26. A Penumbra da Fé (Mc 9,14-29)


9
14 Quando voltaram para junto dos discípulos, encontraram-nos rodeados por uma grande multidão, e os escribas discutiam com eles.15 Logo que a multidão viu Jesus, ficou admirada e correu para saudá-lo.16 Jesus perguntou: “Que estais discutindo?”17 Alguém da multidão respondeu-lhe: “Mestre, eu trouxe a ti o meu filho que tem um espírito mudo.18 Cada vez que o espírito o agride, joga-o no chão, e ele começa a espumar, range os dentes e fica completamente duro. Eu pedi aos teus discípulos que o expulsassem, mas eles não conseguiram”.19 Jesus lhes respondeu: “Ó geração sem fé! Até quando vou ficar convosco? Até quando vou suportar-vos? Trazei-me o menino!”20 Levaram-no. Quando o espírito viu Jesus, sacudiu violentamente o menino, que caiu no chão e rolava espumando.21 Jesus perguntou ao pai: “Desde quando lhe acontece isso?” O pai respondeu: “Desde criança.22Muitas vezes, o espírito já o lançou no fogo e na água, para matá-lo. Se podes fazer alguma coisa, tem compaixão e ajuda-nos”.23 Jesus disse: “Se podes...? Tudo é possível para quem crê”.24 Imediatamente, o pai do menino exclamou: “Eu creio, mas ajuda-me na minha falta de fé”.25 Vendo Jesus que a multidão se ajuntava ao seu redor, repreendeu o espírito impuro:“Espírito mudo e surdo, eu te ordeno: sai do menino e nunca mais entres nele”.26 O espírito saiu, gritando e sacudindo violentamente o menino. Este ficou como morto, tanto que muitos diziam: “Morreu”!27 Mas Jesus o tomou pela mão e o levantou; e ele ficou de pé.28 Depois que Jesus voltou para casa, os discípulos lhe perguntaram, em particular: “Por que nós não conseguimos expulsá-lo?”29 Ele respondeu: “Essa espécie só pode ser expulsa pela oração”.
Situando...
Jesus desce a montanha, com os três discípulos que o acompanhavam – Pedro, Tiago e João. Lá, no alto, havia sido transfigurado diante deles, revelando ser realmente o Messias prometido, de quem “Moisés e Elias” (ou seja, as Escrituras) davam testemunho. Essa será a conclusão da comunidade, através do Mistério Pascal que vem.
Descendo, pois, da montanha, tal qual Moisés que encontra o povo dividido e entregue à idolatria (cf. Ex 32,1ss), Jesus encontra seus discípulos em apuros, discutindo com os escribas (v. 14). Será mais uma oportunidade de compreender em que consiste o messianismo de Jesus e o que é necessário para reconhecê-lo...
Na penumbra da fé
A multidão fica “admirada”,logo que vê Jesus (v. 15). Diferente de outros momentos, em que todos “ficaram admirados” após um feito, uma cura ou um milagre (cf. Mc 1,21; 2,12; 5,20), desta vez basta ver Jesus para correr-lhe ao encontro, cheios de admiração. Afinal, o segredo messiânico já está se espalhando e muitos já o seguem. Aproximando-se, a primeira providência de Jesus é inteirar-se do objeto da discussão (v. 16). Não é um discípulo que responde, mas alguém da multidão, um “de fora”. Que, mesmo sendo de fora, chama Jesus de “mestre” e manifesta sua fé: trouxe o filho para ser curado de um “espírito mudo” (v. 17). Os “espíritos”, já vimos, são impedimentos ao Reino; algo, alguém ou uma situação que impede que as pessoas acreditem na boa notícia de Jesus, convertam-se e creiam nele. Um empecilho à fé, portanto.
O quadro clínico descrito por esse, que logo saberemos ser o pai do menino, remete àquilo que hoje caracterizaríamos como um ataque epilético (v. 18). Mas o motivo da discussão entre discípulos de Jesus e escribas não é propriamente a saúde do menino, senão o fato de os discípulos não terem conseguido expulsar o “espírito mudo” que o possuía. Jesus responde com irritação (v. 19), sentimento que não lhe é raro em Mc. Já em outras passagens, Jesus reagiu com irritação ou indignação (cf. p. ex. Mc 3,5), geralmente quando algo de secundário (mesmo a observância da Escritura) é colocado acima do Reino ou da dignidade das pessoas. Desta vez, a irritação se dirige a duas coisas. A primeira é a falta de fé deles; a segunda, a dependência de que Jesus lhes resolva todos os problemas – ou, quem sabe, a necessidade de uma demonstração maravilhosa, como condição à fé. Em ambas as repreensões, não fica claro se Jesus se refere aos discípulos ou à multidão, pois as correções se aplicariam bem aos dois grupos. Por fim, ao seu pedido, lhe trazem o menino (v. 20).
