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149. A PORTA, EU SOU (Jo 10,9)

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01.05.2023 | 6 minutos de leitura
Pe. Eduardo César Rodrigues Calil
Diversos
149. A PORTA, EU SOU (Jo 10,9)
À porta...do texto 
O entorno do texto deste Quarto Domingo da Páscoa é muito importante. Desde muito, ele ficou reconhecido como Domingo do Bom (e Belo) Pastor, que é Jesus! Neste ano litúrgico, leremos o início desse texto (Jo 10,1-10). E esse relato começa logo depois de Jesus ter aberto os olhos ao cego de nascença (evangelho do 4º. Domingo da Quaresma). Jesus não só curou o cego, como o conduziu, como verdadeiro pastor e guia, para fora de uma religião carcomida pelo legalismo e maníaca pela pureza ritual. Acusou os fariseus de cegos, justamente eles que se consideravam guias e luz daqueles que se encontravam nas trevas (Rm 2,19). Apontou, inclusive, que a maior cegueira, a que os atolava mesmo no pecado, era crer mas não ser capaz de enxergar (Jo 9,41). São guias cegos... E guias cegos, com presunção de apresentar o caminho, provocam a ruína de quem os segue (Mt 15,14). Então, Jesus se apresenta como o verdadeiro pastor, não só de Israel, mas de toda a humanidade. Os presunçosos pastores são não apenas cegos, mas também surdos, pois não escutam a voz de Jesus; são como ladrões, entrando por outros lugares que não pela porta.

Pastores...
A imagem do pastor é muito usual na Escritura. É uma imagem do cuidado, mas também serve para falar das lideranças do povo e sobre o exercício de guiar as ovelhas. O primeiro e mais importante pastor de Israel é Deus mesmo (Sl 79[80],2). Ele guiou seu povo no deserto, como um pastor guia as ovelhas (Sl 77, 78 e 80). Mas a imagem serve para falar, em segundo lugar, sobre os líderes do povo, sejam os reis, sejam os sacerdotes ou qualquer outra liderança religiosa. Mas esses líderes foram infiéis. Não pastorearam a ninguém, a não ser a si mesmos e ao próprio estômago. Engordaram as ovelhas e as tosquiaram para vestirem-se de lã e se alimentarem de leite (Ez 34,3). Não curaram a doente, não trataram a fraturada, não reconduziram a desgarrada, não buscaram a perdida, mas dominaram-nas com dureza e violência (Ez 34,4). São maus pastores. E Deus, contra esses maus pastores, promete-se a si mesmo como único e excelente pastor. Dá-se como bom e belo pastor, dando-nos seu Filho. Aquele que é bom e belo, porque dá a vida por suas ovelhas (Jo 10,11). Jesus é o pastor por excelência.
Essa imagem do Pastor, em João, é diferente da imagem que Lucas trabalha e que ficou amplamente guardada no nosso imaginário; a do pastor que traz a ovelha perdida no ombro (Lc 15,1-7). Para João, o pastor não faz a ovelha ficar dependente, mas lhe aponta caminhos; conhece suas ovelhas e se deixa conhecer por elas; é seguido justamente porque elas o conhecem. Elas o seguem, livremente, escutando a sua voz. 

Amém, amém...
O início do texto deste domingo é, pois, a consequência da cura do cego de nascença. Jesus começa dizendo aos fariseus, responsáveis pela cegueira do povo: amém, amém. Toda vez que aparece essa introdução, traduzida por “em verdade, em verdade vos digo”, o que sucede é importantíssimo. Essa verdade não deve ser compreendida como uma verdade lógico-formal. Como aquilo que é verdadeiro formalmente. Para o autor, verdade é aquilo que se mostra verdadeiro, depois de tudo. É o que permanece de pé, depois de toda ruína e que, por isso mesmo, indica algo de fundante e fundamental. Isso é o que significa amém, de fato. Tem a ver, pois, com a fidelidade à aliança, compreendida como aquele resto que resistiu a tudo que passa, a toda tempestade devastadora do mal. Sendo assim, o que Jesus vai dizer sobre ser o Pastor verdadeiro, diz respeito à fidelidade ao Pai. Os pastores, os líderes judaicos, que vieram antes dele se mostraram como aqueles que roubam, matam e destroem (Jo 10,9). É o pastoreio verdadeiro que fica, quando todos os outros não serviram e não servem mais. Mas esse “vieram antes dele” não se refere apenas a um antes cronológico, mas também lógico: quem segue roubando, matando e destruindo, não passou pela porta que é Jesus, não escutou sua voz e vem, por isso, antes de seu pastoreio, como aquilo que não serve mais. 

