287. Transbordar
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20.05.2024 | 4 minutos de leitura

Crônicas

“A boca fala do que o coração está cheio”
(Lc 6,45)
“Só sinto no ar o momento
em que o copo está cheio
em que o copo está cheio
e que já não dá mais pra engolir”
(Gonzaguinha)
Nessa época do ano, devido à presença das chuvas, o volume das águas dos rios aumenta e acontecem as enchentes. No entanto, fazia tempo que não víamos um mês de janeiro tão chuvoso. Ao longo dos últimos dias, vimos muitas imagens e ouvimos pelos noticiários: o rio tal transbordou ou está prestes a transbordar...
Ao ler as primeiras linhas dessa crônica, você deve estar se perguntando: “Qual a relação da espiritualidade com o transbordamento de rios?” Na verdade, não temos a intenção de dissertar sobre as causas das enchentes. Aliás, esse problema é antiquíssimo, acompanha a humanidade desde os tempos de Noé e tem aumentado drasticamente nos últimos anos pela falta de planejamento e de preocupação com o meio ambiente.
Apesar de ser esse um assunto vasto e muito atual, refletiremos sobre outros transbordamentos. Diríamos que, dentro de cada um de nós, em nossa interioridade, também correm e deságuam muitos rios. Embora nem sempre os percebamos, um deles é o rio dos sentimentos, com seus inúmeros afluentes que confluem caudalosos e serenos, e, vez ou outra, transbordam: alegria, tristeza, raiva, ressentimento, perdão, bondade, gentileza...
Certa vez, Jesus disse aos seus discípulos: “O homem bom tira coisas boas do bom tesouro do seu coração. Mas o homem mau tira coisas más do seu mau tesouro, pois sua boca fala do que o coração está cheio” (Lc 6,45). Cristo nos faz pensar nas palavras que brotam de nossos lábios e fazem transbordar o que trazemos dentro de nós. Não apenas através da boca, mas também de nosso olhar, acontece esse transbordamento interior. “O olho é a luz do corpo. Se teu olho é são, todo o teu corpo será iluminado” (Mt 11,34). Por meio de nossos olhos, transbordamos a nossa luminosidade ou a escuridão que nos habita.
Mesmo sem perceber, nós sempre transbordamos o que há em nosso interior. De modo bastante poético, Fernando Pessoa escreveu através de Álvaro de Campos – um de seus heterônimos: “Esta velha angústia, esta angústia que trago há séculos em mim, transbordou da vasilha, em lágrimas, em grandes imaginações, em sonhos em estilo de pesadelos sem erro, em grandes emoções súbitas sem sentido nenhum. Transbordou...”
As palavras de Jesus e esses versos do poeta português convocam-nos a refletir sobre o que estamos transbordando, em nosso cotidiano, através de nossas palavras, olhares e silêncios.
Uma amiga relatou-me uma experiência muito interessante. Durante uma tempestade, ela colocou um copo exposto à chuva e observou que ele demorou para encher. Apesar do fluxo de água, as gotas que caíam em seu interior não fizeram com que transbordasse. Ao mesmo tempo, ela colocou outro copo debaixo de uma goteira e rapidamente ele transbordou. Detalhe curioso: o copo, se colocado debaixo de uma goteira, transborda rapidamente; porém, se colocado em meio à tempestade, ele demora um pouco mais para encher. Ainda que desabe um dilúvio ao redor do copo, em seu interior ficará apenas uma quantidade determinada de água.
Assim como aquele copo em meio à tempestade, nós também levamos muito tempo para transbordar. Parece que transbordamos por causa de uma pequena gota d’água, que aparentemente surgiu de modo inesperado. No entanto, ela não surgiu inesperadamente, vamos acumulando coisas internamente, até chegar um momento em que é impossível conter o transbordamento.
Outro aspecto relevante sobre os transbordamentos de rios é que, se passarmos por algum lugar onde ocorreu uma enchente, veremos os rastros da água ao longo da margem. Os excessos são eliminados e o rio segue com o que lhe é suficiente e necessário.
Os nossos transbordamentos são como os dos rios, ocorrem ocasionalmente. No cotidiano, seguimos o curso normal, assim como o rio que segue pelo seu leito até desaguar no mar. Talvez assim como os rios, também precisemos deixar para trás os excessos e retermos apenas o suficiente, o que nos é necessário para desaguarmos no mar divino. O grande objetivo do rio é este, desaguar no mar, transbordar serenamente no mar. A nossa meta é desaguar no oceano de Deus.
Nem sempre deixamos transparecer o que há de bom em nosso interior. Como seria bonito e gratificante, se permitíssemos que todos sentissem a presença do Senhor através de nossos gestos! Que possamos transbordar o amor de Deus por onde formos.
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