254. Temeridades
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23.02.2021 | 11 minutos de leitura

Crônicas

“Olhando em seu redor, indignado e entristecido pela dureza de seus corações,
disse ao homem da mão seca: ‘estende tua mão’ e o curou” (Mc 3,5).
“Você não sente nem vê
Mas eu não posso deixar de dizer, meu amigo,
Que uma nova mudança em breve vai acontecer
E o que há algum tempo era jovem e novo, hoje é antigo
E precisamos todos rejuvenescer”
Mas eu não posso deixar de dizer, meu amigo,
Que uma nova mudança em breve vai acontecer
E o que há algum tempo era jovem e novo, hoje é antigo
E precisamos todos rejuvenescer”
(Belchior)
Sou dada a esperanças mesmo em meio ao desespero. Sou do tipo que enverga, mas não quebra. Talvez por isso eu gosto tanto de Belchior e o considero um dos maiores cantores do Brasil. Sua voz rouca embalou minha adolescência, e suas letras subversivas, cheias de dor e solidariedade, reviraram minhas entranhas muito cedo. Acumulei um acervo de canções rebeldes no arquivo da memória e elas continuam embalando meus sonhos. A mesma rebeldia me fez amar Caetano, cujas composições me emocionavam – e ainda emocionam. Sua lucidez política continua servindo de farol para muitos brasileiros. Há quem o critique como Raimundo Fagner, cuja voz amo e posição política desprezo. Deixei de ouvir as canções deste cearense e renunciei ao sonho de assistir a seu show por pura antipatia e aversão à sua peleguice. Não tolero os que são coniventes com o mal, especialmente os que nasceram na bosta de boi como eu e ele, Fagner, de Orós, lugar de seca e sofrimento. Honro minhas origens, minha formação e a educação que recebi de meus pais. Tenho orgulho dos valores humanos que me foram inculcados numa família de oito filhos e uma pobreza de fazer passar vergonha.
Dentre o patrimônio que herdei de minha família, encontra-se um vocabulário único. Até onde sei, eram expressões próprias do dialeto do povo da roça, de onde vieram meus pais com as mãos vazios e a cabeça cheia de projetos. Algumas vezes, escutei esses termos também na vizinhança ou em outras comunidades rurais da Zona da Mata, onde nasci e vivi até os 22 anos. São inúmeras palavras: frespa em vez de farpa, impi em vez de ímpeto, estâmago em vez de estômago, prasta em vez de plasta, piricritante em vez de periclitante, interter em vez de entreter e proia (que quer dizer pessoa lerda) e que não sei de onde vem. São expressões que ainda uso, apesar de ter aprendido a língua culta e me tornado uma mulher das palavras, da leitura e da escrita.
Dentre essas preciosidades, sempre tive predileção por uma. Trata-se da expressão timiridade em vez de temeridade. Em situações piricritantes, aquelas em que a vulnerabilidade humanidade se mostra exposta, meus pais – sempre muito bondosos – diziam cheios de espanto: “Que timiridade!”. A palavra servia tanto para definir o estado de uma criança dormindo indefesa no balaio até alguém adoecido à beira da morte. Servia para expressar uma tragédia ou o esforço hercúleo de alguém tentando em vão obter sucesso numa tarefa superior às suas forças. Ah, e se uma pessoa viesse com excesso de humildade pedir algo, também se dizia que ele estava cheio de timiridade. Certo é que, de quando em quando, a gente se deparava com a fragilidade humana e exclamava: “Que timiridade!”. Aprendemos assim que devíamos nos escandalizar diante do sofrimento alheio, mesmo que fosse a dor de um animal ou uma plantinha que murchava por falta de água. Nenhuma vida deveria ser desprezada, maltratada, esquecida, abandonada.
