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22. Serviços de Proteção (III)

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14.04.2025 | 13 minutos de leitura
Frei João F. Júnior - OFMCap
Evangelho do Cuidado
22. Serviços de Proteção (III)
…eu era estrangeiro e me recebestes em casa,
estava nu e me vestistes…
(Mt 25,35-36)

No atendimento cotidiano às entidades eclesiais que buscam se adequar às exigências de Vos Estis Lux Mundi (2019 | 2023), tanto congregações quanto dioceses e as diversas entidades por elas mantidas, é comum nos depararmos com duas perguntas metodológicas. A primeira, em poucas palavras, é sobre “como construir a Política de Proteção”. E muita gente acredita o trabalho termina no dia em que a Política é promulgada pela autoridade competente. Ledo engano.... pois é justamente depois de um tempo de vigência da Política que costuma aparecer a segunda pergunta, que versa sobre “como fazê-la, realmente, funcionar” – não como simples formalidade institucional, mas efetivamente e de verdade. É o momento em que a entidade eclesial descobre que, por mais bem elaborada que seja, a Política de Proteção não funciona se o Serviço de Proteção não souber operá-la de maneira assertiva. E que não bastam a coerência dos textos e o refinamento dos conceitos para a instalação de ambientes seguros; isso exige práticas fundamentadas e processos continuados de acompanhamento. Ou seja, a resposta a essa segunda pergunta aponta para o funcionamento eficaz do Serviço de Proteção.

Assim, tendo descrito possíveis estruturas para o Serviço de Proteção, nos dedicamos agora a caracterizar seu funcionamento e seus procedimentos. 

O Serviço opera a Política – toda ela

A promulgação da Política de Proteção pelo bispo diocesano ou o/a superior/a maior coincide com o início da operação do Serviço de Proteção. Tanto que ambos os atos são promulgados por decretos, simultaneamente. A partir daí, os canais de atendimento devem estar abertos para recepção das notificações, os fluxos internos do Serviço devem estar estabelecidos e seus membros devem estar aptos para o atendimento aos notificantes. 

Porém, enquanto não há notificações, o Serviço de Proteção fica inoperante? De modo algum! Afinal, o Serviço de Proteção é o organismo responsável pela operacionalização da Política de Proteção. E, assim como a Política é muito maior do que o “protocolo de intervenção” que se aciona com a apresentação da notificação, assim também o trabalho do Serviço de Proteção é muito mais amplo do que apenas a passiva recepção das notificações. 

Como já discutimos em textos anteriores, a Política de Proteção expressa os valores da entidade eclesial, bem como seus compromissos institucionais e carismáticos com tema da proteção e da prevenção, em diálogo com a legislação eclesial e civil. A partir desses elementos fundamentais, cada ambiente, setor ou segmento da entidade eclesial poderá desenvolver seus protocolos específicos e seu plano de ação para assimilação e aplicação da Política. Esse trabalho de apresentação da Política de Proteção a todos os atores institucionais, assim como sua sensibilização para o tema e o convite a opções pessoais e comunitárias pela proteção constitui, quase sempre, o primeiro expediente do Serviço de Proteção. 

Também será tarefa do Serviço de Proteção acompanhar os atores de cada ambiente ou segmento da entidade eclesial na elaboração de seus próprios mapeamentos de riscos e protocolos de mitigação dos riscos. Para evitar que os trabalho se perca por falta de orientação ou que a entidade se acomode na simples formalidade de possuir uma Política, é importante que cada ambiente ou segmento da entidade eclesial constitua seu plano de trabalho, em que liste as ações necessárias para a implementação da Política, fixando prazos e apontando responsáveis. Acompanhar a construção e o cumprimento dos planos de trabalho também é tarefa do Serviço de Proteção. 

