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24. O Servo Sofredor (Mc 8,27-38)

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20.03.2014 | 11 minutos de leitura
Frei João F. Júnior - OFMCap
Curso Bíblico
24. O Servo Sofredor (Mc 8,27-38)

8


27 Jesus e seus discípulos partiram para os povoados de Cesaréia de Filipe. No caminho, ele perguntou aos discípulos: “Quem dizem as pessoas que eu sou?”
28 Eles responderam: “Uns dizem João Batista; outros, Elias; outros ainda, um dos profetas”.
29 Jesus, então, perguntou:“E vós, quem dizeis que eu sou?” Pedro respondeu: “Tu és o Cristo”.
30 E Jesus os advertiu para que não contassem isso a ninguém.
31 E começou a ensinar-lhes que era necessário o Filho do Homem sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, sumos sacerdotes e escribas, ser morto e, depois de três dias, ressuscitar.
32Falava isso abertamente. Então, Pedro, chamando-o de lado, começou a censurá-lo.
33 Jesus,porém, voltou-se e, vendo os seus discípulos, repreendeu Pedro, dizendo: “Vai para trás de mim, satanás! Pois não tens em mente as coisas de Deus, e sim, as dos homens”!
34 Chamou, então, a multidão, juntamente com os discípulos, e disse-lhes: “Se alguém quer vir após mim, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me!
35 Pois quem quiser salvar sua vida a perderá; mas quem perder sua vida por causa de mim e do Evangelho,a salvará.
36 De fato, que adianta alguém ganhar o mundo inteiro, se perde a própria vida?
37E que poderia alguém dar em troca da própria vida?
38 Se alguém se envergonhar de mim e de minhas palavras diante desta geração adúltera e pecadora, também o Filho do Homem se envergonhará dele, quando vier na glória do seu Pai, com seus santos anjos”.

Situando...


Chegamos ao texto central de Mc, simultaneamente ponto de chegada de um longo caminho de discipulado e início de um aprofundamento não menos árduo. Nesta perícope, pela primeira vez, um discípulo responderá à pergunta fundamental: “Quem é Jesus? – É o Cristo”. Até agora, somente os “demônios” tinham afirmado que Jesus é o Cristo. Tanto que sempre foram repreendidos por Jesus (Mc 1,24; 3,11; 5,7). Afinal, não basta afirmar essa verdade, mas crer nela com todo o coração e permitir que fecunde a vida, a partir de dentro, modificando-a drasticamente, se necessário.


Assim, também aos discípulos de ontem e de hoje não basta afirmar: “Ele é o Cristo”. É preciso compreender que “tipo de Cristo” é Jesus e a que tipo de seguimento ele nos convida.


 Quem é Jesus?


A cena que abre a perícope é a metáfora do discipulado, tão recorrente em Mc: o Mestre pelo caminho, à frente; atrás dele, seguindo de perto seus passos, os discípulos (v. 27). O cenário literário escolhido é Cesaréia de Filipe, ao norte da Galileia – a mesma Galileia onde tudo começou. E é “no caminho” que Mc põe na boca de Jesus sua pergunta primordial: “Quem dizem que eu sou?”.


Muito acertado, pois é exatamente “no caminho” que essa pergunta nos é feita. Jamais poderá respondê-la aquele que somente acompanha de longe os passos de Jesus ou que simplesmente o observa, mesmo que com curiosidade. É preciso mais que isso. Para responder com acerto a essa pergunta, é preciso estar “a caminho com ele”, seguindo as pegadas dele, andando por onde ele anda, convivendo com ele. Somente “no caminho” essa pergunta faz sentido. Fora do caminho, ela é pura curiosidade inútil.


A resposta repetida pelos discípulos já é conhecida, desde a morte de João Batista (Mc 6,14-16): “Uns dizem que ele é João Batista, outros que é Elias, outros ainda que é algum dos profetas” (v. 28). São respostas “das pessoas”, ou seja, daqueles que estão “de fora”, que ainda não iniciaram “o caminho”, dos que “não estão com Jesus”. Não é à toa que nenhuma delas seja satisfatória. Tampouco a Jesus elas interessam.


“E vós, quem dizeis que eu sou?” (v. 29) – a resposta a essa pergunta, sim, interessa. Fica, pois, clara a distinção de Mc entre os “do caminho” e os “fora do caminho”, os “com Jesus” e os “sem Jesus”. Não porque os discípulos possam se crer melhores que os outros, mas porque eles caminham com Jesus e, mais do que “os de fora”, eles devem saber responder quem é Jesus para eles.


