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142. O poço e a fonte

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18.03.2023 | 9 minutos de leitura
Pe. Eduardo César Rodrigues Calil
Diversos
142. O poço e a fonte
Uma virada.
Nestes três últimos domingos da quaresma refletimos três textos do evangelho de João que são, sem sombra de dúvidas, evangelhos batismais. São evangelhos evidentemente catequéticos, que mostram um itinerário de reconhecimento de Jesus como Cristo, ou ainda: um itinerário de iluminação (photismós: batismo) e de saída das trevas e da morte (morte e ressurreição: mistério que o batismo celebra). Não à toa esses evangelhos também foram recebidos com certa suspeita, como se houvesse neles forte tendência gnóstica, como se importasse a eles um conhecimento muito racional sobre Jesus que terminasse por criar divisões entre os mais e os menos sabidos. Não se trata disso, na verdade, pois esses evangelhos apresentam uma cardiognose: importa conhecer Jesus com o coração, experimentá-lo de tal modo que essa experiência mude a vida e o caminho. Portanto, depois de compreender a fidelidade do Senhor, testada e atestada no deserto, e depois de descobri-lo como Cristo que leva à perfeição a lei os profetas, perfazendo um caminho de morte e ressurreição, a quaresma nos apresenta uma virada. A virada não é só textual, mas é um convite ainda mais intenso, a entrar no itinerário de Jesus. 

Apresentando o texto
O terceiro domingo da quaresma, que celebramos na semana anterior, nos apresenta o primeiro desses evangelhos batismais. É o evangelho do encontro entre Jesus e a samaritana. Evangelho longo e cheio de simbolismos e, por isso, tentaremos captar mais o itinerário que propõe. 
Esse texto nos é apresentado, depois que o evangelho de João já mostrou o primeiro sinal de Jesus em Caná, da Galileia (Jo 2,1-12), que tem como grande intenção narrativa mostrar Jesus como vinho novo da alegria, enquanto a Lei acabava por se mostrar sem sabor e sem sentido (água). Jesus substitui a Antiga Aliança fundada na fidelidade à Lei, pela nova aliança que está fundada no amor-entrega. É esse amor que traz a alegria de uma festa de casamento (entre Deus e a humanidade) ao mundo. Afinal, se “a Lei foi dada por meio de Moisés, a graça e a verdade vieram por meio de Jesus Cristo” (Jo 1,17).  Logo em seguida, o evangelho mostra Jesus em um enfrentamento com o Templo e sua importância (Jo 2,13-22). Ele não será só purificado, como se o chicote do Messias fosse apenas um símbolo do zelo pela casa do Pai; ele será abolido. Para o evangelho de João, se Moisés construiu o templo como uma habitação do Senhor no meio do povo, logo depois de firmar a aliança (Ex 25,8), agora, Jesus inaugura a nova aliança dispensando o Templo como lugar de encontro; dispensa não só o templo, mas também sua liturgia. Depois de se ter tornado uma “espelunca de bandidos” (Jr 7,11.14), Jesus não restitui sua importância. Não é preciso mais um templo para adorar o Senhor, porque é o Cristo ressuscitado, sua vida entregue, o verdadeiro “lugar” de adoração (Jo 2,19). Importa, antes, uma adoração que não siga os parâmetros de uma liturgia sacrificial que sustenta a injustiça. O que interessa é uma adoração em espírito e verdade que gere vida. Os discípulos entenderão isso? Só depois da ressurreição. Quem vai entender isso primeiro? Uma samaritana. 

Uma inimizade secular prestes a ser desmanchada
Depois desse conflito como a instituição religiosa, o clero, e os que viviam às custas da religião e da exploração do povo, Jesus já tinha motivos suficientes para ser assassinado. Além disso, a fama de Jesus se espalhava; seu ministério crescia mais que o ministério do Batista (Jo 3,28-30). Tendo sabido que as autoridades já estavam preparadas para interromper seu caminho assim que fosse possível, Jesus abandona a Judeia, voltando à Galileia, mas sem passar pelo vale do Jordão, caminho esse bastante longo, mas previsto e esperado, já que era por meio dele que os judeus evitavam atravessar a Samaria, por conta da inimizade que havia entre esses dois povos. 
A inimizade tem história e remonta ao cisma de Israel com Jeroboão I, que sucedendo o reinado de Salomão, estabeleceu o Reino do Norte como verdadeiro Israel (1Rs 12), enquanto, no Reino do Sul, permaneceu o Reino de Judá. Enquanto a Judeia era bastante austera, a Samaria era rica e luxuosa. Há aí um conflito político baseado em ressentimento se ciúmes dos judeus. Mas o conflito era também religioso: os samaritanos não acreditavam senão nos cinco livros da Lei de Moisés. Não reconheciam sequer o profeta vindo de suas terras, que é Oséias. Eles também esperavam um Messias que seria como um restaurador, não vindo da casa de Davi, mas que fosse semelhante a Moisés (Dt 18,15). A inimizade também se mostrava nos conflitos por causa do culto: os judeus destruíram o templo dos samaritanos, erguido sobre Garizim e, os samaritanos, por sua vez, séculos depois, por volta do séc. VI a.C, profanaram o templo dos judeus, espalhando ossos pelos pátios do templo, tornando a festa da Páscoa impossível, pois o lugar sagrado se tinha tornado impuro. Desde então, nunca mais puderam entrar no templo dos judeus. Para os judeus, os samaritanos eram tidos como bastardos (2Rs 17,6), pagãos, inimigos de Deus, impuros. 
E então, o evangelho, ignorando séculos de inimizade, apresenta um escândalo: Jesus “devia atravessar a Samaria” (Jo 4,4). Jesus vai derrubar não só o templo, mas o nacionalismo religioso: talvez os samaritanos não possam acessar o templo, mas acessar a Deus, isso eles podem. 