Além disso, como já insistirmos outras vezes, uma boa Política de Proteção prevê ações formativas para todos os atores institucionais, tanto para a implementação da Política quanto para manter vivo o tema, com constante aprofundamento. Quase sempre, a entidade eclesial e seus diversos ambientes ou segmentos possui estruturas de formação (casas destinadas à Formação Inicial dos/as religiosos/as, seminários para formação aos ministérios ordenados, estruturas de formação permanente, pastoral presbiteral, catequese e tantos outros...). É, portanto, papel do Serviço de Proteção estabelecer com essas estruturas uma relação de cooperação, em que sejam discutidas as melhores ações formativas, a cada grupo de atores institucionais. Por exemplo: o Serviço de Proteção, atento às determinações da Política, pode apontar os temas a serem discutidos e as metas a serem alcançadas; e os responsáveis pelas estruturas formativas podem dar as ferramentas e seu pessoal para melhor execução das propostas em cada etapa ou ambiente da formação. Por isso, estabelecer os diálogos sobre as estratégias de formação com formadores/as, reitores de seminários, agentes da pastoral presbiteral, catequistas e tantos outros atores institucionais também é tarefa do Serviço de Proteção. 

Um processo eficaz de implementação da Política de Proteção deve eleger, no plano de trabalho, critérios e indicadores para o acompanhamento das ações, permitindo mensurar o alcance e o impacto das propostas implementadas. O Marco Geral das Linhas-Guia, publicado pela Pontifícia Comissão pro Tutela Minorum em 20241 oferece um modelo interessante desse tipo de documento, construído a partir de critérios e indicadores. Estabelecê-los antes da implementação da Política, bem como criar os instrumentos e os processos para sua avaliação e seu monitoramento periódicos também são tarefas continuadas do Serviço de Proteção. 

Recepção de notificações: o protocolo de intervenção

Por fim, quando todas essas medidas preventivas não foram suficientes e o abuso infelizmente aconteceu, é tarefa do Serviço de Proteção receber as notificações por meio dos canais oficialmente publicados. Qualquer pessoa pode apresentar notificações de transgressão da Política, seja a própria vítima, seja outra pessoa. E a notificação pode ser feita por meio de atendimento presencial, formulário online, ligação telefônica ou outro canal da entidade eclesial que seja seguro e acessível. 

Já foi dito, mas não custa reiterar: o notificante (no caso de não ser a própria vítima) não precisa ter certeza ou trazer evidências dos fatos que notifica. Tampouco será tarefa do Serviço de Proteção estabelecer essa certeza. Em caixa alta para que soe imperativo: O SERVIÇO DE PROTEÇÃO NÃO TEM ATRIBUIÇÕES INVESTIGATIVAS e O JUÍZO SOBRE A VEROSSIMILHANÇA DOS FATOS CABE À AUTORIDADE COMPETENTE (bispo diocesano, superior/a maior ou seus equivalentes). 

O Serviço de Proteção pode preparar um formulário que auxilie os profissionais do centro de escuta (religioso/a, clérigo ou outro profissional; geralmente, duas pessoas juntas) para colher a declaração do notificante. Nesse formulário, estarão perguntas como: quem é o suposto agressor (sobretudo sua situação canônica: clérigo, religioso/a, leigo/a encarregado de trabalhos na comunidade, colaborador/a etc.)? Quem é a suposta vítima (sobretudo idade, sexo, domicílio, estrutura familiar, eventuais situações que acentuam condições de vulnerabilidade etc.)? O que objetivamente aconteceu? Quem são as testemunhas, caso haja? Houve desdobramentos ou consequências dos fatos narrados? Outras pessoas estão cientes dos fatos narrados? Houve comunicação às autoridades civis? E outras mais, que parecerem necessárias. Contudo, o formulário tem apenas o papel de auxiliar os profissionais do centro de escuta e não substitui a empatia, a escuta ativa, a sensibilidade e a assertividade dessa primeira escuta. Por isso, esses profissionais (inclusive os clérigos e religiosos/as) devem estar formados para esse trabalho. 

