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143. O que tinha sido cego

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19.03.2023 | 7 minutos de leitura
Pe. Eduardo César Rodrigues Calil
Diversos
143. O que tinha sido cego
Apresentando o texto: 
Neste quarto domingo da quaresma, vamos lemos mais um episódio do Evangelho de João: o relato da cura do cego de nascença (Jo 9,1-41). Todos os evangelhos trazem relatos de cura de cegos, embora não se fale de cegos de nascença. Mas, em João, além disso, essa cura não é um milagre, como nos evangelhos de Marcos, Mateus e Lucas. Aqui, trata-se de um sinal. Esse é o sexto de sete sinais. O sétimo leremos no quinto domingo da quaresma. Ao realizar os sinais, Jesus manifesta a glória de Deus e mostra quem ele é. Por exemplo: se Jesus transforma água em vinho, isso é um sinal que nos revela que ele é o vinho da alegria e até mesmo a videira verdadeira (Jo 15,1-12), de cujo fruto sai o melhor vinho (Jo 2,1-12). Ao curar um cego de nascença, portanto, o sinal revela que Jesus é a própria luz de nossa vida, como ele mesmo declara em Jo 8,12. 
Recordemos que ao se tratar de um evangelho utilizado nas catequeses batismais, como o da samaritana, esse também traz um percurso de iluminação (photismós: batismo). Se com a samaritana vimos um aprofundamento que a faz sair do poço para a fonte, a abandonar a bilha de água e a se tornar testemunha do Cristo, dessa vez veremos literalmente a luz penetrar na vida de um homem, tornando-o discípulo e, muito mais, colocando-o em posse da própria vida, restituindo-lhe a coragem de ser. 
No contexto do evangelho de João, Jesus foi participar da festa das Tendas e falou de si mesmo como sendo a luz do mundo (Jo 8,12), como Filho eterno do Pai (Jo 8,48). Por causa dessas afirmações ousadas, Jesus quase foi apedrejado, mas ele se escondeu e saiu do templo (Jo 8,59). É aí que começa o texto de hoje. 

Jesus viu um homem cego de nascença (v.1)
O Evangelho começa dizendo que Jesus viu um homem cego. Jesus vê não só alguém que não vê, mas alguém que não é visto, senão pela cegueira e pelo que ela representa. Entretanto, Jesus vê o ser humano em sua inteireza. 
Além disso, segundo a teologia da retribuição ainda vigente na época de Jesus, qualquer enfermidade era entendida como ligada a um pecado, cometido ou pelo próprio enfermo ou, no caso de já nascer com alguma deficiência, por culpa dos pais. Ou ainda por algum delito dos antepassados, das gerações anteriores. Ou seja; não tinha escapatória: doença era sinônimo de pecado, num esquema mecânico de causa e efeito. Os discípulos de Jesus o interrogaram logo. Queriam saber, então, quem pecou: se o cego, ou os pais dele. E Jesus desmontou essa ideia imediatamente: nem ele nem os pais, mas a glória de Deus se manifestará nele. A doença não está lá para que Deus seja glorificado, como se tudo fosse um jogo de peças marcadas. Mas a glória de Deus é a vida e a dignidade restituída e é justamente o que Jesus vai fazer: permitir que esse homem encontre a luz. 
Além disso, que alguém não veja é um impedimento para que seja discípulo, na cultura de Jesus, pois ele não pode ler a Torah, vivendo na escuridão e mantendo-se sempre dependente de quem o instrua. É sinônimo, então, de dependência e marginalização. Assim, Jesus não vai curar um cego, simplesmente. Ele vai arrancar alguém da escuridão, sendo para ele a Luz.
Jesus trabalha de dia, porque a noite, no evangelho, é sinônimo de trevas e tropeço. É na hora “mais escura” que o Senhor será entregue, logo “a noite” simboliza a proximidade da morte de Jesus. Jesus é a luz do mundo, porém, como ele mesmo proclamara na Festa das Tendas (Jo 8,12), ele vence a morte. E ele mostrará isso trazendo o cego à visão da fé, arrancando-o de sua morte em vida. Ele vai trazê-lo para o discipulado reconstituindo sua autonomia, fazendo-o livre. Curiosamente, é isso que vai desagradar a classe religiosa dominante. 
Cuspe, lama, piscina 
O gesto de Jesus de cuspir no chão, fazer lama com a saliva e colocar sobre os olhos do cego pode, de alguma maneira, fazer pensar nos gestos dos curandeiros de sua época, como se Jesus fosse um taumaturgo. Mas, na verdade, o evangelho está jogando com um forte simbolismo. Como o homem foi feito do barro, Jesus cria o novo homem também do barro. Sua saliva, na qual está presente seu hálito, segundo a mentalidade dominante, é cheia do Espírito. O cego vai lavar-se na piscina de Siloé (que quer dizer enviado), participando com esse gesto, da obra que Deus faz. Jesus restitui, desde então, sua autonomia, liberando-o da passividade. 
Ao ouvir a Palavra, que é Jesus, o cego se banha e retorna enxergando. Quem segue a Palavra que é Jesus encontra luz para o viver. O texto aqui é evidentemente batismal: a saída da morte (da cegueira), a passagem pelas águas (a piscina do enviado) ao ouvir a Palavra e ao aderir a ela, o retorno enxergando (vida nova).

