Evangelho DominicalVersículos Bíblicos
 
 
 
 
 

17. Tempo de vida, sempre (Mc 5,21-43)

Ler do Início
19.01.2014 | 11 minutos de leitura
Frei João F. Júnior - OFMCap
Curso Bíblico
17. Tempo de vida, sempre (Mc 5,21-43)

5


21 Jesus passou novamente para a outra margem, e uma grande multidão se ajuntou ao seu redor. Ele estava à beira-mar.
22 Veio então um dos chefes da sinagoga, chamado Jairo. Vendo Jesus, caiu-lhe aos pés
23 e suplicava-lhe insistentemente: “Minha filhinha está nas últimas. Vem, impõe as mãos sobre ela para que fique curada e viva!”
24 Jesus foi com ele. Uma grande multidão o acompanhava e o apertava de todos os lados.
25 Estava aí uma mulher que havia doze anos sofria de hemorragias
26 e tinha padecido muito nas mãos de muitos médicos; tinha gastado tudo o que possuía e, em vez de melhorar, piorava cada vez mais.
27 Tendo ouvido falar de Jesus, aproximou-se, na multidão, por detrás e tocou-lhe no manto.
28 Ela dizia: “Se eu conseguir tocar na roupa dele, ficarei curada”.
29 Imediatamente a hemorragia estancou, e a mulher sentiu dentro de si que estava curada da doença.
30 Jesus logo percebeu que uma força tinha saído dele e, voltando-se para a multidão, perguntou: “Quem tocou na minha roupa”?
31 Os discípulos disseram: “Tu vês a multidão que te aperta, e ainda perguntas: ‘Quem me tocou?’”
32 Ele olhava ao redor para ver quem o havia tocado.
33 A mulher, tremendo de medo ao saber o que lhe havia acontecido, veio, caiu-lhe aos pés e contou toda a verdade.
34 Jesus então disse à mulher: “Filha, a tua fé te salvou. Vai em paz e fica livre da tua doença”.
35 Enquanto ainda estava falando, chegaram alguns da casa do chefe da sinagoga dizendo:“ Tua filha morreu. Por que ainda incomodas o mestre?”
36 Jesus ouviu a notícia e disse ao chefe da sinagoga: “Não tenhas medo, somente crê”.
37 Ele não permitiu que ninguém o acompanhasse, a não ser Pedro, Tiago e seu irmão João.
38 Quando chegaram à casa do chefe da sinagoga, Jesus viu a agitação, pois choravam e lamuriavam muito.
39 Entrando na casa, ele perguntou: “Por que essa agitação, por que chorais? A menina não morreu, ela dorme”.
40 E começaram a zombar dele. Afastando a multidão, levou consigo o pai e a mãe da menina e os discípulos que o acompanhavam. Entrou no lugar onde estava a menina.
41 Pegou a menina pela mão e disse-lhe: “Talitá cum!” (que quer dizer: “Menina,eu te digo, levanta-te”).
42 A menina logo se levantou e começou a andar – já tinha doze anos de idade. Ficaram extasiados de tanta admiração.
43 Jesus recomendou com insistência que ninguém soubesse do caso e falou para que dessem de comer à menina.

Situando...


Jesus passou “novamente à outra margem” (v. 21). Como já vimos (cf. Estudo 15), as “passagens” de Jesus narradas nos Evangelhos quase sempre insinuam uma “passagem de consciência” de seus discípulos, um passo para a compreensão do mistério pascal. São textos que se referem ao mistério pascal, embora situados literariamente antes da morte de Jesus. Em última instância, todo o Evangelho é pascal, ou seja, escrito a partir da experiência comunitária do Ressuscitado. Mas, em alguns textos, essa intenção catequética aparece mais evidente. É o caso do texto que veremos hoje.


 Mais uma vez, Marcos lança mão de um artifício literário que intercala dois textos, em forma de uma grande inclusão, também chamado de sanduíche literário. Além de facilitar a memorização dos dois relatos, o autor evidencia relações literárias e teológicas entre eles. No capítulo 5, os textos intercalados são sobre (A) a filha de Jairo – Mc 5,22-24; (B) a mulher hemorroíssa – Mc 5,25-34; e (A) novamente a filha de Jairo – Mc 5,35-43.