Oséias, o profeta samaritano reestabelecido
O episódio da samaritana segue, como pano de fundo, a situação matrimonial do profeta Oseias. Esse profeta, vindo da Samaria, utilizara a imagem da relação de um marido com sua esposa para falar da relação de Deus com seu povo (Os 2,21-21). O profeta sofrera com várias infidelidades de sua esposa, mas não a puniu conforme a Lei mandava; seu amor devotado e apaixonado superava a infidelidade e repropunha o amor, relançando-o para além da honra ferida. Assim, então, deve ser também Deus: Deus perdoa a infidelidade de seu povo, fala-lhe ao coração (Os 2,16) e lhe oferece um amor mais profundo, como Oseias ofereceu a sua esposa: “Tu me chamarás marido meu e não me chamarás mais patrão meu” (Os 2,18). Assim sendo, o evangelista mostra o esposo, que é Jesus, que vai em busca de sua adúltera (a samaritana), para oferecer-lhe um amor mais intenso que nunca. Jesus para em Sicar, depois de longa caminhada, “senta-se sobre a fonte” de Jacó (Jo 4,6). Ninguém deverá estranhar: ele senta sobre a fonte, porque o evangelista quer nos fazer entender que ele é a fonte. 

A fonte e o poço
O evangelista faz um jogo muito interessante entre duas palavras na narrativa: uma é a palavra fonte (pége) e outra é a palavra poço (phrear). A fonte é o lugar onde a água mina, borbulha, brota generosa. O poço, por outro lado, é onde há água parada, requer fadiga para alcançar a água que se esconde em suas funduras. Quem acompanhou as bodas de Caná sabe que Jesus supera a água da Lei antiga, com seu vinho novo; logo, deve saber que a água é símbolo da Lei. 
Ao ocupar o lugar da fonte, Jesus substitui o poço de Jacó, pela fonte que é ele mesmo. Ele é o santuário de onde brota a verdadeira água, não mais símbolo da antiga Lei, mas do Espírito: quem nele crê, verá brotar de si rios de água viva (Jo 7,38). 
Então, o texto nos apresenta a difícil figura de uma personagem. Trata-se de uma mulher samaritana, impura e contaminadora, como todas as samaritanas. Muito improvável que algum judeu falasse com ela; era mais fácil morrer de sede. Jesus, ao contrário, lhe pede de beber e ela, mais que naturalmente, estranha que um judeu fale com ela. 
O texto não demora em mostrar que Jesus vai superar as divisões religiosas seculares. O que ele oferece é o dom de Deus, água viva (Jo 4,10). A samaritana não entende de que água Jesus está falando; tem o poço diante de si, está presa às tradições antigas e isso se verifica no bonito jogo de palavras usado pelo evangelista: Jesus fala fonte, a mulher fala poço. A mulher só conhece a Lei de Moisés, não conhece o dom gratuito de Deus. Ela não conhece o dom que jorra gratuitamente do verdadeiro templo que cada um é, por causa de Jesus. 
O que Jesus oferece não precisa ser merecido (a contragosto da religião), não precisa ser negociado (para infelicidade dos religiosos do templo-extinto), não precisa ser alcançado com esforço e mérito (como um balde que viaja fundo atrás de água); é antes uma oferta de amor que jorra para a vida eterna. Amor enquanto dom e, como tal, imerecido. Jorra para a vida eterna que não é uma vida depois da morte apenas, mas é, desde já, a vida transformada por essa experiência amorosa entre o humano e Deus. 
A samaritana, então, dá seu primeiro passo no caminho da iluminação (photismós): ela resolve abandonar o poço e quer o dom de Deus (“Senhor, dá-me dessa água” – Jo 4,15). Mas, para viver esse amor, é preciso dar mais um passo: é preciso abandonar os patrões/falsos maridos (baals). Notem que, como na história de Oséias, a oferta de amor propõe à esposa abandonar os patrões (a infidelidade) e a redescobrir o amor do marido; aqui, a samaritana também é convidada a deixar a infidelidade. Por isso, Jesus lhe dirá: “Vai, chama teu marido e volta aqui” (Jo 4,16), e a mulher responde não ter marido. Jesus objeta: “cinco maridos tiveste, e aquele que agora tens não é teu marido” (Jo 4,17). Esses cinco maridos são uma referência clara à situação da Samaria que constituía outros