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261. Em memória

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24.01.2022 | 4 minutos de leitura
Solange Maria do Carmo
Crônicas
261. Em memória
“Fazei isso em minha memória” (Lc 22,19)

“As coisas tangíveis tornam-se insensíveis à palma da mão.
Mas as coisas findas, muito mais que lindas, essas ficarão.”
(Carlos Drumond de Andrade)

Elemento essencial na fé cristã, a memória tem seu poder transformador. A eucaristia, por exemplo, celebra a memória da vida, paixão e morte de Jesus de Nazaré, o Cristo, o que chamamos de mistério pascal. Mas não é somente a eucaristia que é memória desse mistério. Todos os sacramentos da Igreja fazem memória da ação salvífica de Cristo, e todos os evangelhos são relatos catequéticos com a intenção de manter viva a memória de Jesus, comunicando às novas gerações o seu estilo de vida e a sua mensagem. 
A memória, qual pérola preciosa, tem valor incomensurável. Ela é o espaço entre o passado e o presente, e o elemento necessário para alimentar a esperança no futuro. Um povo sem memória caduca e põe a perder a sua história. Também sem ela perdemos a capacidade de sonhar e de projetar o futuro sobre bases sólidas. A amnésia social é uma arma dos poderosos contra o povo, e os perversos não têm escrúpulos de lançar mão desse recurso do apagamento.
Para nós cristãos, no entanto, o esquecimento de nossas origens, do projeto do Reino anunciado por Jesus, compromete toda a vida de fé. Não é à toa, por exemplo, que, nas celebrações eucarísticas, além da memória fundamental do evento Cristo, fazemos memória também de nossos antepassados, aqueles que nos precederam na fé, sejam os mártires e santos que a tradição da Igreja exalta, sejam nossos entes queridos que já morreram e cuja memória não queremos deixar fenecer. Nesses rituais religiosos, solidificamos os elos entre o passado e o presente, para esperar um futuro mais promissor.
Nesse final de ano, quando reunimos nossos familiares para celebrar o nascimento do Menino Deus, descobri-me afeita a gostos, cores, gestos, cheiros e rituais, símbolos grávidos de memória afetiva: o cheiro do doce de figo fervendo no tacho; a linguiça defumando na fumaça do fogão à lenha; o fogo do fogão à lenha trepidando e aquecendo a casa; o pudim preparado com a receita familiar que atravessa as gerações; o presépio antigo cujas imagens já pedem restauração; o gesto de presentear os irmãos e os sobrinhos; o vozerio dos familiares em frenesi... Tudo se mostra repleto de significados por causa do álbum das lembranças que permanece intacto apesar da traça do tempo. Um fio invisível nos costura a pessoas e eventos, e nossa vida sem essa tessitura se desmancharia como bolha de sabão. 
Na minha família, fazemos muita questão de manter algumas tradições, recordando que quem somos é resultado daqueles que nos precederam, nos transmitiram sua sabedoria e nos amaram, mesmo com todas as suas quebraduras e vagas. Eu, particularmente, acho fundamental esse vínculo invisível que me faz ver de onde vim e que me ajuda a saber para onde devo ir. Sem isso, eu me sentiria perdida num labirinto sem o fio de Ariadne a apontar a saída. Quantas vezes, diante de momentos decisivos, essa memória me iluminou e me mostrou o caminho a seguir.
Lamento profundamente que a sociedade do tempo presente esteja experimentando o apagamento da memória; memórias culturais, religiosas e sociais. No Natal, por exemplo, as crianças nem sequer sabem que memória celebramos. O mistério da encarnação cedeu espaço para o apelo comercial, e o bom velhinho usurpou o lugar do menino Deus. Como se não bastasse essa trágica troca de personagens natalinos, a memória brasileira e familiar vai se apagando por causa da sobreposição da cultura americana e seu modo consumista de celebrar todos os eventos. O que vemos são pinheiros cheios de neve, um velho consumista vestido de vermelho com seu saco de presentes sobre trenós puxados por renas, cartões de natal com fotos de famílias perfeitas ao modelo ilusório do sonho americano, e ainda duendes, bonecos de neve e muito mais. Um assassinato da cultura de nossa gente, de nosso jeito de viver e celebrar, de nossa memória como povo. Triste realidade de amnésia social, que abre espaço para um colonialismo cada vez mais ingente e uma subalternização que parece não ter mais volta.
Daí a importância do resgate de nossos ritos, de nossa arte, nossa música, nosso acervo cultural... Não é uma questão de frescura e mi-mi-mi como dizem alguns. É uma questão de sobrevivência, de preservação da identidade. Sem isso, estamos condenados a perecer sob o jugo do opressor. A fé cristã ensina: é preciso fazer memória; trata-se de uma resistência identitária. 

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