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183. Um só povo, um só coração

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28.11.2024 | 6 minutos de leitura
Aíla Luzia Pinheiro de Andrade
Diversos
183. Um só povo, um só coração
O significado da palavra “povo” evoluiu ao longo do tempo, refletindo as estruturas políticas, sociais e religiosas de cada época, dando origem a diferentes concepções da mesma palavra.
Para os antigos gregos, havia dois termos para dizer o conceito “povo”:
Laós (λαός) se referia ao povo ou população como um todo, incluindo todos os cidadãos, bem como não cidadãos, como escravos e estrangeiros e mulheres. Era um termo mais geral para o que atualmente chamaríamos de “as massas”.
Demos (δῆμος) era o povo como uma entidade política organizada, ou seja, o corpo de cidadãos de uma cidade-estado (polis), em oposição à aristocracia e à monarquia. O povo (demos) era considerado a fonte de soberania e legitimidade política, mas os escravos, os colonos e as mulheres não eram considerados parte do demos.
Para os antigos gregos, o termo “aristocracia” (aristokratia) significava literalmente “governo dos melhores”, ou seja, “dos mais capazes”. Referia a um sistema de governo onde o poder era detido pela elite social ou nobreza. A admissão à classe aristocrática, no entanto, era baseada mais no mérito pessoal, educação e serviço ao estado, em vez de apenas na hereditariedade. 
A diferença, então, entre o conceito de Demos e de Laós era: O termo Demos descrevia o povo como aqueles que tinham direitos políticos e uma voz no governo, particularmente em Atenas, onde a democracia se desenvolveu e o termo Laós era mais amplo, de forma que abrangia toda a população.
Na Roma antiga, o termo “povo” (populus) se referia a todos os cidadãos romanos, organizados em assembleias que participavam nas decisões políticas. No entanto, o poder estava em grande parte concentrado nas mãos da aristocracia senatorial.
Populus se referia a todos os cidadãos romanos, incluindo tanto os patrícios (classe aristocrática: status por hereditariedade) quanto a plebe (pessoas comuns). A plebe (singular: plebeu) se referia especificamente às pessoas das classes mais baixas na sociedade romana, que não tinha todos os direitos políticos e status da elite aristocrática patrícia. Com o tempo, a plebe lutou e ganhou mais poder político e representação por meio de instituições como os tribunos dos plebe. 
No Império Romano Cristão, a Igreja incentivou a plebe à obediência para com a autoridade estabelecida, ao mesmo tempo que defendeu os direitos dos mais pobres.
Na Bíblia Hebraica, o termo “povo” (עַם, Am) refere-se à comunidade do povo de Israel, escolhida e guiada por Deus. O povo é visto como uma entidade coletiva, ligada por uma aliança com Deus e por uma identidade comum. Transmitia um senso de parentesco, aliança e relacionamento especial entre os israelitas consigo mesmo e com seu Deus.
Goy (גוֹי) ou o plural goym (גּוֹיִם), os gentios, era o termo usado para se referir a outras nações ou povos além de Israel. Ele carregava uma conotação mais geral, neutra, no início.
Os israelitas se viam como o povo especial de Deus (Am) em contraste com as outras nações ou “gentios” (goym), que não tinham o mesmo relacionamento de aliança com o Deus de Israel.
Frequentemente havia um senso de separação, distinção e até mesmo de superioridade que os israelitas sentiam em relação aos goym
Jesus e Paulo se opuseram a ênfase de mostrar essa distinção entre o povo (Am) e os gentios (goym). Portanto, o cristianismo resgatou a neutralidade na conotação de goym. Jesus e Paulo retomam alguns profetas que falaram de um tempo futuro quando os goym viriam a reconhecer o Deus de Israel e se juntariam aos Am na adoração ao único Deus verdadeiro.
Quando Jesus instrui seus seguidores a orar chamando Deus de “Pai Nosso”, o uso de “nosso” reforça a ideia de uma comunidade de irmãos que estão unidos por seu relacionamento com Deus. Isto retoma o sentido do termo “povo” (עַם, Am) com a conotação de parentesco, como pessoas vinculadas por ancestralidade, história e tradições religiosas/culturais compartilhadas.
Ao usar o “nosso” em vez de o “meu” ou o “seu”, Jesus enfatiza que o relacionamento com Deus Pai é uma experiência compartilhada, não individual. Isso reflete a natureza comunitária do Reino de Deus que Jesus está proclamando. Nosso é o Pai, o pão; nossas são as dívidas (ofensas) e as tentações. A Oração do Senhor como um todo apresenta uma visão do povo de Deus como uma família unida, com uma identidade e propósito compartilhados. A nossa dependência do Pai Celestial é também compartilhada.
Paulo escreve: “Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher, pois todos vocês são um em Cristo Jesus” (Gl 3,28). Em Cristo, todas as divisões e distinções que normalmente separam e estratificam a humanidade – étnica, social, de gênero – são superadas.
Seja judeu ou gentio, escravo ou livre, homem ou mulher – somos todos filhos igualmente amados do Pai Celestial. A graça de Deus em Cristo transcende as barreiras que tantas vezes dividem os seres humanos.
Esta é uma verdade profunda e desafiadora. Nossa tendência humana natural é criar mentalidades de “nós contra eles”, priorizar nosso próprio grupo em detrimento dos outros. Mas o evangelho nos chama para um modo de vida mais elevado. Em Cristo, encontramos nossa verdadeira identidade, não em nossas categorias e classificações terrenas.
Em Efésios 2,14 está escrito: “Cristo é a nossa paz, de dois (polos, extremos) fez um só, derrubando na sua carne o muro de separação, a inimizade”. O versículo fala da obra unificadora e reconciliadora de Jesus Cristo. Cristo trouxe paz onde antes havia divisão e hostilidade. Uniu os Am Israel e os goym, o laós e o demos, o populus e a plebe, todas essas polarizações, esses grupos que se viam com suspeita, preconceito e até mesmo hostilidade declarada. Havia um “muro de separação” que os impedia de ver a verdadeira unidade e comunhão. Em Cristo, o profundo abismo entre os polos foi transposto – eles agora são um povo, uma família, reconciliados com Deus e uns com os outros através do sumo pontífice (a ponte por excelência). Cristo trouxe – não apenas a paz entre a humanidade e Deus, mas a paz entre grupos de pessoas distantes e hostis.

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