Como era de se esperar, no gênero narrativo de exorcismo, o menino reage ao ver Jesus. Em outras passagens, os “espíritos” reagiam gritando a identidade messiânica de Jesus ou sua filiação divina (cf. Mc 1,24; 5,7). Aqui, reage fazendo o que, segundo o pai, sempre fizera ao jovem (v. 21). Até aqui, nada de novo. Incomum, entretanto, é o pedido do pai a Jesus: “Se podes, tem compaixão e ajuda-nos” (v. 22). O pai apela a um sentimento que Jesus sempre tem, em Mc – a compaixão. Mas impõe uma condição: “se podes...”. Confirmando a repreensão que fizera ainda há pouco, Jesus lhe corrige a falta de fé (v. 23). Como já afirmara em outras situações, lembra ao pai que a fé é capaz de salvar; para ela, nada é impossível (cf. 5,34; 10,52). Não se trata de desafiar os limites da vida e da ordem do mundo por causa da fé, tentando Deus a ações extraordinárias em favor próprio. Trata-se da esperança de que nada, por mais trágico que seja, pode vencer a esperança daquele que caminha sob a luz da fé. Tal como a mulher que sangrava e que encontrou ainda forças para recorrer a Jesus, não obstante tendo já gasto inutilmente tudo o que possuía e doze anos de sua vida; ou como Jairo que leva Jesus a sua casa, em busca de cura para sua filha, ainda que os mais próximos já a desses por morta, também a esse pai a fé pode acudir – disso lhe recorda Jesus.
A resposta do pai é ainda mais bela: “Eu creio, mas ajuda-me na minha falta de fé” (v. 24). Sim, pois a fé e a dúvida caminham sempre juntas. E, mesmo já crendo, a fé terá permanentemente uma dimensão de inacabamento, de pendência, de “vir a ser”. Nunca estará terminada a tarefa de crer e será sempre necessário renovar a fé, se quisermos que ela continue viva. A fé não é como as pedras, inamovível. Sequer as pedras se encontram acabadas para sempre, mas se transformam sob a ação do vento e das águas. E essa fé, pequenina e frágil, que luta por manter-se acesa, parece suficiente para Jesus. Pois ele olha em volta, para a multidão, e repreende o “espírito” (v. 25), que o obedece e sai, deixando o garoto como morto (v. 26).
Por fim, ainda não está completa a ação de Jesus. Afinal, ninguém pode se afastar de Jesus “como morto”. É próprio da fé fazer viver e fortalecer a vida. Se o pai já tinha fé ao se aproximar de Jesus, tanto mais agora, após o encontro, é preciso que pai e filho retornem para casa ainda mais vivos. Por isso, Jesus “toma o jovem pela mão e o levanta, deixando-o de pé” (v. 27) – do mesmo modo como também Jesus, em sua Páscoa, será “levantado”, ressuscitado, posto de pé. Quem crê no ressuscitado ressurge com ele e encontra nele força para continuar vivendo.
A sós
Em casa – que significa: na intimidade do discipulado, “a sós com Jesus” – os discípulos retomam o assunto que gerou a discussão com os escribas. No fim das contas, por que eles não conseguiram expulsar o “espírito”? (v. 28). A resposta já fora demonstrada na repreensão inicial, na conversa com o pai do menino e na própria cura, mas é preciso explicitá-la: “Essa espécie [de “espírito”] só se expulsa com a oração” (v. 29). Onde faltar fé, não será possível acreditar na boa notícia do Reino; ela parecerá “boa demais para ser verdade”. E onde não houver conversão ao Reino, os “anti-reinos” triunfarão, recusando-se a sair. A esperança do Reino, acolhida pela fé e amadurecida pela oração, dá forças para transformar o que do mundo pode ser transformado; como também ajuda a compreender e aceitar aquilo que não pode. Para ambas as situações, valem a fé e a oração.
* * *
Jesus é o Messias que nos convida ao seu Reino. Se vamos a ele, já levamos a pequenina chama da fé, ainda que imatura e imperfeita. Mas, a partir do encontro com ele, é preciso amadurecer e, aos poucos, aprender a viver alimentados pela fé. Pois somente pela fé e a oração será possível perseverar no caminho ao qual Ele nos convida e ao qual nos dispomos. Nisso consiste o discipulado.
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