E tu, que dizes daquele que te abriu os olhos?
A admiração com o antigo cego é geral. Como é possível que um homem que mendigava e que era tido como amaldiçoado, desde o seu nascimento, agora esteja restituído em sua coragem de ser e tenha se tronado um homem novo? Os vizinhos se incomodam; os que o viam outrora mendigando se perturbam; as autoridades religiosas (nesse episódio chamadas de fariseus ou judeus) se exasperam. “Jamais se ouviu dizer que alguém tenha aberto os olhos a um cego de nascença” (v.32). O estupor é compreensível, inicialmente. Parece realmente coisa impossível. Mas, ao tratar dos fariseus, o evangelho vai revelar o verdadeiro incômodo: que o cego veja significa um prejuízo para o próprio sistema religioso e sua teologia de benção-maldição. Uma cura dessa magnitude mostra que é possível alcançar a luz, a liberdade e a autonomia bem longe dos setores religiosas, longe do Templo, relativizando completamente o poder dos sacerdotes. Quem é este que restitui a luz, que abre os olhos, e faz ver inclusive que a religião do templo e dos chefes não é capaz de salvar?
Um verdadeiro processo vai começar. Primeiro os vizinhos param de se perguntar entre si quem é o cego, se ele era o mendigo que pedia nas ruas e falam diretamente com ele. Ele agora responde por si (“sou eu mesmo” – v.9). Passo a passo, veremos que ele vai enxergando cada vez mais. Quando lhe perguntam como se lhe abriram os olhos, ele responde que o homem chamado Jesus o curou: “fez lama, colocou-a nos meus olhos... lavei-me e comecei a ver” (v.11). Notem que, por enquanto, Jesus é apenas um homem. Como a samaritana, também o que tinha sido cego vai fazer um itinerário de aprofundamento.
O segundo momento do processo é levar o-que-agora-vê aos fariseus. Jesus curou o cego em dia de sábado fazendo lama, o que consiste em trabalho braçal. O descanso no sábado é o principal mandamento dos judeus, pois até Deus mesmo o observou (Ex 20,10). Jesus cometeu um pecado abominável, portanto, desobedecendo o sábado. Como é possível que um pecador possa livrar um homem de uma maldição como a cegueira? Como se vê: todo o sistema teológico dos fariseus é desmontado. Deus não trabalha segundo os seus esquemas. Jesus descumpre a lei do sábado e ainda glorifica a Deus sendo luz para quem estava na escuridão. A religião vai querer apagar essa luz. 
O que era cego agora dá testemunho corajoso de que Jesus não é só um homem, mas também um profeta. A samaritana percebera que Jesus era um judeu e, em seguida, percebera que ele também era um profeta. Agora, o-que-vê também chama Jesus assim. Sua visão se amplia cada vez mais, à medida que ele vai reconstituindo sua autonomia e sua coragem. Mas os fariseus não querem admitir isso e, para tanto, além de duvidarem de sua cegueira, buscam a família do ex-cego para que fale em nome dele, para descaracterizar a liberdade de seu lugar de fala. A família, por sua vez, e muito curiosamente, procura não se envolver, pois sabe dos riscos de lidar com os chefes da religião. No medo de se comprometer, ironicamente, acaba por dizer uma verdade: “é maior de idade, interrogai-o a ele” (v.23). Poder falar por si é sinal de dignidade reconhecida. Parece que o cego não foi curado apenas da escuridão onde jazia, mas também da mudez em que era colocado pelos que circulavam em torno dele. 
Os fariseus insistem na tentativa de escutar alguma resposta diferente; tentam encurralar o-que-agora-vê. Insistem na pergunta, porque querem pegar algum deslize. Mas o-que-vê será firme: “eu já vos disse, e não escutaste” (v.27). Bem diferente do-que-vê e acolheu a luz, pois ouviu a Palavra, são os fariseus que pensam enxergar, mas são cegos e vivem na escuridão, pois querem encontrar motivo para matar Jesus. Eles não escutam e, por isso, não podem ser discípulos. Parece que aquele que era cego agora vê, mas também fala e, tudo isso porque foi capaz de escutar. Por isso mesmo, quando os fariseus pensam estar insultando o que era cego, dizendo que ele é um discípulo de Jesus, dizem, sem querer a verdade, mas também denunciam o que eles próprios não são. Eles são os verdadeiros cegos do evangelho, incapazes de iluminar a vida dos outros com a luz da religião em que acreditam, querendo ofuscar a Luz do mundo, que é Jesus. Eles querem a morte; Jesus é a vida. “E a vida era a luz dos homens; e a luz brilha nas trevas, mas as trevas não a deteram” (Jo 1,4b-5).
O que agora vê mostra, então, que sua visão está mais clara do que nunca. Os que são discípulos de Moisés não entendem e não veem, mas o discípulo de Jesus que agora está na frente deles, esse sim sabe cada vez mais quem é Jesus, pois se Deus escuta os que são piedosos e fazem sua vontade, esse profeta que lhe abriu os olhos só pode ser alguém que vem de Deus. Os fariseus não aceitam ser ensinados e excomungam o que agora vê. A excomunhão (expulsão da comunidade) do que antes era cego mostra a inabilidade da religião da época de Jesus em aceitar a autonomia, a liberdade, o diálogo sem hierarquias. Antes, ela prefere a tutela, as práticas de dominação e amedrontamento institucionais, a fala hierarquizada (“...estás nos ensinando?” – v.34) e a imposição. São cegos guiando outros cegos (Mt 15,14). Mas Jesus, diferente disso, é luz que arranca a cegueira. 
Um elemento importante sobre esse banimento do que vê é que os cristãos foram expulsos da sinagoga, na altura do ano 80 a 90d.C, época da escritura do evangelho de João (90 a 100 dC), por declararem Jesus como Messias. O evangelista vê nesse cego que agora enxerga o retrato de todo cristão que é capaz de declarar o que vê pela fé. Além disso, o fato de ele não ter nome, como a samaritana, permite justamente que cada leitor ou ouvinte do evangelho, possa se colocar no lugar dessa figura, como cego convidado a sair da escuridão. 

