20. Por sobre o Mar (Mc 6,45-56)


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45 Logo em seguida, Jesus mandou que os discípulos entrassem no barco e fossem na frente para Betsaida, na outra margem, enquanto ele mesmo despediria a multidão.46 Depois de os despedir, subiu a montanha para orar.47 Já era noite, o barco estava no meio do mar e Jesus,sozinho, em terra.48 Vendo-os com dificuldade no remar, porque o vento era contrário, nas últimas horas da noite, foi até eles, andando sobre as águas; e queria passar adiante.49Quando os discípulos o viram andar sobre o mar, acharam que fosse um fantasma e começaram a gritar.50 Todos o tinham visto e ficaram apavorados. Mas ele logo falou: “Coragem! Sou eu. Não tenhais medo!”51 Ele subiu no barco, juntando-se a eles, e o vento cessou. Mas os discípulos ficaram ainda mais espantados.52 De fato, não tinham compreendido nada a respeito dos pães. O coração deles continuava endurecido.53 Tendo atravessado o lago, foram para Genesaré e atracaram.54 Logo que desceram do barco, as pessoas reconheceram Jesus.55 Percorriam toda a região e começaram a levar os doentes, deitados em suas macas, para o lugar onde ouviam falar que Jesus estava.56 E, em toda parte onde chegava, povoados, cidades ou sítios do campo, traziam os doentes para as praças e suplicavam-lhe para que pudessem ao menos tocar a franja de seu manto. E todos os que tocavam ficavam curados.
Situando...
No estudo anterior, vimos como Mc reinterpreta a Tradição do povo de Israel, fazendo a Escritura judaica (a Torah) coincidir com Jesus. Nele, ela ganha nova vida e novo sentido, oferecendo-se de novo como alimento farto à multidão peregrina. O anúncio de Jesus é a Escritura (os “cinco pães” e os “dois peixes” – imagem completa da Torah) da qual “cinco mil” comem até a saciedade. Desse alimento, recolhem-se “doze cestos cheios” que ainda alimentarão a muitos, até a nós, hoje – sinal da tradição apostólica que mantém vivas as palavras de Jesus.
Esse relato dos pães e dos peixes, bem como texto o desta semana, se dá após uma “travessia” do mar. Já vimos que, frequentemente, a “travessia” de algum obstáculo (como o mar, um rio, um monte) é a marca literária de uma chamada à consciência pascal. Mais que vencer uma dificuldade topográfica, quer vencer a dificuldade da comunidade em compreender e crer no Ressuscitado. É, pois, uma catequese pascal.
Por sobre o mar
A primeira providência de Mc é separar Jesus dos discípulos (v. 45). Pior ainda, segundo Mc, os discípulos vão “à frente de Jesus” para Betsaida. Mesmo quando enviados, não é correto que os discípulos se ponham “à frente”. Mesmo na missão, o discípulo deve ter sempre o Mestre diante dos olhos; seu lugar é “atrás” do Mestre, seguindo seus passos.
E após despedir a multidão, Jesus “sobe ao monte, para orar” (v. 46). Esse é outra marca literária importante. Jesus de Nazaré orava, certamente. Homem como nós, ele também precisou fazer um caminho de fé, no qual compreendeu, com dificuldades semelhantes às nossas, o caminho que o Pai lhe propunha. Nos Evangelhos, porém, além de testemunhar essa prática de Jesus, sua oração sempre precede um relato particularmente significativo. Em Mc, Jesus orará novamente no Getsêmani, às vésperas de sua entrega. Em Lc, por exemplo, Jesus ora antes de escolher os Doze (Lc 6,12); ficará transfigurado durante a oração (Lc 9,28); é por causa de sua oração que ensinará aos discípulos o “Pai Nosso” (Lc 11,1ss). De todo modo, a oração de Jesus sempre precede um relato importante.
O v. 47 oferece o quadro da narrativa: era noite, o barco dos discípulos no meio do mar, Jesus em terra. O barco é dos símbolos mais antigos da Igreja, da comunidade dos que creem em Jesus. Um símbolo muito significativo, pois nada é permanente num barco, longe da terra firme. De fato, a Igreja é provisória e sua ação se dá sempre num intermédio, à espera da definitividade do Reino. Permanente mesmo, digno de ser levado absolutamente a sério, inamovível e indubitável, é só Deus. No barco, se leva apenas o necessário; o excesso de bagagem pode prejudicar a segurança da viagem. Também na Igreja os excessos sempre atrapalham e causam, por vezes, graves naufrágios. Basta-lhe o necessário: seu Senhor. Por fim, o barco está no mar, em meio às inseguranças e às intempéries. Não existe caminho determinado ou estrada fixa a seguir. No mar do mundo, a Igreja, se quiser se manter fiel a sua missão, precisará sempre reinventar seu caminho, redescobrir as sendas por onde navegar, com os olhos fixos em Jesus, como o navegante que fita a agulha da bússola, mas sabe contornar os obstáculos que se põe à frente. As condições de sua travessia não dependem dela mesma, mas são ditadas pelo mar, que é o mundo. Bravio e escuro, incerto e inseguro, assim mesmo é o mundo por onde navega, frágil, a barca dos discípulos. Em meio às perseguições das primeiras décadas do cristianismo, não deveria ser raro que os discípulos se sentissem exatamente assim: num barco, no escuro da noite, sem Jesus. Ele está “em terra”, sepultado, longe dos seus. Parece ter abandonado a comunidade e a fé dos discípulos na ressurreição balança... Sim, o Senhor não ressuscitou; permanece “em terra” e nos abandonou, sozinhos, no mar do mundo.
