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252. Júlio Macabeu

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08.02.2021 | 7 minutos de leitura
Solange Maria do Carmo
Crônicas
252. Júlio Macabeu
“Ai de mim! Para que fui nascer, para ver a ruína do meu povo
e a destruição da cidade santa?” (1Mc 2,7)


“Fé na vida, fé no homem, fé no que virá.
Nós podemos tudo; nós podemos mais.
Vamos lá fazer o que será”
(Gonzaguinha)

O título dessa crônica não é meu. Copiei-o do amigo Fernando Altemeyer, que não sei se copiou de alguém ou se ele mesmo teve a feliz ideia de dar esse sobrenome ao padre Júlio Lancellotti. Macabeu significa martelo e, na Escritura Sagrada, refere-se à família do velho Matatias, que viveu no século II antes de Cristo.
O nome Macabeu ficou conhecido e ganhou destaque por sua bravura. Os filhos de Matatias – especialmente Judas, Simão e Jônatas – lutaram contra o rei Antíoco IV, da dinastia dos selêucidas da Síria, soberano que oprimia o povo de Judá. Eles eram em menor número e com menos condições que o governante, mas a bravura dos filhos de Matatias, especialmente de Judas que desencadeou a resistência, garantindo a vitória sobre o opressor. A Bíblia traz dois livros dedicados a essa história com o nome da família: 1 e 2 Macabeus.
Os dois livros contam versões diferentes da história e não são sequência um do outro. Certo é que, em tempos de opressão extrema, inclusive com a proibição do culto ao Deus dos israelitas, a determinação de Judas colocou para correr o atrevido Antíoco IV, que se autointitulara Epífanes, ou seja, uma manifestação divina. Tal era sua síndrome de Deus, que Antíoco mandara fazer uma representação de si mesmo como uma divindade. Uma estátua de mais ou menos 30m, com o corpo sarado de Zeus e com o rosto do rei, fora colocada no Templo. Tal figura ficara conhecida como Abominação Desoladora (Dn 9,27; 11,31; Mc 13,14; Mt 24,15), ou seja, algo detestável aos olhos de Deus e propiciadora de desgosto para a nação.
Quando os Macabeus começaram a se organizar, era quase impossível crer que teriam sucesso no empreendimento da resistência. Parecia uma utopia: bela a ponto de seduzir, mas impossível de se realizar. Foi preciso muita liderança e organização para que os pequenos colocassem o grande e atrevido Antíoco para correr. Matatias, o pai dos Macabeus e cujo nome pode ser traduzido como pedra no sapato, havia deixado um legado de resistência, e seus filhos Macabeus – cujo nome pode ser traduzido como martelo – seguiram os passos do patriarca. Lutaram e resistiram até pôr o opressor pra correr. Depois, fizeram a chamada purificação ou dedicação do Templo, pois entenderam que o lugar santo havia sido profanado. O feito entrou para o calendário litúrgico dos judeus, ganhando o nome de Festa da Dedicação, cuja marca era seu teor revolucionário, relembrada no Novo testamento pelo evangelista João (10,22).
Nessa semana, o Brasil foi surpreendido pela ação profética do padre Júlio Lancellotti, o Macabeu brasileiro, que anda pelas ruas de São Paulo convivendo com os desvalidos e abandonados pelas autoridades competentes (ou talvez, incompetentes). Vendo que a prefeitura fizera um jardim de pedra debaixo dos viadutos onde moravam muitos sem tetos, padre Júlio decidiu ele próprio fazer sua parte. Fez como canta Gonzaguinha: “Vamos lá fazer o que será”. De posse de uma marreta, saiu feito trator humano quebrando as pedras pontiagudas a fim de devolver o “lar” para aqueles que nem a rua abriga mais. Com espírito livre mas obrigado ao amor fraterno, o presbítero de quase 80 anos mostrou a capacidade e a força do compromisso ético com os vulneráveis da sociedade. Não demorou para a prefeitura tomar providência e mandar diversos trabalhadores armados de marretas e tratores para “ajudar” o padre no seu empreendimento. A prefeitura fez de boba; botou a culpa num bote expiatório que foi exonerado do cargo e fingiu solidariedade com os pobres, fazendo pensar que esse era um caso isolado de crueldade. No entanto, para quem acompanha os noticiários, não é preciso muita inteligência para conectar os jardins de pedra com outras iniciativas do governo paulista. Não é de hoje que assistimos a cenas como os caminhões da limpeza recolhendo pertences dos moradores de rua e jogando nos pobres coitados jatos d’água em pleno inverno. As pedras pontiagudas dos viadutos são apenas a ponta do iceberg.
Os jardins de pedra infelizmente não são uma exclusividade de São Paulo. Fazem parte da política higienista e supremacista de autoridades brancas e empoderadas que se enriquecem com a máquina mortífera do capitalismo. Em Belo Horizonte, onde resido, eles já deram o ar da graça (ou da desgraça). A primeira vez que vi tal coisa fiquei tão estarrecida que desejei ter uma marreta para fazer o que fez o bom velhinho amigo dos pobres de São Paulo. Mas, chegando em casa, o máximo que consegui fazer foi despejar minha ira nos que convivem comigo e, logo depois, fui tragada pela correria da vida, cujas urgências nos obrigam a pensar em nós mesmos e nos tornam alheios ao sofrimento do outro. E assim a vida segue...
Quando a notícia da ação libertadora de Júlio Lancellotti viralizou, ocupando jornais e redes sociais, seja em forma de notícias ou de memes e charges, eu me senti vingada. Tive inveja da coragem desse homem, capaz de se expor à violência institucional e às críticas e acusações de seus perseguidores. Parecia que eu mesma saíra da caverna do individualismo e hasteara a bandeira da revolução contra a perversidade dos governantes do país. Quando o sistema é perverso, a rebeldia é um ato de sanidade mais que legítimo. Quisera eu que, depois da marretadas de Júlio, tantos outros Macabeus – inclusive eu – empunhem suas marretas para destruir os símbolos da opressão, pois infelizmente os malfeitores não desistem de seus intentos macabros.
Se por um lado não faltaram maldosos para condenar a profecia de Júlio, foi abundante a manifestação de solidariedade. Cartunistas fizeram charges maravilhosas, políticos manifestaram seu apoio, colunistas escreveram suas impressões do fato em apoio ao padre. E meu amigo poeta, Eduardo Calil, fez belos versos que compartilho aqui.