“Foi encontrá-lo” (v.35)
O evangelho diz que Jesus soube que o homem havia sido expulso da sinagoga. Embora a versão que será lida nas liturgias dirá que Jesus encontrou o homem, a tradução mais precisa é: “foi encontrá-lo”. Isso manifesta a atitude de Jesus em ir ao encontro daqueles que a religião descarta, seja por qual motivo for. O que a religião joga fora, aqueles que ela oprime, a esses Jesus vai procurar. 

“Acreditas no Filho do Homem?” (v.35)
Aquele que vê agora está diante de Jesus e, ao ouvir a questão do Senhor (“acreditas no Filho do Homem?” – v.35), responde: “quem é, Senhor, para que eu creia nele?” (v. 36). A verdadeira visão no evangelho de João é, afinal, esta: a visão da fé. No final das contas, há muitos que enxergam, mas não veem. Interessa é que se possa chegar à fé em que ver e acreditar virem uma e a mesma coisa. Esse jogo é interessante no evangelho: os fariseus são os verdadeiros cegos, apesar de enxergarem; o cego deixou de ser cego, porque creu. Importa, para nós, que crer seja a própria visão, pois felizes os que não viram (enxergaram) e mesmo assim creram (viram) (Jo 20,29).
Finalmente, é imprescindível mais uma vez notar o itinerário da fé que o que tinha sido cego faz: Jesus era apenas um homem que lhe havia curado, depois um profeta, depois alguém que vinha de Deus e, por fim, o próprio Filho do Homem. A iluminação está completa.

“Porventura nós também somos cegos?” (v.40)
Os verdadeiros cegos parecem ser aqueles que sufocam a vida. Não há justificativa para esse tipo de cegueira e nem cura, quando os cegos dessa cegueira creem-se como visionários, “cheios da visão”. É porque dizem “nós vemos”, não se dando conta das próprias cegueiras, que o pecado deles permanece. 

Para rezar
Que a luz de Jesus ilumine também as nossas escuridões, fazendo-nos mais conscientes, livres e com coragem de ser suficiente para enfrentar tudo aquilo que coopera com a escuridão, criando cegos e tutelados. Que as nossas comunidades cristãs sejam corajosas para promover a vida, enfrentando o apego à norma e abrindo-se mais à caridade. Que as imposições de ideias, decisões e normas, bem como o controle, não seja a nossa marca, para que possamos levar a luz de Cristo, ao invés do medo e do autoritarismo que continuam a gerar cegos.