171. Pó e luz: da apoteose às cinzas


“Vós sois a luz do mundo” (Mt 5,14)
“Tu és luz e luz te tornarás!
Nós somos poeira na luz
e não podemos esquecer nem que somos pó,
nem que somos luz...
Somos poeira que dança na luz..."
(Jean-Yves Leloup)
Mais uma vez é Quarta-feira de cinzas e somos chamados a voltar o coração para Deus, fazer uma viagem para nosso interior e procurar descobrir o que ainda nos impede de ser pessoas melhores. A Quaresma é tempo litúrgico oportuno para nos humanizar, para nos transformar em pessoas melhores e mais integradas. Para fazer esse caminho quaresmal, nos ilumina as palavras do profeta Joel: “Rasgai o coração e não as vestes” (Jl 2,13). Nossa transformação precisa acontecer desde dentro, nas profundezas do nosso ser. É nosso coração que precisa ser transformado e curado, por isso, com o salmista, podemos cantar: “Senhor, criai em mim um coração que seja puro” (Sl 51,12).
O dia de hoje nos lembra que viemos do pó e ao pó voltaremos. Mas, para além da reflexão sobre a vulnerabilidade humana, ele precisa nos recordar algo que, entre nossa vinda do pó e nossa volta ao pó, somos chamados a ser luz. Ainda que nossa condição humana seja frágil – e ela o é – ainda que sejamos pó, nós possuímos algo de muito precioso: somos luz! O convite à conversão que a quaresma nos faz deve ser entendido a partir dessa perspectiva. É este o convite que Jesus nos faz hoje: viver uma conversão das trevas para luz.
Somos pó e luz! De modo poético escreveu o psicólogo e teólogo Jean-Yves Leloup: "Tu és pó e ao pó voltarás. Esta é apenas uma parte da verdade. Porque é também verdade quando dizemos: Tu és luz e luz te tornarás! Nós somos poeira na luz e não podemos esquecer nem que somos pó, nem que somos luz... Somos poeira que dança na luz...". Somos poeira que reluz!
Não é de hoje que o brilho nos encanta. As estrelas, o sol, sempre foram símbolos de encantamento, sempre despertaram paixão e poesia nos povos, ao ponto de o Sol ser entendido como deus. O brilho é fascinante. A luz éatrai.
Nos dias do carnaval, muitas pessoas se fantasiaram com vestes cheias de gliter ou pintaram o corpo com purpurina, pós que brilham. Eles – gliter e purpurina – servem de metáfora para falar da condição humana; mostram que podemos ser luz pó e ter irradiar luz, ao mesmo tempo. E mais: parece que é exatamente na hora que assumimos nossa miséria mais profunda, na hora que não negamos nossa humanidade nem escondemos nossas fragilidades, que a luz de Deus perpassa nossas frestas e se reflete. Nossa condição de pós revela o divino que habita em nós. Na assumência de nossa fragilização, há uma glória, uma apoteose.
Apoteose é uma palavra não muito usual em nosso cotidiano, mas que significa glorificação, exaltação máxima que se pode dar a algo ou alguém. Não é à toa que a praça onde se encerram os desfiles do carnaval do Rio de Janeiro leva esse nome: Praça da Apoteose. Na apoteose, o desfile das escolas de samba chega ao fim – o delírio, os aplausos, a glória... Mas qual seria a apoteose do cristão? No desfile da vida, onde queremos chegar? No Evangelho de João, a apoteose de Jesus é exatamente sua crucifixão, sua morte, seu aniquilamento. Quando aniquilado, quando a sua humanidade fica mais visível e patente, Jesus atinge sua glorificação. Não seria o mesmo conosco? Nas nossas misérias mais profundas, Deus mostra sua luz. Daí a importância da conversão.
Certamente, no desfile da existência, desejamos viver iluminados pela Palavra de Jesus, queremos viver um processo de conversão, permitindo que Cristo nos molde, nos refaça, “até que ele se forme em nós” (Gl 4,19). Deixando-o agir com sua luz, poderemos iluminar outras pessoas também. O encontro com Cristo enche de sentido a nossa existência. Nossa vida acontece entre a apoteose e as cinzas, ou entre as cinzas e a apoteose. Caminhamos na tensão entre os aplausos e as vaias, a glória e as quedas, o pó e a luz. É dessa mistura que somos feitos. Que não nos falte coragem para fazer esse trajeto.