A morte cedo demais (A)


Mal Jesus chegou “à outra margem”, vindo de Gerasa, onde tinha dado vida àquele que vivia possuído de morte, a “multidão se ajuntou ao seu redor, à beira-mar” (v. 21). Jesus não está, pois, seguido por seus discípulos, os “de dentro”, a quem pode “explicar tudo, a sós”, mas rodeado pela “multidão”, os “de fora”, para quem tudo é exposto “como uma parábola” a ser compreendida. Para esses, a própria vida de Jesus é uma parábola, por vezes incompreensível. Mas, do meio da multidão, vem a Jesus um homem, chefe da sinagoga, chamado Jairo (v. 22). Vendo Jesus, caiu-lhe aos pés – tal como a comunidade se prostra diante do Ressuscitado, seu Senhor. Jairo suplica a Jesus que “imponha as mãos” sobre sua filhinha doente, para que seja curada e viva (v. 23). Seu nome nunca será mencionado; para o leitor, será apenas a “filha de Jairo”, o que é muito significativo. E Jesus parte com Jairo, que pouco a pouco se tornará um “de dentro”, um dos “com Jesus”. Lá vão eles, os de dentro, seguidos e apertados pela multidão, os “de fora”, os “sem Jesus” (v. 24).


A vida tarde demais (B)


Da multidão, assim como Jairo, surge outra figura, agora uma mulher, que também passará aos “de dentro”. Seu nome também não será mencionado, mas sim sua doença: um corrimento de sangue que, há doze anos, lhe rouba a vida – pois o sangue é vida (v. 25). Sangrar por doze anos (um ciclo fechado de anos) é estar já além de qualquer esperança, desenganada pelos médicos; é ter gasto todos os bens e ilusões de cura, sem resultado. Pelo contrário, “piorava sempre mais” (v. 26). Essa mulher, que se aproxima sozinha de Jesus, no meio da multidão (v. 27), sem ninguém por ela, já viu sua vida se erodir ano a ano, “como um abismo que atrai outro abismo ao fragor das cascatas” (Sl 42,8). Mas encontra ainda um fio de esperança: ouviu falar de Jesus e, mesmo sem conhecê-lo, acreditou nele. Achegou-se por trás e tocou-lhe as vestes, a fim de ser curada (v. 28). Imediatamente, como Mc gosta de descrever, sente dentro de si que o sangue estancara (v. 29).


O toque da mulher é diferente do toque da multidão que a rodeia, pois sua intenção é diferente. Assim como Jairo, a mulher se destaca da multidão por sua fé e, de repente, já não pertence mais à multidão, pois adentrou a intimidade de Jesus (“tocou-lhe as vestes”). Jesus o percebe, pois uma “força (dynamis) saiu dele” (v. 30). Estamos diante do mesmo quadro do “Dia de Cafarnaum”, de Mc 1,21ss (cf. Estudo 9): as pessoas tocam a veste de Jesus e uma força sai dele, curando a todos. Assim é descrita a ação curativa/salvadora (salus/salutis: salvação/saúde) de Jesus, como uma “força” por meio da qual os “espíritos impuros” fogem e o Reino se oferece.


À pergunta de Jesus sobre “quem o tocou” (v. 31), os discípulos (“de dentro”) se mostram tão ignorantes quanto a multidão (“de fora”), enquanto Jesus procura, no meio da multidão (“de fora”) aquela que havia se tornado “de dentro” (v. 32). E aquela que anonimamente se aproximara por trás, agora cai aos pés do Mestre, contando-lhe a verdade (v. 33). De fato, aos pés do Ressuscitado, já não há mais razão para escusas ou longas justificativas; apresentamos-lhe apenas a verdade daquilo que somos, as feridas que sangramos e os anseios que esperamos – e isso basta. E Jesus, chamando-a “filha”, a ela que não tinha ninguém em sua defesa, responde-lhe aquilo que recorrentemente dirá: “a tua fé te salvou” (v. 34). De fato, a salvação da mulher, a cura de sua doença já começara quando, no meio da multidão, tendo ouvido falar de Jesus, ela acreditou e desejou tocá-lo; quando, num segundo (pois, conforme o Sl 90,4, mil anos são como o dia de ontem que passou), venceu os doze anos de desilusão e descrença e, ainda por mais uma vez, acreditou e se pôs a caminho. Sim, foi sua fé que a salvou. Mas observemos: Jesus não lhe exigiu fé para curá-la. Apenas constatou, por meio de seus gestos e de sua determinação, que a fé operou maravilhas em sua vida. Isso é importante, pois nem mesmo a fé é condição para se aproximar do Ressuscitado. A fé cristã não antecede o encontro com o Ressuscitado. A mulher apresenta uma fé—desejo, que antecede o encontro, mas a fé—adesão é resultado do encontro com Jesus, pois só depois de encontrar o Senhor se pode aderir a ele.