Contra pedras

Pedras!
- Como doem!
Pedras,
Não pão.
Pedras,
Não escola.
Pedras
Contra o descanso?
Pedras como descaso?
Pedras, não casa.
Pra não haver abrigo.
Pra não haver sombra.
A desolação de uma ponte.
A desolação da desolação.
Pedras pro pior estado.
Pedras - Covas!
“Quem não tem pecado,
Atire a primeira pedra!”
Atiraram!
Os corações de pedra,
Atiraram.

Uma esperança:
Um padre contra a pedra.

Termino com um agradecimento explícito ao padre Júlio Lancellotti: Obrigada por cultivar a compaixão cristã, que move a gente a sair ao encontro dos vulneráveis da terra. Obrigada por não amar a si mesmo mais que aos desvalidos do mundo. Obrigada por não se intimidar com a ameaça dos covardes de arma na mão. Obrigada por seu olhar apurado e atento, capaz de identificar as perversidades do sistema capitalista, que gera humanos descartáveis e os empurra para a morte. Obrigada por me fazer crer que a fé cristã é em primeiro lugar defesa dos vulneráveis e não excesso de piedade e de dogmatismo. Depois de seu gesto, me sinto mais esperançosa e confiante de que a vida vence a morte. Salve Júlio Lancellotti Macabeu, a marreta que persegue os poderosos e defende os oprimidos.