A pergunta é grave. Também nós a devíamos fazer, de tempos em tempos. Pois, dependendo de qual seja a resposta, tudo o mais na vida cristã ganhará ou perderá seu sentido. Se, em cada drama de nossa vida ou nos dilemas pastorais de nossas comunidades, voltássemos a essa pergunta – “quem é Jesus, para nós?” – com certeza as soluções escolhidas seriam muito mais acertadas. Teríamos coragem de deixar morrer muitas convicções pessoais infundadas ou costumes pastorais falidos; encontraríamos coragem para recobrar as forças do seguimento e animaríamos também os irmãos e irmãs a fazer o mesmo; deter-nos-íamos àquilo que é realmente essencial à fé cristã, deixando de lado muitos “enfeites” que mais deterioram do que promovem seu verdadeiro significado. Responder à pergunta sobre “quem é Jesus” é condição indispensável a todos quantos se disponham ao seguimento. Do contrário, pode ser que estejamos seguindo nossas próprias ilusões, em vez de seguir o Cristo Jesus.


Assim, Pedro, símbolo mais adequado de discípulo, o “de dentro” por excelência, responde por todos: “Tu és o Cristo” (v. 29). Com essa confissão, Pedro exprime a fé da comunidade de ontem e de hoje: Jesus é o Messias, o Ungido prometido a Israel, aquele que “haveria de vir”. Já não há mais o que esperar, pois nele o Reino de Deus chegou. E, como de costume, também aqui Jesus recomenda o segredo messiânico (v. 30). Afinal, se é somente pelo seguimento que essa verdade se torna compreensível, convém não espalhá-la indistintamente. Antes, se deve convidar ao caminho.


 Que tipo de Cristo é Jesus?


Aparentemente, tudo está bem: Pedro, junto com os discípulos, no caminho, proferiu solenemente “quem é Jesus: ele é o Cristo”. Missão cumprida. Será? Acaso o próprio Pedro, como todos os discípulos, compreendeu tudo o que isso significa? E nós, hoje, quando dizemos que “Jesus é o Cristo”, estamos cientes do que estamos proferindo?


A própria esperança de Israel em seu Messias era muito variada: alguns esperavam um guerreiro intrépido, que convocasse o povo à luta contra a dominação romana; outros aguardavam um rei poderoso, que restaurasse a monarquia de Judá e reunisse os reinos outrora divididos; outros ainda viam no Messias vindouro o sacerdote verdadeiro, que oferecesse a Deus um sacrifício de tal modo perfeito e agradável que alcançasse a libertação. Enfim... tão variadas quanto as esperanças eram os possíveis rostos do Messias (em grego: do “Cristos”).


Assim como os discípulos de hoje: alguns seguem Jesus, vendo nele um Cristo que socorre e cura a todos em suas angústias e sofrimentos interiores; para outros, Jesus é um Cristo que luta contra o pecado e a concupiscência, libertando das cadeias dos vícios; outros ainda seguem um Cristo libertador dos oprimidos e dos injustiçados, dos sem voz e sem direitos. Enfim, existem tantos rostos de Cristo quantas forem as esperanças legitimamente humanas de seus seguidores. Isso não é necessariamente ruim. Por um lado, revela a profundidade e a riqueza do mistério de Cristo. Mas é preciso cuidar para que o Cristo que pretensamente se segue não corresponda muito mais às nossas projeções e necessidades caprichosas do que a Jesus de Nazaré.


Que tipo de Cristo é Jesus? Uma boa advertência vem adiante: Cristo é o “Filho do Homem” (cf. Dn7; Mc 2,10.28 – Estudos 10 e 11). Humano, gente como a gente. Sequer “Filho de Davi”, o “Cristo-Rei” esperado. E ainda mais: um sofredor, um rejeitado pelas autoridades, legítimas intérpretes da Lei de Deus, um condenado à morte. Somente vivendo tudo isso, o Cristo será também o Ressuscitado (v. 31).


Essa é uma revelação profundamente escandalosa. Em poucas palavras: frustrante, capaz de despedaçar qualquer expectativa de Messias que se distinga do Servo Sofredor, figurado por Isaías (cf. Is 42,1ss; 49,1ss; 50,4ss; 52,13ss). Para os que esperavam um Messias glorioso e poderoso, dominador e tirano, uma desilusão traumática – até hoje.


