295. Dar um tempo
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15.07.2024 | 5 minutos de leitura

Crônicas

“Vinde a sós para um lugar deserto e descansai um pouco”
(Mc 6,31)
“Para conhecer o que acontece, qual decisão tomar,
julgar uma situação, é preciso ouvir o próprio coração”
(Papa Francisco)
Duas amigas muito próximas encontravam-se sempre, caminhavam juntas, conversavam muito. De repente, sem nenhum motivo aparente, uma delas se afastou, parou de conversar, ficou em silêncio. Após dois ou três meses, por acaso, elas se encontraram e a amiga, que ficara sem entender o porquê daquele sumiço, resolveu perguntar:
– O que foi que eu fiz? Por que você desapareceu, não conversa mais?
E a amiga respondeu:
– Nada, estou dando um tempo.
A outra, rindo, observou:
– Uai! Dando um tempo? Quem dá tempo é namorado; a gente não namora...
Ri muito quando compartilharam comigo esse fato, que agora transformo num “causo”. Aliás, mineiro tem esta mania: gostamos de contar algo que acontece conosco ou com outra pessoa, fazendo com que a história se torne irreverente ou se pareça com uma lição de vida.
Voltemos ao diálogo entre as duas amigas e destaquemos essa frase: “Estou dando um tempo”. Inicialmente, essa expressão soou como uma resposta indelicada, porque não é comum alguém dar um tempo em uma amizade. Entretanto, quis refletir melhor sobre isso, fiquei ruminando essa expressão interiormente e concluí que, em nossas vidas, deparamos com situações em que é importante dar um tempo.
Meditando sobre isso, lembrei-me de uma passagem dos Evangelhos em que Jesus, depois de um tempo de missão, reuniu os discípulos e disse: “Vinde a sós para um lugar deserto e descansai um pouco” (Mc 6,31). Jesus compreendia que precisamos de momentos assim; é prudente, diante de algumas situações da vida, darmos um tempo. Um tempo para nós, para os outros. Um tempo...
É muito comum esquentarmos a cabeça tentando resolver determinado problema, deixamos tudo, focamos somente na busca daquela solução e, muitas vezes, não conseguimos resolver. Então, decidimos dar um tempo. Deixamos o problema de lado por alguns instantes, oxigenamos a mente, respiramos, pensamos em outras coisas, tomamos um café, caminhamos ou fazemos algo semelhante e, então, “de repente, não mais que de repente”, como diria o poeta, encontramos a solução que tanto procurávamos.
No século XVI, um grande místico da igreja, Santo Inácio de Loyola, fundador da Companhia de Jesus – Ordem dos Jesuítas, já recomendava: “Durante momentos de desolação não tome nenhuma decisão”, ou seja, nas horas de provação, de angústia é aconselhável que nada decidamos. É melhor deixar passar um tempo, até que fiquemos com a cabeça mais fria para que assim tenhamos a possibilidade de decidir de maneira mais acertada.
Para Santo Inácio, também nos momentos de grande alegria, que ele chama de “momentos de consolação”, não seria bom tomarmos decisões profundas, o excesso de entusiasmo pode nos levar a uma escolha precipitada. Inclusive, há um ditado que resume com maestria este conselho inaciano: “Não dê castigo quando estiver muito nervoso, nem prometa algo quando estiver muito feliz”
Assim sendo, chegamos a um conceito essencial da teologia de Santo Inácio de Loyola, e, por conseguinte, da espiritualidade cristã: o discernimento. De modo bem simples, o Papa Francisco – que é jesuíta e, portanto, grande conhecedor da espiritualidade inaciana – resume o discernimento como “a capacidade de ouvir o próprio coração”. Diz o Santo Padre: “Para conhecer o que acontece, qual decisão tomar, julgar uma situação, é preciso ouvir o próprio coração”. Nós ouvimos a televisão, o rádio, o celular, somos mestre da escuta, mas pergunto: “Você sabe ouvir o próprio coração?”. É preciso parar para dizer: “Como está meu coração? Está satisfeito, triste, busca algo?”. Para tomar boas decisões, é preciso ouvir o próprio coração.
É sempre favorável que tenhamos oportunidades para nos dar um tempo e procurarmos ouvir o nosso coração e também a voz de Deus sussurrando em nosso ouvido. Podemos contar com o auxílio de outras pessoas, buscar aconselhamento, mas, nas grandes decisões de nossa vida, estaremos sempre sozinhos, por isso, o discernimento é uma atitude muito importante. Portanto, dar um tempo não é só atitude de quem namora; é atitude fundamental para o ser humano. Dar um tempo é oportunidade para discernir, para nos afastar um pouco daquilo que nos angustia e analisar qual será a melhor opção.
Haverá situações em que não teremos tanto tempo assim para reflexão, mas podemos nos lembrar do que o apóstolo Paulo dizia: “Discerni tudo e ficai com o que for bom (1Ts 5,19). Em outra passagem, ele escreveu também: “E isto eu peço a Deus: que vosso amor cresça ainda, e cada vez mais, em conhecimento e em toda percepção, para discernirdes o que é melhor” (Fl 1,9-10).
O discernimento é fundamental em várias situações de nossa vida. Aproveitemos sempre que possível as oportunidades para dar um tempo, escutar o coração, procurando ficar com o que é bom, para que sejamos capazes de tomar boas decisões.
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