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267. Sonhos e ilusões

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21.03.2022 | 3 minutos de leitura
Solange Maria do Carmo
Crônicas
267. Sonhos e ilusões
“Os escribas e fariseus usam faixas bem largas com trechos da Lei 
e põem no manto franjas bem longas. 
Gostam do lugar de honra nos banquetes 
e dos primeiros assentos nas sinagogas” (Mt 3,5-6)

“Esse cara sou eu”
(Roberto Carlos)

Esperançar é verbo mais que necessário. Paulo Freire e Rubem Alves já diziam que sem esse verbo nós perecemos. É preciso alimentar os sonhos e nutrir as utopias, se a gente não quiser sucumbir. No entanto, seria bom distinguir entre sonhos e ilusões. Os primeiros fazem a gente alçar voos, mesmo sem tirar os pés do chão. As ilusões entorpecem a gente e anestesiam as dores por alguns instantes, mas, em seguida, o choque de realidade é grande.
Quando viajei nessas férias para uma praia da Bahia, fui surpreendida com uma ilusão desconhecida: a do tal copo térmico stanley. Eu nunca tinha escutado falar sobre esse utensílio, e sua presença nas mesas das barracas me passava despercebida. Não é possível notar o que a gente nem sabe que existe. Mas, uma vez chamada nossa atenção, passamos a ver em todo canto o que antes nosso cérebro não registrava presente.
Minha sobrinha, dois amigos e eu, sempre de máscaras, caminhávamos distâncias consideráveis para achar uma praia deserta onde fosse possível relaxar por uns minutos, longe da muvuca das grandes barracas. No trajeto, enquanto deixávamos para trás as aglomerações, meus amigos chamavam minha atenção para o copo stanley, praticamente presente em todas as mesas dos turistas mais abastados. Segundo fui informada, o copo, além de conservar gelada a cerveja, serve de distintivo social, uma espécie de selo de qualidade que diz: “sou da classe média, gasto dinheiro com inutilidades e não me misturo com essa gentalha”. Mas como é possível um copo dizer o lugar que ocupamos na sociedade?
Infelizmente, são coisas do capitalismo. Não basta cometer a injustiça; é preciso demarcar os lugares existenciais. Quem pode comprar um copo por 200 ou 300 reais e faz questão de levá-lo em viagem e usá-lo publicamente não está somente bebendo sua cerveja geladinha na praia; está também dizendo: eu sou o cara. 
A ilusão da classe média – que se sente separada da classe pobre por alguns mil reais e se entende perto da classe rica, mesmo distante dela por bilhões de reais – sempre foi algo que me intrigou. Meu pobre pai, um ex-agricultor que se tornou sem-terra pois veio para a cidade estudar seus filhos, não se cansava de nos lembrar o lugar que ocupávamos na sociedade. Não queria que vivêssemos de ilusões. Assim, crescemos realistas demais; eliminamos tantas ilusões e descartamos tantos penduricalhos que a crueza da vida se tornou nosso pão cotidiano. Aprendemos a agradecer cada conquista sabendo que ela não é somente uma soma de esforços nossos, mas também de oportunidades nem sempre distribuídas igualmente entre os humanos. Desse modo, não foi possível viver de ilusões. O lugar que ocupamos hoje pode ser o lugar de outro amanhã; viver apegados a ilusões passageiras faz sofrer a gente e os que nos rodeiam. Como a vida é breve, melhor usar nosso tempo fazendo o bem e promovendo a dignidade humana do que demarcando os espaços sociais, sempre tão voláteis.
O copo stanley, na verdade, não é o problema. É só um copo como qualquer outro. O problema mesmo é a ilusão do capitalismo, que separa em classes os que mais podem consumir dos que podem consumir menos ou nada. Enquanto observávamos as mesas da classe média decoradas com o copo da moda, jatinhos passavam por nossas cabeças transportando os ricaços diretamente do aeroporto para os ressortes ou suas magníficas casas de praias. E ainda, iates de luxo passeavam pela costa transportando poucos marajás, enquanto a classe média se aglomerava em plena pandemia em pequenas escunas. O absurdo desse abismo social fica obscurecido pela ilusão passageira do consumismo da classe média, representada no copo em que se bebe a cerveja.  
O papa Francisco tem nos chamado a atenção para as periferias existenciais, expressão que ele elegeu para falar das populações vulneráveis que o sistema econômico gerou. Não se trata, pois, de uma espaço geográfico, mas de um lugar social, de um modo de vida à margem dos direitos mais vitais e da ausência do reconhecimento da dignidade humana. O capitalismo não lida com pessoas, mas com consumidores. Quem pode consumir é gente; quem não pode é lixo humano. Não é de se estranhar, no tempo atual, o crescimento de grupos neonazistas, que alimentam a ideia da supremacia. Pobres, negros, indígenas, homossexuais, travestis, migrantes, populações de rua etc. são uma ameaça para a vida confortável e besta que essa gente colocou como ideal. Muitas vezes, são pessoas também sofridas que não se dão conta do lugar que ocupam e, assim, servem de escudo humano para os verdadeiros poderosos – esses sim, perversos e maquiavélicos – que têm o domínio dos bens do mundo.
No Evangelho de Marcos, quando os judeus na sinagoga observavam se Jesus curaria um homem de mão atrofiada no dia de sábado, o Mestre de Nazaré fez questão de escandalizar. Derrubou as camadas sociais da sinagoga, que impunham ao doente a exclusão, chamando aquele pobre coitado para o meio da assembleia. “Vem para o meio”, disse Jesus. Fazendo assim, eliminou o “sistema de castas religiosas”, que demarcava o lugar social de cada pessoa e iludia as autoridades religiosas quanto ao lugar que ocupavam. Na verdade, também eles eram uns pobres coitados oprimidos por Roma, repetindo o modelo opressor. Nenhum filactério ou franja, ornamentos que distinguiam os mais dedicados à Torá, eram suficientes para preservá-los da força dos poderosos. Iludidos com seus penduricalhos, os fariseus se enganavam e se esqueciam por instantes da força opressora do império. Esses distintivos sociais existem não é de hoje, mas confesso que fiquei estarrecida com o poder de um copo. Em meio à pandemia e miséria tão galopante, parece no mínimo inusitado que um objeto do uso cotidiano seja algo tão importante.

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