Ladrões e assaltantes...
Para Jesus, quem não entra pela porta, mas sobe por outra parte, esse é um ladrão e um assaltante (Jo 10,1). A intenção de Jesus é libertar o povo do domínio da religião. Como ele fez com o cego de nascença, quer também chamar suas ovelhas pelo nome e conduzi-las para fora (Jo 10,3). Para fora! Notem que Jesus não quer levar as ovelhas para o redil, mas quer conduzi-las para fora, como o Pai conduziu o povo para fora do Egito, da escravidão maldita da opressão (Ex 3,10). A religião se tornou uma paráfrase do Egito e escraviza em nome do interesse, do dinheiro, gerando cegueira, medo; aprisionando as ovelhas longe da Terra da Liberdade. É preciso escutar a voz que chama para sair da escravidão... 
Para libertar o povo, Jesus é a porta, de saída, aquela pela qual todos devem passar. Quem entra pela porta, esse é o pastor. E Jesus além de a porta, é também o pastor. É a sua voz que devemos escutar, não a dos falsos mestres. 

Uma escuta como acolhida...
Jesus conhece as ovelhas pelo nome. Essas ovelhas têm nome. Não são, portanto, uma massa de manobra, não são seres quaisquer, submetidos a uma moral de rebanho. São como filhos (2Sm 12,3). Essas ovelhas seguem o pastor com confiança, porque escutam sua voz. Há aqui uma lógica de reciprocidade: o pastor chama, a ovelha ouve. O Pastor conhece as ovelhas e as chama pelo nome; as ovelhas conhecem a voz do pastor e o seguem. Essa reciprocidade apoiada no conhecer a voz é expressão de intimidade, de relação baseada na proposta-resposta, de amizade. Ouvir a voz, prestar ouvidos, é o mesmo que obedecer, como aparece no livro de Deuteronômio, por exemplo. Mas aqui, a expressão “escutar” não tem a ver com obedecer como se obedece à voz dos chefes. Aos chefes, se obedece por causa do medo ou por causa da dominação. Os chefes são obedecidos; a Jesus, importa que ele se seja ouvido, escutado e acolhido. Como diria Paul Ricoeur, a escuta é uma das maiores formas de hospitalidade. Fazer essa hospitalidade: a da escuta como acolhida, isso é o que significa ouvir a voz do Pastor ou a voz de Deus, como aparece em outras tantas passagens da Escritura. 
Deus chama Israel pelo nome, dá ao povo um nome que é seu (Is 43,1-11). Aqui, Jesus, conspirando com o Pai, faz o mesmo: chama os seus pelo nome. Aos que o escutam e o acolhem, esses o seguem, por amor; em consequência, “não seguirão a um estranho, mas fugirão dele, porque não conhecem a voz do estranho” (Jo 10,5). A voz do Cristo chega ao coração; a voz dos chefes intimida. O povo está submetido pelo medo, mas Jesus é o Pastor que o povo tanto tempo esperou. 

