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134. A terceira margem: travessia da covardia à fé

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09.05.2017 | 6 minutos de leitura
Gustavo Ribeiro
Crônicas
134. A terceira margem: travessia da covardia à fé

“Atravessemos para a outra margem” (Mc 4,35)



“... proa da palavra,

duro silêncio, nosso pai...

margem da palavra,

entre as escuras duas;

margens da palavra,

clareira, luz madura...”

(Terceira margem do rio,

Milton Nascimento e Caetano Veloso)



Jesus convida seus discípulos para atravessar o lago, porque é preciso ir à outra margem; é preciso deixar a multidão, é necessário o descanso, é mais necessário ainda ir aos outros que estão do outro lado. Mas os discípulos, no meio da travessia, se deparam com a surpresa da adversidade intempestiva do mar e dos ventos fortes, embora Jesus esteja a dormir tranquilamente, sobre um travesseiro, na popa do barco, no lugar do timoneiro, aquele que conduz a travessia. Os discípulos, tomados por medo, clamam por ele e o interpelam: “Mestre, não te importa que pereçamos?”. Jesus se levanta e faz calar o vento: “Cala-te, fecha a boca”. Após a ação do Mestre, há calmaria e bonança. E eis que surge a pergunta pela covardia e o porquê de tanta falta de fé dos discípulos. E eles ficam espantados com “este que até o vento e o mar lhe obedecem”.


Este versículo (v. 35) e, também, toda a narrativa da tempestade acalmada recorda um conto do escritor mineiro Guimarães Rosa, A terceira margem do rio. O conto narra a decisão de um pai de família de construir uma “canoa especial, de pau de vinhático, pequena, mal com a tabuinha da popa, como para caber justo o remador” e com ela, e mais ninguém, vai viver sozinho no meio do rio que passava logo abaixo de sua casa.


O tal homem “não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia. Os parentes, vizinhos e conhecidos nossos, se reuniram, tomaram juntamente conselho”.


A vida segue e o homem continua vivendo na “terceira margem”, porque foi ali que ele encontrou o sossego da existência. Após anos de lida e de preocupações, ele alcançou o estado puro de encontro consigo, ocupando um não-lugar geográfico, habitando, porém, a existência em si mesmo, onde ele devia “morar”, em sua própria vida. O abandono pode parecer cruel e até egoísta, mas a metáfora utilizada por Guimarães Rosa ao colocar aquele homem dentro da solitária canoa nos lembra que cada um de nós anseia por sentido em sua existência. Todos nós ansiamos por consolo e por nos afastar da vida enfadonha e medíocre de apenas nascer, trabalhar e morrer, porque viver é mais que isso; viver é perguntar por sentido e buscá-lo, para chegar à felicidade, à plenitude, à transcendência.


E não é esta a proposta do projeto de Jesus? Dar sentido à vida humana?Fazer com que cada ser humano seja feliz? Fazer a vida chegar à plenitude? Podemos afirmar que Jesus é nossa “terceira margem”, não como fuga da realidade, mas como encontro de pleno sentido da vida e da existência.


Buscar a “outra margem” não quer dizer apenas a mudança de um lugar geográfico e sim procurar por um não-lugar, um estado de vida que tenha sentido em meio ao sem-sentido do emaranhado que é a realidade que nos circunda.


Fazer a travessia custa. Ventos fortes virão com certeza açoitar o barco da existência, a ponto de nos fazer acreditar que ele afundará, mas a força da fé é aquela que nos leva a confiar no Mestre que está conosco no barco. Ele é nosso companheiro existencial, porque se fizemos, de fato, uma experiência com ele,nossa existência está comprometida até a raiz com a sua mensagem e o seu projeto. É ele quem acalma a tempestade. E nos interroga sempre por nossa covardia e nossa falta de fé.


É bom que nos deixemos interrogar pelo Mestre acerca de nossos medos e temores. Estamos já muito acostumados a viver na superfície da vida, na superfície de nossa fé, relegando-a a um mero movimento sensorial, um sentimentalismo. Vivemos certa passividade que chega a ser hipócrita, quando, na verdade, o convite é que mergulhemos fundo, abandonando-nos confiadamente na ação providente de Deus. A terceira margem é uma experiência bem mais profunda, bem mais “longe” de onde estamos, porque se dá no interior, no mergulho dentro de nós. Os discípulos de Jesus, até aquele momento, pareciam não ter entendido esta dinâmica e,por isso, não foram enfrentaram o medo e se mantiveram paralisados.


Precisamos compreender que a coragem não é a ausência do medo, mas, sim, a confiança de que, quando temos Jesus como nosso auxílio e salvação,nunca estamos sozinhos. Na presença dele, o medo não tem a última palavra, porque Deus não permite que nos afundemos no lamaçal de uma existência fútil. Afinal, “a glória de Deus é o homem vivo, e a vida do homem é a visão de Deus” (santo Irineu de Lião). Jesus é nossa “terceira margem”; ele confere sentido à nossa vida e seu evangelho é força para enfrentar o “mal tempo”. Por mais que balance o barco e o ameace a virar, ele permanecerá firme em meio às ondas.


A confiança em Jesus não é um fideísmo, uma crença alienada e passiva; é uma fé lúcida que olha para a vida, fazendo relendo-a a partir do Vivente que caminha conosco, inclusive nas tempestades e intempéries que se nos apresentam ocasionalmente. A fé é uma resposta à proposta do seguimento de Jesus. Quando abraçada,torna-se porto seguro, a “outra margem” da existência. Um novo modo de viver se origina da experiência fundante da Páscoa da Ressurreição, sinalizando que ele venceu a morte e, agora, vive entre nós como companheiro.


Podemos até afirmar com Guimarães Rosa, em “Grande Sertão: Veredas”, “viver é perigoso”, mas confiamos em Jesus, porque Ele nos diz: “Não temas; somente crê” (Mc 5,36).





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