O tempo passou e me tornei mulher madura, repleta de cabelos brancos, que começaram a aparecer aos vinte e um e que escolhi assumir em vez de me tornar loira. Hoje com cinquenta e sete, já quase não vejo fios pretos e não me orgulho propriamente deles, mas do que eles representam: tornei-me uma mulher que não nega suas origens, muito menos a educação recebida de meus familiares. Abandonei algumas expressões, aprendi a falar farpa em vez de frespa, mas timiridade é expressão que me acompanha, talvez porque convivo todos os dias com a fragilidade de minha irmã, cuja doença degenerativa desde os vinte e dois anos (hoje com 51) expõe sua vulnerabilidade. Ela fica confusa, não consegue falar, eu penso: “Que timiridade!”. Ela grita meu nome e quer minha presença, mas eu preciso trabalhar. Eu penso: “Que timiridade!’. Ela pega uma infecção, mas não dá febre, não consegue dizer o que tem. Eu olho aquele corpo frágil entregue à escravidão de uma doença rara e desconhecida e penso: “Que timiridade!”. O fato é que adquiri a capacidade de comover-me com a dor do outro, e essa angústia vem sempre acompanhada do pensamento “que timiridade!”. As timiridades são muitas, dentro e fora de casa. Vão além do âmbito familiar. Não é preciso conhecer uma pessoa para sentir sua dor, nem é preciso ser amigo de alguém para ser solidário com ele na sua tragédia pessoal. Basta um pouco de empatia e de compaixão.
Como biblista e pessoa de fé, estou constantemente com o texto bíblico diante dos olhos, seja para meditação, oração ou estudo. E são inúmeras as passagens dos evangelhos em que Jesus tem as entranhas contorcidas diante da dor do outro. Como os textos foram escritos em koiné (grego popular), faltam palavras para traduzir para o português o que Jesus sentia. Às vezes, os tradutores dizem que Jesus estava “cheio de ira”, “tomado de compaixão’ ou até mesmo “encolerizado”. Mas nenhuma dessas expressões denota para mim o que de fato o evangelista queria dizer. Talvez, se o tradutor conhecesse a expressão timiridade ajudasse em algumas traduções. Diante da multidão faminta que o segue, o que dizer senão “Que timiridade !”? E diante do desprezo dos doentes por parte das autoridades religiosas, como evitar a expressão “Que timiridade !”?
Tenho sentido uma timiridade frequente nesses tempos de pandemia. São duzentos e cinquenta mil mortos pela covid 19. São duzentos e cinquenta mil lares em luto, com casos de mais de uma perda na mesma família. São um sem fim de pessoas que a doença debilitou e deixou sequelas. Pessoas morrem sem atendimento nas filas dos hospitais e profissionais de saúde estão exaustos do combate. Familiares enterram seus mortos sem uma despedida digna e por todo canto se vê pranto e dor: “Que timiridade !”. Custa-me acreditar que pessoas do calibre do presidente da república façam coro com ele e digam “E daí? Quer que eu faça o quê?” em vez de dizer “que timiridade ” e tomar uma providência para diminuir o sofrimento alheio. Na minha casa, a expressão devia necessariamente ser acompanhada de um gesto concreto de bondade em socorro do sofredor, mesmo que para isso a gente tivesse que se desinstalar. Caso contrário, pai e mãe vinham furiosos tomando providência e nos chamando de proia. Não era possível ser proia, pessoa sem iniciativa, também conhecida pelo título de “porsi”, aquela que não está disposta ao cuidado com o outro, mas vive numa posição acomodada, alheia ou indiferente ao sofrimento dos que os rodeiam.
Nessa semana, uma de minhas irmãs mais velhas compartilhou comigo uma timiridade de cortar o coração. Rompeu seu isolamento social para aventurar-se na dura tarefa de fazer as compras necessárias e, no meio do caminho, seus olhos não puderam se desviar da população que vive nas ruas e implora por ajuda. Tocou-lhe especialmente o coração ver um homem pedindo, suplicando, implorando ajuda, de joelhos e com os braços estendidos, numa cidade que não acumula cem mil habitantes. Era tanta timiridade que lhe parecia impossível ver aquilo sem ter as entranhas remexidas num ímpeto (ou impi) de compaixão e raiva ao mesmo tempo. Compaixão e misericórdia do sofredor; raiva, ira – e por que não ódio? – das autoridades brasileiras que negam auxílio emergencial à população vulnerável enquanto que, no mesmo dia, o senador da cueca cheia de dinheiro reassume sua função na “casa dos senhores”. Como é possível um mundo tão injusto, tão cruel e tão desumano?