Eles não compreenderam...
As palavras de Jesus não podiam ser mais claras. Os fariseus ficaram ofendidos? Não. Discordaram de Jesus? Não. Concordaram? Tampouco. O texto diz que eles sequer compreenderam. Ora, depois de Jesus dizer que só suas ovelhas escutam sua voz, o texto está querendo explicitar ainda mais que as autoridades judaicas do tempo de Jesus não escutam a voz dele, não o compreendendo. Não é que eles não tenham compreendido simplesmente o discurso com imagens; eles não compreenderam, na verdade, a voz do Cristo. Estão convictos de que são os legítimos mestres do povo, ou melhor, estão cegos pois não exergam nem a si mesmos. Não conseguem aceitar nenhum êxodo, nenhuma libertação das ovelhas, pois importa (para o próprio sustento) que o povo permaneça sob a dependência deles. As trevas não podem aceitar a luz, porque a luz as ameaça. 
Compreender Jesus é aceitar o fim da própria mestria. Fim do senhorio sobre a mentalidade do povo. Mas esses mesmos mestres só têm arruinado a vida das ovelhas. Jesus diz, por outro lado: a porta, eu sou! (Jo 10,9). Essa porta conduz para as pastagens. Entrar por meio de Jesus é sair para as pastagens onde se pode encontrar a vida. Jesus é o lugar desde onde se pode, realmente, viver. Por isso, entrar e sair; entrar para a vida, sair das amarras da morte. 
Para que tenham vida...
Jesus descreve os pastores com as características dos lobos (Ex 22,27): roubam, matam ou destroem. Jesus é aquele que dá vida e vida em abundância. Não se trata, aqui, simplesmente de uma vida qualquer, ou da vida biológica, que consiste em ter todas as funções físicas funcionando bem. É vida de uma outra ordem, vida em abundância. Vida em sentido profundo, portanto marcada pela alegria, pela força de viver, com coragem. Não é a vida de quem arrasta o próprio cadáver, antes da morte. É vida de quem vive com liberdade. Para isso Jesus veio, para que possamos viver, já, desde que a gente encontre a Porta... Vida não para o amanhã, ou para depois da morte, mas vida que implique a coragem de cruzar a porta deixando para trás, justamente, o que impede de viver... 
A hospitalidade da escuta...
Certamente esse texto poderia ser usado para moralismos pastorais: fazer incidir culpa sobre os pastores de hoje, ou para insistir que o lugar das ovelhas é o lugar da obediência. Ou para dizer que se as ovelhas não escutam o pastor, isso prova por causa-e-efeito que o pastor não tem a mesma voz do Cristo. Poderia ser um jeito de insistir que a pastoral é a solicitude do fazer, e fazer sempre, sem parar. Poderia... Mas não deve. 
O texto aponta, antes, que é possível entrar no caminho da vida. Para tanto, pastores e ovelhas, precisamos reaprender a sensibilidade da escuta. A escuta atenta que apura os ouvidos, uma vez mais, para a Voz. A voz do Cristo. Escutar sua voz, de novo e sempre, é condição para passar pela porta e entrar na vida, que é para já. Acolher essa voz é, de algum modo, descobrir-se Pastor. Porque ovelhas, somos todos. Mas pastores, só se passarmos pela porta que leva à Vida e, se assim, nós nos fizermos uma passagem, portais, para que os outros possam encontrar, também eles, mais vida. Aqui, desde a hospitalidade da escuta, tornamo-nos como que passagens para lugares fecundos, onde as pessoas possam se sentir realmente ajudadas a viver. Para Jesus interessa que isso se torne para nós uma condição de vida, mais que um fazer pastoral, simplesmente. Para ajudar outros a viver, é preciso superar a lógica da cegueira presente ainda hoje em nossas religiões, a lógica da submissão ou da mestria sobre os outros, que impede que eles entrem e saiam por Jesus e encontrem pastagens. Sim, é preciso superar uma religião e um pastoreio de domínio, de exploração (financeira e psicológica) e ajudar que as próprias ovelhas saiam de suas condições mortificantes – é para isso que o texto é duríssimo: para livrar o povo e os próprios pastores da ruína e da cegueira, de uma vida medíocre e aprisionada.  Se a religião não escuta a voz e os pastores permanecem obstinados em não ouvir, eles precisam ser deixados para trás. A imagem da ovelha, por sua vez, não pode ficar restrita à imagem da dependência, da submissão, do irracional. Ovelhas têm nome próprio e a condição de serem conhecidas por Deus. E, desde a escuta, podem ser suficientemente inteligentes para saber a que voz ouvir, podem decidir inclusive deixar o que é falso para ouvir ao verdadeiro Pastor, que é Jesus. Em algum momento, tendo encontrado a vida, poderão ajudar outros a fazerem o mesmo – e já não serão mais simples ovelhas, então.