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180. Um aprendizado

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26.09.2024 | 7 minutos de leitura
Pe. Eduardo César Rodrigues Calil
Diversos
180. Um aprendizado
Disseram-me: você soube cair. 

De fato, e foi na Rua Direita, quando meu pé esquerdo tocou aquela pedra solta. Era uma rua linda, uma subida feita toda de pedras, mas a queda foi feia. 

A cidade abraçada pelo frio, eu abraçado pelo frio, esquentando passo a passo, como quem reaquece os músculos; andava abismado. Abismado, sim, pois as coisas belas abrem abismos para dentro, cavam grandes vales, profundos, onde o silêncio da beleza ecoa. Eu olhava a serra, olhava a subida, nesgo de beleza e o silêncio assobiava dentro de mim. Era frio fora, mas algum afago, terno e quente, residia dentro. 

Sinto afagos diante dos abismos, das serras, das ruas de pedra, escovadas pela chuva e pelas pegadas. Sinto afagos nos pores-do-sol, na garoa fina, em meio à neblina-véu, encobrindo as vistas. Rochas altas, cavernas escuras, matas fechadas, florestas densas, trilhas íngremes, rios e cachoeiras: a natureza me afaga. A natureza não nos julga (0). 

Foi quando, distraidamente, saindo de uma das lojinhas de artesanato e descendo para a rua de pedras, desde um lancil mais alto, pisei naquela pedra solta. A pedra rodou levando consigo meu pé, meu corpo, todo eu, ao chão; corpo inerte. E, recobrando, num átimo de tempo, a razão, a consciência, veio com ela a decepção, ao olhar meu pé já inchado, torcido. Mas eu soube cair: caí com disposição, inteiro, sem reservas, caí sem tentar evitar a queda, pois podia ser pior. Caí como quem se entrega, como quem se lança no abismo. Não retaliei contra a pedra, não maldisse os encantos da rua; eu era o silêncio e meu pé. Minha alma estava toda no calcanhar. 

Uma rua linda, um tombo feio, um pé horrendo, três meses ou mais de bota ortopédica. Mais alguns meses aprendendo a levantar, a andar, numa reabilitação. Mas se sei levantar tão bem quanto cair? Acho que não. Eu sei cair muito bem. 

E já que há tantos senhores ensinando a levantar, a subir, a galgar degraus acima, a evitar quedas, quero atestar: é preciso aprender a queda. 

Deixar cair primeiro os ideais e toda ilusão. Essa queda dolorida envergonha como um tombo. Deixar que se quebrem esses cansaços de nunca alcançar o que nossa mente nos dita, ou nos pede; essas exigências tirânicas pedindo o que nunca fomos, o que nunca seremos. O que nos dizem para ser, o que desenham com seus olhares de reprovação, o que dizem querer de nós, mesmo que jamais digam - é preciso deixar cair... Deixar cair o antecansaço de precisar imaginar que querem algo de nós, que esperam tudo de nós, e que sem nós a máquina não funciona, a roda não gira. Pois ela gira e um dia há de girar sobre todos que a tentarem mover com seus esforços, esmagando e triturando seus sonhos; os corpos pendidos na roda, jazerão lá para sempre. A história não segue nossas ideias de justiça. É que justiça não é o direito, mas o real. E o real nos assalta. A justiça é como a relação sexual; não existe. E como nós dependemos das coisas que não existem. 

Deixar cair as expectativas. Ninguém é nosso nem nunca será. Ninguém estará lá para atender nossas demandas todas, mesmo as mais lindas. Nenhum amor nos dará o infinito; então, deixaremos de amar? Reza a oração: “você é você, eu sou eu, e se por acaso nos encontramos, será lindo. Senão, não há nada a fazer” (1). Mas não é com a razão que produzimos essa separação inelutável: é com a queda. Até chegarmos lá, estamos sempre investindo em equivalências, espelhamentos e rivalidades. 

Nós não gozamos igual, mesmo se partilharmos nossos corpos. Não fantasiamos igual, mesmo se partilharmos ideias. Não amamos igual, mesmo se fizermos as mesmas juras. Não pensamos igual, mesmo se usarmos a mesma língua. Não equivalemos, ainda que queiramos. Por isso outra oração, mais poética, dirá: “Simplesmente eu sou eu. E você é você. É vasto, vai durar. (...) Olha para mim e me ama. Não: tu olhas para ti e te amas. É o que está certo” (2).

