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279. Olhando o futuro

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18.09.2023 | 2 minutos de leitura
Solange Maria do Carmo
Crônicas
279. Olhando o futuro
“Que o Deus da esperança vos encha de toda a alegria e paz em vossa fé” (Rm 15,13)

"Eu quero crer no amor numa boa
Que isso valha pra qualquer pessoa
(Lulu Santos). 

Já faz tempo que temos inistido em conjugar o verbo esperançar, ainda que seja contra toda evidência de desespero e solidão. A vida atual, sustentada no sistema capitalista que privilegia alguns poucos e maltrata e subalterniza a grande maioria, não tem favorecido pra gente continuar olhando positivamente para o futuro. Como canta Lulu Santos, “eu vejo a vida melhor no futuro. Eu vejo isso por cima de um muro de hipocrisia, que insiste em me rodear”. Para ver a vida melhor no futuro, é preciso uma dose de hipocrisia, pois tudo leva a crer que estamos indo contra um iceberg capaz de destruir nosso titanic. 
Apesar de tudo, insistimos em procurar alguma luz no horizonte, pois, como cantamos nas nossas igrejas, “nós não somos um povo, de perder o ânimo e parar, de olhar pra trás e voltar, de desanimar” (Orione Silva e Solange do Carmo). Cantamos sim, e devemos cantar mais ainda, mas que está difícil de conjugar esse verbo, ah! isso está…
Quando eu era adolescente, no famoso ginásio, hoje 6º ao 9º períodos, aprendi com a professora de português a difícil tarefa de conjugar os verbos. Meu encantamento era tal com a língua, que eu devorava a gramática. Fiquei estarrecida quando descobri os tais verbos defectivos, aqueles que não são conjugados em todos os modos, tempos e pessoas, como é o caso de colorir, demolir, explodir, extorquir, adequar etc. Fazendo memória do passado, observo que, na lista de minha antiga mestra, não constava o verbo esperançar, inaugurado por Paulo Freire e amplamente divulgado por Rubem Alves. 
Hoje percebo que esse verbo é conjugável no tempo presente do indicativo, mas não para todas as pessoas. Vivemos tempos sombrios e parece-me que só os santos, aqueles que conseguem ver acima do muro com os olhos da fé, conseguem vislumbrar o começo de uma nova era. Eu mesma esperançara, no pretérito mais que perfeito; já esperancei bastante em momentos de crise, no pretérito perfeito; e esperançava continuamente, no pretérito imperfeito. Não importava o modo, no tempo passado esperançar era verbo que eu conjugava. E ponto. Mas, depois do emburrecimento da população brasileira – processo incentivado pela extrema direita que usurpou o poder no país desde 2016 com o golpe da presidenta Dilma – hoje já não consigo esperançar tanto como outrora, apesar de continuar insistindo... Minha esperança oscila equilibrista na corda bamba das intempéries da vida. Quando a justiça brasileira se mostra eficiente para punir o maus, eu esperanço um pouco... Quando ela vacila e sucumbe ao poder dos poderosos, na primeira pessoa do singular não é possível mais esperançar. Mas não desisto: agarro nas mãos de alguns naúfragos da espernaça e, assim, esperançamos pela força do coletivo.
No futuro, gostaria de esperançar de novo, em todos os tempos e modos, sem exceção, ainda que nem todas as pessoas se empenhem em fazê-lo. Adoraria ver o verbo esperançar fora da lista dos tais defectivos, sendo ensinado nas escolas como verbo regular terminado em “ar”, assim como amar, que – coitado! – foi destronado para dar lugar ao verbo armar, modelo hoje assumido por um sem fim de gente perversa e tola. Nem as criancinhas foram poupadas dessa maldade; não faltou quem as tomasse no colo não para amá-las e cuidar delas, mas para ensinar a fazer arminha com a mão. 
Quando o povo hebreu foi deportado para a Babilônia, viu sua terra devastada pelo império opressor de Nabucodonosor. Foi uma desolação total. Ficou difícil esperançar. Quem não fora deportado para o país estrangeiro, ficara em sua própria terra aniquilada pela violência dos maus. Ficava difícil esperançar naquele tempo, em qualquer modo e para todas as pessoas. Ou se via por cima do muro com os olhos da hipocrisia interesseira que leva o oprimido a tomar o partido do opressor, como foi o caso dos falsos profetas, ou se tomava a radical e inusitada atitude de esperançar, ainda que nada motivasse a fazê-lo. Foi esse o caminho que escolheram os profetas Jeremias e o Segundo Isaías. Movidos pela força transformadora da fé, não permitiram que esperançar se tornasse verbo defectivo. 
Recorro ao espírito dos profetas para visualizar dias melhores. O crescimento da economia dá esperanças; o controle da inflação sinaliza que nem tudo são catástrofes. Mas ainda há muito a fazer, principalmente no que diz respeito à punição dos depredadores do país, aqueles que se apossaram do Brasil como se fosse propriedade particular deles. Sem punição para os maus, não é possível esperançar. Para não perder o fio invisível da esperança que nos guia nesse labirinto de Ariadne, continuo resoluta no propósito de ver além dos muros da impunidade... Ponho as mãos como sombrinha sobre os olhos, para não me deixar ofuscar pela ilusão da claridade das mídias golpistas e digo: Eu esperanço, tu esperanças, ele esperança... Nada como um dia depois do outro. Vamos esperançar!

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