Quanto a isso, segundo Mc, não há sequer segredo messiânico: “Jesus falava abertamente” (v. 32), para que ninguém dentre os discípulos tivesse dúvida quanto a que tipo de Mestre estava seguindo. A reação de Pedro, o mesmo que há pouco confessara “quem é Jesus”, é imediata. Chama Jesus “de lado”, ou seja, à “margem do caminho”, e se põe a censurá-lo. A imagem é forte: por um instante, Pedro se esquece de quem é o Mestre e quem é o discípulo. Abandona seu lugar de seguidor, atrás do Mestre, sai “do caminho”, passa à frente do Mestre e tenta tirar também o Mestre do caminho, com pretensos ensinamentos. Pode o discípulo ensinar ao Mestre? Tem o discípulo o direito de passar à frente do Mestre e querer tirá-lo do caminho? Acaso também nós não corremos o mesmo risco, quando queremos ensinar a Jesus o modo de satisfazer nossas necessidades ou quando ensinamos um retrato de Jesus que convém a nossas ideologias e interesses?


A esse absurdo, Jesus responde à altura. “Volta-se para os discípulos” (v. 33), atrás onde é o lugar deles, e diz a Pedro: “Volta para trás de mim, Satanás”, ou seja, retorna ao teu lugar de discípulo e aprende quem é, de fato, o Cristo. “Satanás, porque não pensas como Deus, mas como os homens”. O nome é bastante próprio: Satanás, ou seja, aquele que tira do caminho, que contraria o Reino, que diverge de Deus, opondo-se entre o Mestre e os discípulos – tal como Pedro o fez.


É interessante notar que muitas versões do texto de Mc em português (inclusive na liturgia) traduzem o v. 33 como: “Afasta-te de mim, Satanás...” ou “Vai para longe de mim, Satanás...”. Há inclusive quem compare essa tradução do versículo com a oração da Medalha de São Bento: “Vade retro Satana...”, ou seja, “Vai-te embora, Satanás...”. Há aqui dois problemas. O primeiro é que a tradução “afasta-te de mim” contraria a teologia de Mc, já que para o evangelista é tão nítida a distinção entre os “com Jesus” e os “sem Jesus”, os que permanecem “perto dele, em casa” e os que estão “longe dele, fora do caminho”. A partir dessa distinção teológica, seria impensável que Jesus mandasse Pedro “para longe dele”. E o segundo problema seria o de sugerir que Pedro estivesse “possesso pelo Demônio”, conforme pintado em muitas tradições cristãs posteriores. Já dissemos que os “demônios” ou “Satanás”, em Mc, não correspondem à entidade maligna que essas palavras passaram a referenciar posteriormente (cf. Estudo 9). “Satanás” indica a postura de Pedro, que se contrapõe a Jesus, tentando-o a desistir do caminho. Só isso, nada mais!


Verdadeiro seguimento


“Logo em seguida”, conforme a costumeira pressa de Mc (v. 34), Jesus chama a multidão e os discípulos para recordar as condições do seguimento. “Se alguém quiser”: não é obrigatório nem compulsório. Quem vier, deve vir porque quis, sem constrangimento externo. “Vir após mim”: depois dele, atrás dele, no lugar do discípulo. “Renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me”: tal como o Mestre, assim deve fazer o discípulo. E se, conforme a discussão com Pedro fica evidente que o Cristo Jesus sofrerá, será perseguido, rejeitado e morto – não por resignação, mas como quem assume a vida e a entrega livremente – assim também deve agir seu discípulo.


Para Mc, Jesus é de fato um “Messias inesperado”, um “Cristo às avessas”: nele, quem aparentemente perde a vida (assim como o Mestre), na verdade,a assume; e quem se apega a ela, na verdade, a perde para sempre (v. 35). De fato, de que vale a alguém ganhar tudo e não ser senhor de si mesmo? (v. 36). O dom mais precioso é assenhorar-se de si, pois somente quem é dono de si e da própria vida pode, de fato,entregá-la, toda ela, livremente pelo Reino (v. 37).


Quem, portanto, não abandona o Mestre, mas segue-o até o fim em seu caminho de rejeição e sofrimento, sua própria fidelidade o guardará. Se, porém, nos “esquecermos dele”, ou seja, preferirmos seguir nossa ilusão de um Messias sem cruz ou dedicar nossa vida à fantasia de um Cristo sem perseguições ou incompreensões, padroeiro das glórias do mundo de um Reino que se impõe pela força, então não haverá fidelidade divina capaz de reverter o triste resultado de nossa insensatez (v. 38).


 * * *


 Quem é Jesus, para nós? É o Cristo – assim nos ensina a fé. Mas que Cristo é ele? Certamente, não será um Messias que nos isenta das dificuldades do seguimento, do chão duro do discipulado na história. Pelo contrário, Jesus é o Cristo que vai à frente, ensinando-nos a fidelidade sustentada até às últimas consequências. Isso é inquietante, mas é bem o quadro messiânico do Evangelho de Marcos.





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