 Tempo de vida, sempre (A)


Marcos conecta as duas narrativas com uma expressão de tempo que insinua concomitância: “enquanto ainda estavam falando” (v. 35). Tudo tem pressa em Mc e muitas coisas acontecem ao mesmo tempo. Nesse caso, ainda falavam quando da casa de Jairo mandam avisar que a filhinha morreu. “Jesus ouve a notícia” (v. 36), mas faz a Jairo uma belíssima advertência: “Não tenhas medo, crê somente”. Pois a fé lança fora o medo. Foi a fé—desejo que lançou fora o medo da mulher que sangrava. Com o pouco de vida que ainda lhe restava, a fé—desejo levou-a a se achegar a Jesus, em meio à multidão. E foi lançando fora novamente o medo que ela abandonou o anonimato e se lançou aos pés de Jesus, confessando, depois do encontro, a fé—adesão. A fé qualquer que seja (adesão ou desejo) sempre faz bem: enche de esperança, por mais adversas que sejam as condições e severos os limites impostos à vida. O medo paralisa, a fé mobiliza; o medo acovarda, a fé encoraja; o medo mata, a fé faz viver. Jairo precisa crer, precisa desejar a vida para sua filha.


Jesus deixa a multidão e chama consigo os discípulos. Nem eles virão todos, mas apenas os três mais próximos (v. 37). Seja expressão de zelo pelo segredo messiânico, seja por deferência em relação à delicadeza da situação, que é um drama familiar, o fato é que, em outros momentos críticos, Jesus chamará novamente esses três, como na Transfiguração (Mc 9,2) e no Horto (Mc 14,33). Em casa, todos estão muito agitados, semelhantes à multidão (v. 38). Tanto que a constatação de Jesus de que “a menina não morreu, mas dorme” (v. 39) soará risível aos presentes. Embora estejam “em casa”, são eles também multidão, “de fora” e não compreendem a parábola do Reino, anunciada por Jesus. “Dormir” e “morrer” são verbos análogos, em hebraico, assim como “levantar-se” e “ressuscitar”. Mas, mais do que isso, mortos estão os que, mesmo vivos, perderam a esperança e a fé na vida; tal como vivos estarão sempre os que, do fundo de sua dificuldade e, mesmo sob os imperativos da morte, crerem com todo o coração no Senhor da vida que, ressuscitado, ressuscita sempre.


Afastada a multidão (v. 40), somente com os “de dentro” (os pais da menina e os discípulos), Jesus toma a garota pela mão e a convida a levantar-se (v. 41). É o mesmo convite feito à sogra de Pedro (Mc 1,31). E a menina “se levantou e começou a andar, pois já tinha doze anos” (v. 42). Exatamente o tempo que a outra mulher, a hemorroíssa, padeceu de sua doença. Um ciclo de vida que se convertia em morte pelo sangramento contínuo; um ciclo de morte que se abre de novo à vida, na idade da maturidade e da maioridade. Uma se encontra com Jesus no fim de sua vida; a outra, no início da vida adulta. Comum a ambas, um encontro que lhes devolveu a vida plena. Ambas merecem agora um nome, pois, vivas, já não podem mais se sujeitar à sombra somente da doença (a hemorroíssa) ou do pai (a menina).


Todos ficaram admirados, como de costume, pois é preciso que se perguntem quem é esse homem, Jesus. Também como de costume, em Mc, Jesus pede que se mantenha o segredo messiânico (v. 43). Mas, a Jairo e à esposa, acrescenta que se “dê de comer à menina”. De fato, na comunidade, somente aos ressuscitados (pelo batismo) se daria o alimento (os sacramentos). A vida nova precisa ser alimentada para se sustentar.


 * * *


Jesus é Senhor da vida e o Reino de Deus é o lugar onde todos são chamados a viver à altura desse dom. Muitos vivem às voltas com grandes feridas, cujos sangramentos lhes roubam a vida, gastando por causa deles suas melhores energias e seus melhores anos. Outros vivem como mortos pelo desalento ou sob os excessivos rigores paternos que lhes sobrevêm de si mesmos, de outros ou da religião. A todos, Jesus chama a uma vida segundo a fé, libertada e ressuscitada.





PUBLICIDADE
  •  
  •  
  •  
  •  
  •