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140. “Se tu és o filho de Deus...”

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27.02.2023 | 5 minutos de leitura
Pe. Eduardo César Rodrigues Calil
Diversos
140. “Se tu és o filho de Deus...”
Apresentando o texto...
Iniciamos na última quarta-feira o tempo quaresmal. Este tempo é, na Igreja, um momento apropriado para a conversão do coração, para voltar a face para aquele que tem seu olhar amoroso sempre direcionado para nós. Neste primeiro domingo, a liturgia nos apresentou o evangelho conhecido como “As tentações de Jesus” (Mt 4,1-11). Este evangelho, entretanto, poderia ser bem chamado de “A fidelidade reconhecida do Senhor”. 
Seguindo a trama que o evangelista Mateus desenha, Jesus acabou de ser batizado por João e seu batismo é sinal de sua pertença ao povo de Deus e de seu comprometimento com o Reino que ele mesmo vai anunciar. Os céus se rasgam (Mt 3,16/ Mt 27,51), desce sobre Ele o Espírito (como uma pomba – Mt 3,16) e Jesus é apresentado como o novo Adão, aquele que porá em ato, em tudo, a justiça como ajustamento ao desejo de Deus. Além disso, a voz do Pai, atestará: “Este é o meu Filho Amado, nele está meu agrado” (Mt 3,17). Para Mateus, não é segredo nenhum que Jesus seja o Messias, como no evangelho de Marcos. Aqui, é imprescindível dizer logo, está às claras: Jesus não é um Messias inesperado, mas é o Esperado. Quem tiver problemas para compreender isso, na teologia de Mateus, é porque não entende as Escrituras. Logo, esse Messias é levado pelo Espírito ao deserto e lá ele será tentado pelo diabo. 
O Espírito conduziu Jesus ao deserto para ser tentado pelo diabo...
Três considerações precisam ser feitas sobre esse versículo: uma sobre o Espírito, outra sobre o deserto e uma última sobre o diabo. 
1. O Espírito desceu sobre Jesus no batismo, logo é Ele quem conduz Jesus. Mas o Espírito não imuniza Jesus Cristo de sofrer as tentações, que são próprias de toda vida humana. Todo humano as sofre; não será diferente com Jesus. O Espírito ajuda Jesus a se manter fiel àquela comunhão íntima que há entre Ele e o Pai e que o próprio Pai atesta dizendo: “nele está meu agrado”. Lembremos que Mateus pretende mostrar Jesus como o Filho fiel, diferente do povo de Israel que fechou o coração e endureceu a cerviz, quando no deserto (Hb 3,8). Por isso, que não afete a sensibilidade ler que o Espirito conduz Jesus para ser tentado pelo diabo, afinal o Espírito conduz Jesus em todos os momentos de sua vida. A tentação, humaníssima como é, não poderia estar fora da vida de Jesus. Nesse sentido, também para nós, o Espírito atua como aquele que nos ajuda a enfrentar os desafios, não como aquele que nos imuniza deles. 
2. O deserto é lugar teológico nesse texto. Isso significa que ele importa menos como geografia e mais como condição para a relação com Deus. Deserto é o lugar onde o povo de Israel viveu durante quarenta anos, antes da entrada na Terra Prometida. É um lugar onde o povo é convidado a abandonar todos os resquícios da antiga escravidão, aprendendo que o Senhor é seu Deus e a ser povo desse Deus (Ex 6,7). É o lugar, portanto, para se aprender a custosa liberdade. Mas, por vezes, enfrentando os desafios da fome e da sede, o povo chorou as “cebolas do Egito”. Duvidou da fidelidade de seu Deus e foi, por sua vez, infiel, quebrando a aliança. Daí as palavras do Salmo: “quarenta anos desgostou-me aquela raça, e eu disse: Eis um povo transviado” (Sl 95,10). Com Jesus será diferente: Ele é o agrado do Pai. 
3. O diabo é uma figura evangélica que foi inflacionada com muitos outros imaginários, bem posteriores. No texto bíblico, o diabo representa o antirreino. Antirreino é tudo aquilo que impede o Reino de acontecer, é toda dificuldade posta no caminho para que o próprio Reino encontre sua via de implantação. E essas dificuldades não são exteriores a Jesus, simplesmente; ao contrário, elas o provocam desde dentro. Jesus será tentado naquilo que lhe é mais caro: no seu desejo de ver o Reino dos céus acontecendo, desde já, na vida humana. Mas como Ele é justo e fiel, ele vencerá as tentações.

