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141. Barcos de papel

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06.03.2023 | 2 minutos de leitura
Pe. Eduardo César Rodrigues Calil
Diversos
141. Barcos de papel
A escritora Eliane Brum cunhou algumas palavras sobre a dor e o sofrimento, a saber: “depois de quebrar, nunca mais voltamos a ser como antes. Haverá sempre uma marca que será tão você, quanto o tanto de você que ainda não quebrou”.  Como é difícil dar sentido à vida e enfrentar o mal-estar que nos visita de dentro, ou de fora.  Estamos sempre reunindo os cacos do sentido, quando o real nos visita e nos relança na nossa condição de desamparo. Eliane Brum continua: “existe gente que não consegue dar sentido, ou acha que os farelos de sentido que escava das pedras são insuficientes para justificar uma vida humana, e quebra. Quebra por inteiro. Estes você precisa respeitar, porque sofrem de delicadezas”. 
Hoje, pela manhã, nos chegou a notícia despedaçadora da morte de uma mulher nova, que trabalhava na cúria diocesana de Uberlândia e era amiga de muitos. A causa da morte chocou ainda mais: suicídio. Para além de qualquer análise do fenômeno é preciso interromper todo o silêncio sobre esse ato e dizer que ele nos consterna e também nos interroga. Ele existe, ele é mais comum do que queríamos, é efeito de uma conjunção de sofrimentos e quebraduras, é causa da dor dos que ficam. Marcela sofria de delicadezas. 
Quem se joga do alto, quem salta nos braços da morte, já caiu há muito, e muitas vezes identificado a um objeto-resto. Já entrou na morte quem resolve, finalmente, encerrar a vida.  Não raras vezes, o suicídio busca desatar uma solução para aquilo que vai ganhando aparências de não ter solução. É um salto no vazio, uma busca por um gozo final, um lançar-se para fora da cena do sofrimento, que ganha aparências de definitivo. Trocar o gozo da morte pelo gozo da palavra e deixar cair os restos dela, ao invés de saltar no vazio: essa é uma aposta possível contra os nossos impossíveis. 
Nesse contexto religioso em que a Marcela viveu é bom dizer o que sua morte não é. Ela não é falta de fé nem é falta de Deus. É preciso repetir o óbvio. É um ato que dá notas de que nossos sistemas de sentido muitas vezes falham. 
A fé é importante instrumento na contenção do suicídio, pode oferecer uma importante rede de apoio, mas tudo isso pode ser insuficiente. Não é como nos sentimos diante do ato suicida: que nossos recursos são/foram insuficientes? E a isso se assoma o fato de que, diante do sofrimento, “tem gente que só é capaz de dar um sentido bem pequenino, um sentido de papel, que pode ser derrubado mesmo como uma brisa”.  Essa brisa não deve jamais sair de nossa boca. Mas quando tentamos ajudar, nossas próprias palavras só podem isso: fazer uma rede onde se possa cair e levantar, para relançar a existência. 
Eliane Brum diz mais. Ela escreve que ser forte “não é quebrar os outros, mas saber-se quebrado”. No fim, é o que podemos oferecer aos que sofrem de delicadezas: a nossa fraqueza. Uma mão que possa segurar e sacudir. Uma mão que ampara “barcos de papel sabendo que são de papel e que podem afundar de repente”. 
Quanto a nossa fé, se ela pode dizer com convicção “que nem a morte nem a vida, nem os anjos nem os demônios, nem o presente nem o futuro, nem quaisquer poderes… nem qualquer outra coisa da criação será capaz de nos afastar do amor de Deus que está em Cristo Jesus” (Rm 8, 38s), também pode dizer igualmente, esperança contra toda esperança, que o suicídio não afasta o suicida da salvação.
A nós que ficamos, faz bem lembrar as palavras de Shakespeare em Macbeth: “Dai palavras à dor. Quando a tristeza perde a fala, sibila ao coração, provocando de pronto uma explosão”. Falar é, apesar de um frágil barco de papel, a única coisa que permite trocar o gozo com a morte por um outro modo de gozo, por uma aposta na vida, e a fazer alguma coisa com nossas quebraduras. Não há garantias, não há promessas, mas o desejo de fazer frente à morte e seus poderes. 
À Marcela, que seja acolhida pelo Deus que não permite à morte a última palavra. Mesmo que se possa cair muito fundo, mesmo no abismo, lá Ele está. Para Ele mesmo as trevas não serão escuras (Sl 139).