É muito importante que a pessoa que recebe a notificação anote com clareza e com detalhe a declaração do notificante. Quanto mais completas estiverem as informações nesse documento, menor será a probabilidade de chamar novamente o notificante para novos esclarecimentos. Sobretudo quanto o notificante é a própria suposta vítima, chamá-lo reiteradamente com novas perguntas o expõe ao risco de revitimização. E, mais adiante, na eventualidade de a notificação resultar numa investigação prévia, a declaração escrita pode se tornar peça processual – se assim decidir a autoridade competente. 

A partir do primeiro contato com o notificante, sobretudo sendo ele a própria vítima, o Serviço de Proteção disponibiliza a ele suas estruturas de acompanhamento, de acordo com as demandas específicas de cada caso: atendimento psicológico ou psiquiátrico, avaliação médica, assessoria jurídica civil e/ou canônica, acompanhamento pedagógico ou intervenção do assistente social, acompanhamento espiritual etc. Não existe fórmula única, prescrita para todos os casos. Mas é a demanda específica da vítima que orientará quais serviços serão disponibilizados, bem como o tempo que dura esse acompanhamento. Pode ser, inclusive, que o notificante não queira, num primeiro momento, formalizar uma notificação. Alguns querem, a princípio, apenas falar, ter com quem dividir a angústia e o peso do relato. Aos poucos e com o devido acompanhamento, essas pessoas afastam o medo ou a vergonha e decidem formalizar sua notificação. Daí a importância de um acompanhamento adequado disponibilizado já a partir do primeiro contato e por quanto tempo seja necessário. 

Elaborada a notificação, o Serviço de Proteção a apresenta à autoridade competente, acompanhada de seu parecer sobre a gravidade e a possível verossimilhança dos fatos notificados. Em certos casos, a elaboração da notificação e do parecer envolverá os diversos profissionais do Serviço, de modo a gerar um documento claro, completo nas informações necessárias e capaz de orientar adequadamente o bispo diocesano ou superior/a maior. Caberá ao/à coordenador/a do Serviço esse discernimento sobre quais profissionais envolver, em cada caso. Para manter a celeridade na elaboração das notificações, o Serviço preveja seu calendário de reuniões periódicas para avaliação dos casos ou o dispositivo de convocação dessas reuniões quando necessário. 

Sobre a coordenação dos Serviços de Proteção, há experiências diversas. Na maioria das entidades eclesiais que já possuem o Serviço, a coordenação é exercida por um clérigo ou religioso/a membro da instituição. Nesses casos, é importante que esse clérigo ou religioso/a tenha suficiente liberdade de atuação, sem conflitos de interesse ou de jurisdição. Ou seja, nada de superiores/as maiores e demais membros das estruturas de governo, formadores/as etc. Mas já há experiências em que a coordenação cabe a um/a profissional leigo/a, como tentativa de manter uma maior liberdade de atuação. Nesses casos, é importante que o/a profissional não esteja hierarquicamente subordinado a nenhum dos clérigos ou religiosos/as membros do Serviço, nem diretamente subordinado/a2 ao governo da instituição. 

Protocolada a notificação e entregue à autoridade, o Serviço de Proteção estará disponível para acompanhar os trâmites que venham em seguida: arquivamento da notificação por falta de verossimilhança, designação de uma investigação prévia de acordo com o direito processual, transferência do caso a outra autoridade que detenha foro mais legítimo para tratativa da questão etc. Os informes sobre esses trâmites devem ser entregues formalmente ao Serviço de Proteção, para que mantenha a pessoa notificante ou a vítima (muitas vezes, ainda acompanhada pelos profissionais do Serviço) informada sobre os procedimentos legais. 

Anualmente, ou em outra periodicidade a ser estabelecida, é importante que o Serviço de Proteção publique um relatório de suas atividades, resguardados os dados confidenciais: quantos atendimentos foram realizados, que serviços foram disponibilizados, quantas notificações foram entregues e quantas delas resultaram em processos, quais os resultados desses processos, que naturezas de abuso foram notificadas etc. A entrega desse relatório à entidade eclesial já favorece a criação de ambientes mais seguros e legitima a ação do Serviço, mas sua publicação à comunidade eclesial é ainda mais desejável, como forma de favorecer a transparência e dar visibilidade ao tema. 

