontram publicados e o acesso a eles não é difícil. Alguns, inclusive, mesmo que não possam ser tomados como textos revelados, oferecem reflexões muito bonitas sobre Jesus e os primeiros cristãos.




[3] Consideradas cartas pseudopaulinas ou deuteropaulinas, assim como a Segunda Carta aos Tessalonicenses ou a Carta aos Efésios, escritas por alguém que tenha recebido a influência paulina ou por algum secretário do Apóstolo dos gentios.




[4] Com pequena dúvida levantada por alguns exegetas, que defendem a datação de Mc para os anos 65-70.




[5] Os Evangelhos narram muitos conflitos entre Jesus e os Fariseus, sem poupar críticas a esses últimos: “hipócritas”, “sepulcros caiados”, “raça de víboras”, “amigos do dinheiro”, entre tantas outras coisas. A leitura factual-literalista desses textos construiu, ao longo de muitos séculos, uma visão cristã bastante distorcida dos judeus, particularmente dos fariseus. Pois, em contrapartida, para repensarmos esses preconceitos, basta nos lembrarmos de que Jesus e seus discípulos eram todos judeus ou que os evangelistas e mesmo Paulo eram fariseus, educados na fé judaica segundo a formação farisaica sinagogal. Paulo escreverá segundo a metodologia farisaica (os midrashim) até o fim de sua vida. Mateus jamais poderia ter escrito seu Evangelho, tão rico em referências à Torah se não fosse um fariseu. Mesmo Lucas, herdeiro do ensino paulino, demonstra amplamente sua educação farisaica, da diáspora. O fato é que, a princípio, as comunidades cristãs sobreviveram como um grupo judaico, frequente às sinagogas e alimentada pelas Escrituras ao modo farisaico. Muito lentamente, à medida que afirmam com crescente clareza a divindade de Jesus e nova Aliança de seu sangue, os “fariseus–cristãos” se distinguem dos “judeus–fariseus”. Sabemos, hoje, que boa parte dos conflitos entre Jesus e os Fariseus, narrados nos Evangelhos, refletem muito mais os conflitos entre judeus e cristãos na época da redação dos textos, conforme veremos a seu tempo.




[6] No tempo de Jesus, a Palestina já está “helenizada”, ou seja, sob a hegemonia cultural grega. Desde o séc. IV a.C., a Grécia empreendeu uma ampla difusão de seu domínio político e cultural. O Império de Alexandre Magno abarcava desde o norte da África, o Egito, a Mesopotâmia e o oeste da Índia. Assim, no séc. I, havia cidades gregas por toda a Palestina e muitos judeus, que viviam fora de Jerusalém, já tinham se adaptado aos costumes helênicos. Paulo, por exemplo, era judeu helenizado, de Társis. Esses judeus, educados longe do Tempo e dos costumes tradicionais de Jerusalém, não raro tinham sérios conflitos com seus irmãos da capital religiosa. Para os cristãos das primeiras comunidades, o helenismo não representou problemas. Pelo contrário, souberam se valer da unidade da língua grega, das moedas, da tradução grega das Escrituras Judaicas (a Septuaginta) e do sistema de estradas do Império Romano. 

 


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