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263. Vergonha descarada

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07.02.2022 | 2 minutos de leitura
Solange Maria do Carmo
Crônicas
263. Vergonha descarada
“Olhai: o salário dos trabalhadores que ceifam os vossos campos,
e que vós deixastes de pagar, está gritando;
o clamor dos trabalhadores chegou aos ouvidos do Senhor todo-poderoso” (Tg5,4)

“Reparei nessa ferida
Que me fez seu punhal:
Gume de ouro, punho de ouro,
Ninguém o pode arrancar.
Há tanto tempo estou morta,
Mas continuo a pensar”
(Cecília Meireles)

Assisti certo dia num jornal televisivo a uma reportagem sobre a limpeza urbana em BH. Comunidades periféricas reclamavam do descaso dos governantes e denunciavam a precariedade das vias públicas. A queixa principal era acerca da imundície que se acumulava em alguns bairros por falta de coleta frequente de lixo, mas os moradores reclamavam também que as ruas não eram capinadas nem varridas com frequência. Consultada sobre a situação, uma secretária falou em nome da prefeitura. Afirmou que todas as ruas têm coleta de lixo e recebem os garis para limpeza frequente. Segundo ela, as ruas das periferias são varridas de quinze em quinze dias. Já as ruas do centro, como as do coração de BH – a Savassi, são varridas duas vezes por dia.
Fiquei muito assustada com a cara de pau de nossa liderança, capaz de falar um despautério desse publicamente sem ver a cara corar de vergonha. Enquanto os bairros pobres tem limpeza num espaço de 15 dias, a Savassi é limpa duas vezes por dia. Ou seja, a Savassi é 30 vezes mais limpa que uma rua onde moram os pobres. É a chamada vergonha descarada, tão falada por meu pai na minha infância. Quando a gente falava um absurdo, ele dizia: “Não tem vergonha na cara, não? A cara nem queima de contar isso? Que vergonha descarada!”.
Tenho pensado sobre isso. Normalizamos a desigualdade social e legitimamos os abismos econômicos. Acostumamo-nos com as coisas como elas são e já nem nos assustamos com o que os absurdos do capitalismo. Comentamos certos acontecimentos absurdos como se fossem fatos normais, como fez a secretária da prefeitura. Assistimos à crescente inflação, ao aumento da pobreza e da fome, e dizemos: “É assim mesmo, fazer o quê?”. É muito triste ver que perdemos a vergonha na cara! Quanta falta faz o meu velho pai com seus ensinamentos!
Na bíblia, Jesus sempre chama a atenção de seu público para a normalização dos absurdos. Por exemplo, discriminar os pecadores públicos tais como prostitutas e publicanos era coisa comum nos seu tempo. Jesus mostra o outro lado da moeda e dá lugar de destaque para os excluídos da sociedade. Mostra que normalizar o preconceito não é boa coisa. Também quando os judeus querem tirar dos ambientes religiosos os doentes e outras pessoas consideradas impuras, Jesus chama-as para o centro da roda em vez de mandá-las embora como faziam os outros santinhos do pau oco.
A desigualdade social sempre assustava o mestre de Nazaré. Não são poucos os relatos bíblicos que mostram Jesus irado com a situação de descaso do povo. Fico me perguntando por que motivo os cristãos – ditos seguidores desse Nazareno – não se assustam mais ao ver cenas tão deploráveis ou ao ouvir um absurdo como esse que disse a secretária da prefeitura. 
Para nós cristãos, normalizar a desigualdade e aceitar com passividade esse mundo feio e vil não deveria ser uma possibilidade. Alegro-me por saber que existem Júlios Lancelotes por aí, pessoas que não se acostumam com a situação de miséria e subalternidade em que os mais vulneráveis são colocados por força do maldito capitalismo. Ainda há gente com vergonha na cara. Que bom! Isso alimenta nossa esperança. 
Nesse ano de eleições, todo tipo de candidato vai subir à tribuna para falar bonito e pedir nosso voto. São gumes e punhais de ouro, como disse Cecília Meireles, que ferem e matam ainda mais que outras lâminas. É bom prestar atenção nessas feridas. Esses candidatos são de fato líderes populares, que ainda têm alguma vergonha na cara? Ou serão apenas repetidores do sistema opressor com palavrório elaborado? Se resta a nós cristãos alguma vergonha na cara, haveremos de mostrar nas urnas nossa revolta e indignação com essa elite podre que domina e o país. Gente que normaliza a pobreza, a miséria, o desemprego, a fome, a morte... Haveremos de voltar a sonhar de novo com um país no qual os pobres têm dignidade, os trabalhadores podem viajar de avião, os jovens de periferia podem estudar nas universidades e as empregadas domésticas podem realizar o sonho de conhecer a Disney (sonho do oprimido de reforçar o imperialismo opressor, infelizmente). Seremos novamente um povo com vergonha na cara, pois até isso esse governo atual nos tirou

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