Particularidades importantes

Alguns detalhes legais exigem atenção especial do Serviço de Proteção, como por exemplo: 

- Obrigatoriedade de reportar ao poder civil (Art. 13 do ECA): no caso de abusos contra crianças e adolescentes, a lei brasileira obriga que todo cidadão, uma vez ciente do fato, comunique prontamente ao Conselho Tutelar ou à polícia. Mais que isso, tipifica como crime a omissão dessa informação às autoridades civis. Os membros do Serviços de Proteção e as autoridades eclesiásticas, como cidadãos brasileiros, estão também obrigados a essa comunicação.

- Escuta protegida (lei 13.431/2017): há uma discussão instalada nos ambientes eclesiais sobre a “escuta protegida” de crianças e adolescentes, conforme a legislação nacional. A lei prevê que crianças e adolescentes vítimas de abuso sejam escutados em ambientes específicos, assistidos por profissionais legalmente designados para isso. Alguns defendem que o Serviço de Proteção da entidade eclesial deve encaminhar esses casos às autoridades civis e, somente depois, incorporar os dados dessas declarações à notificação que será entregue à autoridade eclesiástica competente. Outros defendem que o expediente do Serviço de Proteção tem finalidades eclesiásticas e canônicas, não se confundindo com a escuta a ser realizada da criança ou do adolescente nos ambientes legais. E que, por isso, o Serviço de Proteção pode colher declaração de crianças e adolescentes, ainda que, em seguida, eles necessitem ser ouvidos novamente pelas autoridades civis. Não há consenso eclesial sobre esse tema. Mas é possível perceber: obrigar a criança ou o adolescente a um duplo depoimento (eclesial e civil), inclusive com risco de revitimização, pode revelar que o Serviço de Proteção está mais comprometido com a instituição do que com a vítima. 

- Colaboração com as investigações civis: Vos Estis Lux Mundi menciona explicitamente a necessidade de as entidades eclesiais colaborarem com as investigações civis. Por isso, tanto as declarações e as notificações do Serviço de Proteção quanto os processos canônicos podem ser requisitados pelas autoridades civis, ao longo das investigações.

- Jamais propor “acordos”: em nenhuma situação, o Serviço de Proteção ou outras instâncias da entidade eclesial proporá “acordos” às vítimas ou aos notificantes, seja de natureza financeira, seja de outra natureza. Historicamente, esses “acordos” tinham por objetivo calar as vítimas em troca de benefícios ou mediante ameaças. Essas práticas contrariam radicalmente as prescrições eclesiásticas e devem ser denunciadas como abuso de poder.
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1 Disponível em: https://www.tutelaminorum.org/universal-guidelines-framework/ .
2 Pode parecer estranho ou mesmo irritar a alguns essa linguagem que insiste na distinção dos gêneros: religioso/a, superior/a, leigo/a etc. Ela não aparece em todo o texto – e necessita aparecer. Mas, considerando a tendência machista e clericalista a instituição Igreja, expressa inclusive em certos dispositivos do direito processual e penal que reservam certas atribuições a homens e clérigos, faço questão de manter a distinção dos gêneros naquilo em que, mais especificamente, as mulheres podem e devem ser incluídas. Ou naquelas atribuições em que a experiência tem demonstrado o papel insubstituível da atuação feminina. Pode resultar cansativo para o leitor, mas não fazer essa explicitação pode deixar passar a importância das mulheres nessas estruturas eclesiais, inclusive nas esferas de acolhida, discernimento e decisão.  




 

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Ao longo da tratativa deste tema, pode ser que alguém sinta necessidade de falar, seja para contar experiências ou para tirar dúvidas. Se isso acontecer, você pode procurar a Comissão de Cuidado e Proteção ou o Serviço de Escuta da sua diocese, das congregações religiosas ou de outros organismos eclesiais. Ou pode escrever para joao.ferreira@clar.org para se informar melhor. 
Um abraço e até a próxima semana!

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