Mas Jesus permanece atento ao “vento contrário” que maltrata sua Igreja e à “dificuldade dos discípulos em remar” (v. 48). Por isso, nas “últimas horas da noite”, quando as trevas são mais espessas, a esperança já vacila e o cansaço parece vencer, Ele vem ao encontro. Não foi nessa hora, na última vigília da noite, às vésperas do amanhecer, que Ele ressuscitou? E Ele vem para “passar a diante”, retomar o lugar de Mestre que caminha à frente dos discípulos, que é seguido por eles. Àqueles que perdem a esperança, ele lembra: “Eu sou aquele a quem vocês seguem; não estou “em terra”, sepultado para sempre, mas caminho à frente de vocês”.
A reação dos discípulos na barquinha é de mais medo ainda (v. 49). Nos relatos da ressurreição, é comum que o Ressuscitado não seja imediatamente reconhecido. Pode ser confundido com um jardineiro (Jo 20,15), com um viajante (Lc 24,15-16) ou com um fantasma (Lc 24,37). Isso porque a dor ou o desespero quase sempre cegam. Também a raiva e o ressentimento impedem que se vejam as coisas como elas realmente são. O medo também é uma doença grave dos olhos e distorce o que se vê. Por isso, Jesus convida a recobrar a coragem e lançar fora o medo (v. 50). Com que garantia? A única realmente importante: “Ele é”. Semelhante ao “Eu sou” do Êxodo (Ex 3,14), que lembrou ao povo oprimido que Deus estava ao seu lado, “vendo sua opressão, ouvindo seu grito de aflição e conhecendo seus sofrimentos”e que agora “descia para libertá-lo” (Ex 3,7-8), assim também Jesus Ressuscitado lembra que “Ele é” e se põe junto à comunidade perseguida, na escuridão da noite e em meio à braveza do mar.
Jesus sobe no barco, “junto a eles”, e o vento cessa (v. 51). De fato, os terrores da vida muitas vezes abalam nosso “ser com Jesus”, nosso “estar com ele”, nossa consciência de discípulo. Partimos à frente dele, perdemos de vista os passos do Mestre, deixamos de segui-lo. Mas, uma vez que recuperamos o horizonte do seguimento, permitimos que ele passe de novo à nossa frente e nos lembramos de quem são os passos que seguimos, qualquer vento se torna brando, qualquer noite se torna clara e qualquer mar se torna manso. Porque Jesus muda as coisas magicamente? Não! Mas a tempestade se acalma porque trazemos a Serenidade dentro de nós (Lc 24,36); e a noite se torna clara porque o Ressuscitado nos ilumina desde dentro e nos convida a olhar os dramas como desafios, a partir da fé.
Os discípulos permanecem espantados (v. 51). A tempestade continua, agora dentro deles. Afinal, “não haviam compreendido nada a respeito dos pães” (v. 52): não compreenderam ainda quem é Jesus, não entenderam que sua Palavra é a Escritura que importa seguir, não creem ainda no Ressuscitado com todo o coração. Engraçado que permaneçam ainda tão incrédulos, mesmo estando no mesmo barco,com Jesus. Mc chama de “coração endurecido”. O Livro do Êxodo descreveria o mesmo com outras palavras: “povo de cabeça dura”. Semelhantes a nós? Bastante...
Em Genesaré
Os discípulos chegam, com Jesus, a Genesaré. “Logo que descem do barco” (v. 54), pois Mc sempre tem pressa e tudo acontece imediatamente, “as pessoas reconhecem Jesus”. Irônica essa nossa caminhada de discípulos: às vezes, quem está “com Jesus” no mesmo barco custa a reconhecê-lo, enquanto os “de fora” o reconhecem logo e creem nele. Por isso, é sempre perigoso se arvorar a julgar quem está ou não com Jesus.
Com os discípulos, Jesus “percorria toda a região” (v. 55), pois o Reino deve ser anunciado a todos, não só com palavras, mas com gestos. Por isso, as pessoas levavam seus doentes para serem curados, ao menos ao tocar “a franja de seu manto” (v. 56), assim como a mulher que sofria de hemorragias.
* * *
Não importa quão escura seja a noite, quão bravio seja o mar ou quão perdidos estejamos na tempestade. O Ressuscitado sempre acompanha sua Igreja, caminhando à sua frente – o que em nada diminui a provisoriedade frágil da barquinha. Com ele, lançamos fora o medo e recuperamos a coragem necessária aos desafios da vida, de todos os dias. Entretanto, é sempre bom cuidar, pois quem está sempre com Ele pode não o reconhecer, enquanto outros o reconheçam imediatamente.
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