264. Nossa humanidade no lixo
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14.02.2022 | 4 minutos de leitura

Crônicas

“Eu vim para que todos tenham vida
e a tenham em abundância” (Jo 10,10)
“Meu bem, mas quando a vida nos violentar
Pediremos ao bom Deus que nos ajude.
Falaremos para a vida:
\"Vida, pisa devagar, meu coração, cuidado, é frágil.
Meu coração é como um vidro, como um beijo de novela”
(Belchior)
A vida não anda obedecendo as regras musicais do genial Belchior. Ela não tem pisado leve como ele suplicou na sua eterna canção Coração Selvagem. Ao contrário, a vida tem pegado pesado demais, especialmente com os mais pobres e vulneráveis. Da covid-19 às inundações das chuvas de janeiro, do desemprego à carestia, a vida tem maltratado com açoite os que têm menos defesa e amparo. É triste assistir à degradação do meio ambiente, aos estragos notáveis em nossos rios e nossas florestas. É triste ver as mineradoras comendo Minas Gerais qual rato faminto devora um queijo. É triste ver nossa fauna em extinção; não ouvir mais o canto dos pássaros ou não ver as araras voando pelos céus. É triste ver a covid-19 se alastrando por irresponsabilidade dos poderes públicos, mas também por descaso da população civil. É triste ver a crescente fila do desemprego e a insistente negação da realidade que se reflete no ibope dos realites shows. É triste ver o povo apostando a vida em loterias e outras bobices que trazem esperança passageira, que mais podem ser classificadas como ilusões do capitalismo selvagem, que também pode ser chamado com propriedade de capetalismo, pois isso é coisa do diabo. A lista é sem fim.
No entanto, dentre todas as crueldades de nossa sociedade dita civilizada, uma das que mais me corta o coração é ver tanta gente na rua, uma população inumerável de gente sem nada: sem terra, sem casa, sem dinheiro, sem comida, sem amor, sem cuidados de higiene, sem ninguém por eles, sem nada. Minha sobrinha contou-me que, ao passar pela Candelária, ficou tão estarrecida com o cenário de guerra, que nem sabia o que fazer, o que pensar, como agir... Não fosse o escuteiro Lancelot tomar a defesa dessa população, essa gente nem saberia o que é ser humano. O centro de São Paulo tem cenário de guerra, e os governantes do país só traçam políticas de higienização, pois querem despachar essa “gente imunda e inútil” para as periferias, para longe de seus olhos. São o lixo humano fétido que precisa ser enterrado para não arder as narinas “pilicosas” dos mais xexelentos, as madames cheirosas da sociedade paulistana, que não gostam de “gente diferenciada”.
Infelizmente o cenário de miséria e de pobreza não se encontra só em Sampa. Aqui em Beagá, é de cortar o coração ver tanta gente revirar o lixo. Hoje cedo mesmo, fui surpreendida por uma cena dolorosa. Dois adultos com duas crianças revirando lixo e recolhendo reciclável: um homem, uma mulher, uma criança de uns 8 a 9 anos e outra bem novinha. A mãe, qual leoa, depois de devorar as caixas de papelão e organizá-las no carrinho, pegou sua criancinha de idade entre um e dois anos e colocou-a sobre o amontoado de lixo que garantirá o almoço do dia – quiçá o reciclável tenha valor suficiente para ser trocado por umas cédulas imprestáveis que possam pagar pelo menos três marmitas. Foi chocante presenciar o acontecido. A dor é tanta que eu fiquei paralisada, sem iniciativa nenhuma mesma, sem saber o que fazer. Passei adiante com o carro, conformando-me à paisagem urbana. Mais à frente, quando estacionei o carro no meu destino, vi ainda um velho disputar o resto da classe média. Seu corpo raquítico não parecia ter forças para ficar de pé. Tentei me redimir dando-lhe um dinheiro qualquer, insignificante e mínimo, pois era o possível naquele momento.
A vida dá tapinhas de pelica em quem nasceu em berço de ouro e espanca quem já nasceu estropiado e sem chance alguma. Pobres, pretos, populações originárias, mulheres e pessoas LGBTQIA+ têm sido esfolados pela sociedade capitalista, pensada apenas para senhores poderosos, heterossexuais e brancos. Enquanto alguns desfilam de jet sky pelas praias da região Sul, outros morrem desabrigados pela chuva. Enquanto alguns comem caviar, outros comem as migalhas do lixo. Enquanto uns se hospedam em hotéis com diária que nem a rainha da Inglaterra ousa pagar, outros dormem nas marquises dos prédios. O senso de coletividade foi extinguido e, sem ele, a liberdade individual e o direito de propriedade são apenas algozes que batem a chibata no lombo dos escravizados de hoje.
Para nós cristãos, essa desigualdade fere tudo em que acreditamos e tudo aquilo que esperamos. Ela impede a vida plena trazida por Jesus. Estou cada dia mais certa de que não cabe a fé cristã nesse sistema capetalista. São genuinamente incompatíveis. Precisamos ousar sonhar outros mundos, outros modos de viver. O Papa Francisco tem nos ajudado com sua esperança e com suas iniciativas, quando nos convoca a construir outro sistema econômico, a economia do amor de Clara e Francisco. Mas não basta a convocação do sucessor de Pedro, se a gente não se desvestir de nossos privilégios e não estiver disposto a arriscar em novos caminhos. A vida em plenitude vem da fraternidade e da partilha e não do tamanho do PIB. Não adianta aumentar a produção de bens, se eles continuam acumulados nas mãos de poucos. Aumentar a produção só vai exaurir ainda mais o planeta e os trabalhadores. Essa história de fazer o bolo crescer para depois repartir é engodo antigo, desde os tempos do Delfim. Jamais o bolo estará grande suficientemente para ser repartido, pois a ganância dos poderosos não conhece enfaro. Nas próximas eleições, quem votar em candidato de extrema direita ou nesse projeto neoliberal de morte deveria ser banido das igrejas cristãs, a começar por pastores, presbíteros e bispos, que deveriam ser os primeiros a dar o exemplo. O cristianismo é simplesmente incompatível com o capitalismo. “Ninguém pode servir a dois senhores, disse Jesus nos Evangelhos. Ninguém pode servir a Deus e ao Dinheiro” (Mt 6,24 // Lc 16,13).
O que eu vi hoje cedo não foi uma criança num carrinho de reciclável. Foi a nossa humanidade jogada no lixo. Foi a nossa fé descartada, pois optamos por adorar o Dinheiro. De ora em diante, vou rezar a prece de Belchior: “Vida, pisa leve... cuidado é frágil”.
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