senhores (baal/marido) para si e adorava o Deus de Israel juntamente com outros deuses pagãos, para os quais tinha erguido templos em cinco colinas (2Rs 17,24-41). Mas as falsas divindades tiram a vida (são patrões), já o Deus de Jesus comunica amor e liberdade. Mas o número cinco também faz evidente alusão à Torah (lei de Moisés), os únicos textos reconhecidos pelos samaritanos. Assim, eles não reconhecem a tradição profética e se prendem também à letra da Lei, rejeitando a Palavra viva de Deus (“aquele que agora tens não é teu marido” – Jo 4,17; ou seja: não é teu Senhor, porque ainda não foi acolhido como Palavra viva, como Senhor Amoroso, mas sim como patrão terrível). 
A samaritana percebe, então, que Jesus não é só um judeu, mas é um profeta. Pronto: está reestabelecida a profecia. Não é mais só a Torah que importa. A Palavra de Deus deve ser acolhida em sua vivacidade: ela é fonte, não poço. Ela é viva e não deve ser fechada em si mesma. Mais um passo será dado, porém. 
A mulher quer dessa água da fonte. Mas como obtê-la, já que a relação com Deus só é possível no templo, mediante o culto? Para dar esse último passo em sua iluminação, a samaritana precisará ouvir a mudança radical que Jesus propõe. Para ele, “chegará o tempo em que nem sobre esse monte nem em Jerusalém adorareis o Pai” (Jo 4,21). Jesus indica que aquele que deve ser adorado não é um deus estranho, nem um Deus frio, o Deus da Lei, mas o Pai. Enquanto Deus precisa de um templo, o Pai não precisa. Para o Pai ser adorado, basta que haja filhos dispostos a viver em seu amor. Por isso não são precisos lugares, ritos ou liturgias, senão aquela do amor-serviço: onde esse amor acontece, o Pai é adorado. Antes, não é o humano que oferta nada a Deus, mas é o próprio Deus que se oferta como Pai, através de seu Filho. É ele que nos oferta seu amor, e recebe-lo na vivência com os irmãos realiza o culto que o Filho realmente deseja. Por isso, esse novo culto só pode ser em espírito e verdade (Jo 4,23). Como o Espírito é a força criadora de Deus, a amor deve ser criativo. Como a verdade não é uma verdade teórica, mas existencial, ela tem a ver com a fidelidade, com aquilo que se faz com a própria existência: ela tem a dinâmica do grão de trigo que cai na terra e dá fruto ou não? (Jo 12,24).

Nem só judeu nem só profeta, mas o Cristo.
A samaritana, então, diante dessa mensagem radicalmente nova, percebe estar diante do Cristo. É ele sua verdadeira sede. Antes, ela não havia compreendido que ele é a própria fonte de água viva, aquele que nos dá o dom de fazermo-nos dons, no amor e na fidelidade. Jesus se revela a ela em sua plenitude: “Eu sou, que falo contigo” (Jo 4,26). “Eu sou” é o nome pelo qual Deus se revela a Moisés. O nome divino é aqui atribuído ao próprio Jesus. Se Deus falava antigamente aos patriarcas e jamais falara com mulher alguma, somente com Sara (Gn 18,15) e para nunca mais, agora Deus fala com uma mulher samaritana, herege, adúltera. Um escândalo! A samaritana chega finalmente à iluminação: da água do poço à água viva; de uma conversa com um simples e ousado judeu, ao conhecimento de Deus na face de Jesus. Um conhecimento que põe em jogo a vida toda. 
A mulher samaritana, então, não precisa mais de seu balde; ela o abandona e se torna a primeira mensageira da boa-notícia, comportando-se como os primeiros discípulos. Os samaritanos acreditam em Jesus, acolhem-no e festejam sua presença (Jo 4,40). Afinal, o amor de Deus não faz distinção de pessoas (At 10,34-35), não distingue nações nem religiões e tem seu modo de chegar a todos.
Para rezar
Ao lado dos poços a que costumamos estar presos, lançando nossos baldes, à espera de uma água que mate nossa sede, está também esse peregrino que podemos não reconhecer com nossos olhos viciados. Ele nos pode pedir de beber, mas o que ele faz, sobretudo, é interrogar nossas sedes e oferecer-se a nós como dom. De que outra maneira, afinal, nossas sedes seriam alimentadas, senão assim: quando descobrimos o dom do amor como fonte?