Amar é cair. Cair de todo ideal. Amar é cair do texto, é cair no abismo, é cair a queda mais dolorosa, pois o que se espera do amor é que ele nos dê, mas ao invés disso, ele nos pede. Ouvimos sua carruagem de ouro vir em nossa direção, ouvimos a cavalgadura real, como mendigos, caídos à beira da rua, talvez uma de pedras. E o amor-rei pede que parem a carruagem, abre as portas douradas e, saindo das entranhas de sua realeza, nos vê caídos. Estendendo a mão, pensamos: finalmente vamos receber algo. Mas o que ele nos pergunta com sua voz firme é: o que tens para me dar? (3). É que amar é finalmente a pobreza. “Amor é não ter. Inclusive amor é a desilusão do que se pensava que era amor. E não é prêmio, por isso não envaidece…” (4). 

Cair do lugar da busca dos culpados. Não há culpados e, por isso, todos são culpados e todos são inocentes, ao mesmo tempo. Onde há culpa e vergonha, elas nunca estão lá, simplesmente, porque fazemos o que fazemos, mas são sempre algo mais íntimo, tão íntimo quanto nossos abismos. Há sempre uma culpa de não sermos nós mesmos, sempre uma culpa de não coincidirmos conosco, de não sermos coerentes nem encaixados em nós. De não sermos tudo. Não somos senhores em nossa casa. Todo discurso sobre a coerência deve ser culpado; e toda nossa incoerência desculpada para sempre, pois não somos senhores da razão, pois jamais alcançamos toda a verdade. Se a incoerência não for a mãe da injustiça, então ela será nossa parceira. Se ela não for produtora de violência contra o outro, então será apenas nossa realidade feita de tantos eus, de tantos traços, de tantas amálgamas que não nos pertencem, mas nos definem. Somos isso. Isso. Isso sobre o que não se governa. 

Cair no uso corriqueiro da linguagem. Falamos, mas “Isso fala em nós” (5). Há dito e há dizer para além do dito. Há o que falamos coordenando a sintaxe, fazendo copular sujeito e predicado, mas salta para dentro do dizer coordenado o que tudo descoordena e reorienta. Nós somos o que cai quando escolhemos a teia de nossas palavras. Nós somos o que tropeça quando falamos. Isso que relançamos e que faz cair de novo e de novo o que nos constitui. 

E cair, porque no meio do caminho há uma pedra. “Tinha uma pedra no meio do caminho. Tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra. Nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas. Nunca me esquecerei que no meio do caminho tinha uma pedra. Tinha uma pedra no meio do caminho. No meio do caminho tinha uma pedra” (6). Repetir, pois há pedra. E aprender sobre a pedra o que jamais a pedra dirá por inteiro. Apreender da pedra o que ela ensina sobre nós, para repetir melhor, para repetir diferente. Para repetir no caminho a pedra, desde outros lugares… 

O que há depois de cair? Há que se levantar. Ousar o movimento, mesmo manco. Não é pecado mancar (7). Reabilitar o movimento, aos poucos, devagar… também o pássaro que não cair no abismo, jamais voará. 

Na verdade, e por fim, há um risco em cair: permanecer lá, conaturalizado à pedra, petrificado, para sempre reduzido ao que caiu, condensado para sempre em um nada, eclipsado para sempre, inapetente para desejar, imovível. Pior do que cair é ser pedra.

Finalmente me levantei. O que não alcançar voando, vou perseguir mancando (8). 

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REFERÊNCIAS (ou como me leem minhas leituras). 

(0). Algo assim dizia Nietzsche 
(1). Fritz Perls, pai da GestaltTerapia 
(2). Clarice Lispector
(3). Lenda reproduzida, de livre memória, a partir de um dos poemas de Rabindranath Tagore, poeta hindu.
(4). De novo, Clarice Lispector 
(5). Lacan (“Ça parle”)
(6). Carlos Drummond de Andrade
(7). (8). Freud: “O que não podemos alcançar voando, precisamos alcançar mancando” e “A Escritura diz: mancar não é pecado”.

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