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175. Uma outra missa

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05.06.2024 | 6 minutos de leitura
Giorgio Romano
Diversos
175. Uma outra missa
Os anos passam, a cultura sofre alterações, a teologia se desenvolve e, no entanto, nada disso parece afetar a celebração da Eucaristia, que está se tornando cada vez mais um rito incapaz de realizar uma experiência de fé do povo cristão. A missa se tornou uma cerimônia fría, gélida.  Mesmo para as pessoas mais velhas, ela se tornou anacrônica, enfadonha. É, também para os menores, ininteligível .

Boa parte do clero é indiferente a esse problema.  É a mesma coisa de sempre. Não estou falando de padres antiquados. Estou falando de padres comuns. Os próprios padres estão achando difícil celebrar o Mistério Pascal, mas eles continuam a rezar a missa, ainda que cientes dessas dificuldades.

É necessária uma revolução litúrgica, sob o risco de o povo católico perder o sacramento que recria a Igreja. Se isso continuar, perderemos a Igreja. Ela se tornará uma mega seita de pessoas iniciadas em um credo esotérico, cujas orações não são compreendidas, as leituras do Antigo Testamento são aterrorizantes e os padres comentam os Evangelhos como se não fossem realmente boas notícias para eles!

Proponho uma missa "de cabeça para baixo". Ao contrário do modo que tem sido celebrada e predominada por toda parte,  impessoal, estática e mecânica.

Acredito que, mais do que nunca, é necessário ser fiel às  principais diretrizes do Concílio Vaticano II, a saber: interação na Eucaristia entre os batizados, a serviço daqueles a quem o presbítero é devedor (Lumen gentium), centralidade da Palavra de Deus que dá vida (Dei Verbum), abertura pastoral para o mundo e para a vida das pessoas (Gaudium et spes) e protagonismo  de todo o povo celebrante (Sacrosanctum Concilium).

Uma revolução litúrgica exige outra maneira de presidir a adoração. Os sacerdotes, na liturgia, devem ajudar os cristãos a reviver, com fervor, uma tradição de dois mil anos de testemunho vivo, aquilo que Senhor Ressuscitado tem feito de geração em geração. Se a liturgia não for um lugar onde haja a possibilidade de as pessoas testemunharem entre si como o amor de Deus mudou suas vidas, ela deve ser considerada inútil; pode até ser válida de acordo com as rubricas do Missal Romano, mas é inválida e é um obstáculo à fé.

A razão de ser do ministério ordenado, de acordo com a tradição mais autêntica da Igreja, é a atualização do mistério pascal no presente. A Eucaristia é um memorial. Ela deve vitalizar o Cristo palpável, audível e visível no mundo contemporâneo e, em particular, nas pessoas reais, tais como elas são.

Assim, toda Eucaristia pode e deve ser um ato completamente original. Ela nunca deve ser repetida. Por que as orações da coleta, do ofertório e da comunhão deveriam ser as mesmas em Moçambique, São Domingos, Munique, Bujumbura, Bruxelas ou na Antártida? Se tiverem de ser as mesmas, poderiam pelo menos ser elevadas ao Pai em um idioma inculturado. Todo cristão é único. A celebração eucarística deve ajudar a perceber o que o Criador pretendia quando a criou. Se o rito não transmite a ação criativa do Espírito Santo, ele a mata.

Quantos minutos deve durar uma missa? O sacerdote deve ser suficientemente flexível com os tempos. A flexibilidade e a capacidade de improvisação do celebrante são muito importantes. E se a missa estiver ficando mais longa?  Encurtem-se os hinos, reduzem-se as leituras, saltem-se o Glória ou o Credo. O que não pode faltar é a possibilidade de louvar o Senhor, de orar a Ele, de experimentar seu amor e perdão e, é claro, a leitura da Palavra e a comunhão com seu corpo e seu  sangue.

A Eucaristia é a celebração de uma assembleia sem um sacerdote? Com certeza! Em muitos lugares, as freiras, por exemplo, criaram comunidades e, aos domingos, elas mesmas proclamam o Evangelho. Elas não estão preocupadas em ser indispensáveis. Sua vida é um serviço. Elas entendem, como Paulo VI diria ao final do Concílio, que a Igreja é a serva da humanidade. Elas estão atentas ao que as pessoas vivem. Preocupam-se com suas necessidades. Ajudam as crianças com a lição de casa, coletam  roupas para os mais pobres, criam cestas básicas para famílias famintas, levam os idosos ao médico, fazem passeatas contra empresas poluidoras, defendem os migrantes e acompanham mulheres vítimas de tráfico. Isso lhes dá autoridade; elas não têm outra investidura a não ser a de viver o Evangelho.

Por outro lado, a ignorância dos padres sobre o que acontece com os outros celebrantes durante a missa torna seus conselhos irrelevantes. Seus ensinamentos pouco importam. Muito menos sua auto-sacralização. O clericalismo, a separação assimétrica que é estabelecida entre eles e o Povo de Deus, a bajulação dos fiéis e a autobajulação, tudo isso estupefaz, infantiliza e desvia daquilo que é essencial.

A comprovação decisiva de uma missa bem celebrada será sempre a participação de pessoas empobrecidas e pecadoras. Se elas ocuparem os bancos mais atrás, essa celebração nada terá a ver com o Evangelho. Essas pessoas, que são as últimas, devem ser as primeiras. "Façam isso em memória de mim", disse Jesus. Hoje Ele diria: "Pratiquem minha misericórdia".

Os celebrantes sabem os nomes das pessoas que participam das missas?  Eles deveriam procurar conhecê-los. O sacerdote os conhece? Se ele não estiver interessado em aprender seus nomes, seria melhor "pendurar a batina". Se, na missa, as pessoas não lhes interessa, em quê ele estaria interessado? Seria melhor, então, para as pessoas ir a lugares onde são levadas em consideração. Não devem perder tempo em igrejas e capelas nas quais elas não serão nada além de espectadores e números que aumentam ou diminuem.

Não se trata de missas divertidas. Seria desagradável para as pessoas que perderam um filho ou um pai, ou pessoas que carregam outras tristezas. Mas isso, por si só, deve ser considerado essencial. O companheirismo no sofrimento e as alegrias divididas, como um pão partilhado por todos, serão a melhor prova da presença real do Senhor em sua Igreja.

A missa, nesses termos, pode cumprir sua função missionária. Para isso, faltaria uma condição, qual seja, que todos pudessem comungar ali, justos e pecadores, assim como Jesus gostava que fosse feito nas refeições para as quais era convidado. Os fariseus, que se achavam bons e desprezavam os demais, comiam apenas entre si. Jesus, por outro lado, foi criticado por comer com "cobradores de impostos e pecadores" (Mc 2,5). 

 A missa "de cabeça para baixo" é a Eucaristia na qual a primeira e a última palavra são pronunciadas pelo Espírito Santo, porque criando a comunhão regenera a originalidade espiritual das pessoas e das comunidades.