No noticiário que anunciava a impunidade do senador, assistimos de camarote à prisão em flagrante de um tal deputado por crimes contra a democracia. Demorou para que o Pitibull do PSL recebesse alguma punição, pois não é a primeira vez que ele atenta contra o estado democrático de direito, abusa da imunidade parlamentar e se acha acima da lei. No flagrante, não vemos um homem acuado ou com medo, mas uma pessoa altiva, sarcástica e debochada. Distribuiu chicletes para os policiais, gravou e divulgou um vídeo mesmo depois de receber voz de prisão e, no IML, destratou funcionários com uma arrogância que só culpados são capazes de ostentar. Tudo isso diante de um delegado conivente com os seus desmandos e de policiais “cheios de dedos” para enquadrar o meliante. Fosse um pobre, preto, favelado, ou uma pobre travesti das ruas de São Paulo, teria apanhado tanto que não viveria para contar a história. Mas o que não faz uma pele alva, um corpo sarado e um cargo no legislativo?
Quando a Câmara dos Deputados ratificou numa vitória acachapante a decisão do Supremo Tribunal – que por unanimidade havia votado a favor da prisão em flagrante do miliciano – não faltou quem tomasse suas dores. São todos “farinha do mesmo saco”, diria meu pai. E, para vergonha dos cristãos, alguns adeptos das igrejas do mercado que se apropriaram indevidamente do nome de Cristo – dentre eles alguns catolicões de plantão – foram para a frente da delegacia protestar e fazer papel de bobo. Gritaram palavras de ordem, ajoelharam-se e fizeram cena. São bons atores. Certamente são os mesmos que marcaram presença teatral na porta do hospital de Recife, quando xingaram de assassina a menina de dez anos que, com o amparo da lei, estava prestes a ter sua gravidez interrompida. Não foram capazes de dizer “que timiridade!” ao ver uma criança pobre, desprotegida, vítima de violência doméstica desde os seis anos de idade. No entanto, são capazes de se solidarizar com um criminoso, reincidente, com inúmeras transgressões da lei pesando sobre suas costas.
Eu me pergunto: “O que aconteceu com esse país? Que vírus contaminou nossa gente a ponto de provocar uma inversão de valores tão gritante? Será que a nossa humanidade foi carcomida pela estupidez como papel devorado por traças?”. Não há explicação política ou psicológica capaz de dar conta do fenômeno que salta aos olhos. Confesso: resisto e sigo cheia de timiridades diante da dor de nosso povo sem vacina, sem emprego e sem governo em plena pandemia. É desesperador ver o Brasil em queda livre, ver nossa gente humilhada, abandonada por aqueles que deveriam ser seus guias. Peço a Belchior licença para plagiar suas palavras. Para os que conseguem dormir tranquilamente, canto: “Se você vier me perguntar por onde andei no tempo em que você sonhava. De olhos abertos, lhe direi, amigo, eu me desesperava. Sei que assim falando pensas que esse desespero é moda em 2021, mas ando mesmo descontente, desesperadamente, eu grito em português. Tenho 57 anos de sonho e de sangue (nas veias e nos olhos) e de América do Sul. [...] Eu quero é que esse canto torto feito faca corte a carne de vocês”.
Quem não tem a carne cortada pela dor do outro não pode se dizer cristão. Melhor a gente se desesperar diante das atrocidades que ficar inerte no sofá assistindo um boçal apresentador de programa de auditório que apoia milicianos. Tem dor que é bem-aventurança e tem paz que é pura maldição. Nesse momento da história, é bom saber de que lado a gente está. Para o pobre pedinte que suplicava de joelhos por uma esmola e para a criança violentada digo “que timiridade” e me disponho à luta por seus direitos. Para o deputado valentão, digo: “Que bom que o judiciário tomou essa decisão! Já passava da hora de o criminoso ser punido!”. Que sirva de lição para todos que são da sua trupe!
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