Quarenta dias e quarenta noites...
Não é segredo que o número quarenta nas Escrituras está revestido de simbolismo. Quarenta anos é o número de uma geração inteira, por exemplo. Mas o número também pode representar uma virada teológica, uma virada de chave, um novo início e está presente em muitos momentos nos textos bíblicos: o dilúvio, por exemplo, durou quarenta dias e quarenta noites (Gn 7, 4. 12). O povo peregrinou no deserto quarenta anos (Dt 8,2). Aqui, nesse texto, quarenta dias e quarenta noites está para dizer que Jesus não foi tentando pontualmente, uma vez só e nunca mais. Quer dizer, ao contrário disso, que a tentação esteve presente na vida toda de Jesus, como possibilidades de desvio ao seu messianismo e ao seu desejo de ver, aqui, o Reino dos céus. 
Além disso, homens fiéis a Deus são apresentados na bíblia como pessoas que jejuam, por quarenta dias e quarenta noites, como por exemplo Moisés (Ex 34,28) e Elias (1Rs 19,8). Com Jesus não será diferente. Aliás, Moisés e Elias desaparecem diante de Jesus, que leva tudo à perfeição e tudo sintetiza, como veremos no próximo domingo. 

As tentações 
São três as tentações elaboradas por Mateus e elas aparecem também em Lucas, trabalhadas de forma distinta pelo autor, com alguns outros acentos. Três é um número simbólico também. Nas Escrituras, o número três representa algo feito e definitivamente realizado (Pedro, por exemplo, negou Jesus três vezes – Lc 22,61; afirmou sua fé três vezes – Jo 21 – algo sem volta). Isso significa que Jesus é tentado mesmo, sem dúvida alguma, como qualquer ser humano que quer ser fiel a Deus. 
A primeira tentação diz respeito a transformar pedras em pão. É uma tentação que provoca Jesus a viver sua filiação a Deus como privilégio e não como serviço e fidelidade. É uma tentação que pretende desviar Jesus de seu messianismo de propor a Palavra, em troca de um messianismo fácil, mágico, que se resume a distribuir pão. Sabemos que Jesus não se furtará a fazer também isso: dar pão a quem tem fome; dar de comer. É o que ele ensina os seus a fazerem (Mt 14,13-21). No juízo imaginado por Mateus, nós seremos reconhecidos por Deus se tivermos reconhecido nos famintos o próprio Senhor e se não tivermos sido indiferentes a ele (Mt 25,35-45). Logo, o problema não é que Jesus tenha fome, queira comer, ou que dê pão e se preocupe com a fome. A tentação é bem outra: é ceder à ideia fácil de privilégio. É trair a Palavra, propondo uma ideia de um Deus mágico. 
Se Deus alimenta seu povo no deserto, mostrando ser o Deus verdadeiro; agora Jesus mostra que esse Deus nos alimenta não só de Pão, mas com sua Palavra viva (que é o próprio Jesus). E essa Palavra, inclusive, nos pede para darmos de comer a quem tem fome. É com essa Palavra que podemos enfrentar os desafios da vida e alimentar nossa fome de justiça (Mt 5, 6).
A segunda tentação é um passo a mais do diabo, que, não tendo conseguido fazer o Filho ceder aos privilégios de implantar o Reino com mágica e facilidades, agora o provoca a tentar a Deus, forçando-o a agir. A tentação demonstra uma ideia intervencionista de Deus, que fiel a sua promessa, impediria Jesus de se machucar em alguma pedra, se ele se jogasse do alto da Cidade Santa. Tentação muito frequente hoje, inclusive: a de buscamos, muitas vezes, constranger Deus a nos obedecer, ao nosso bel prazer. Notem que o diabo leva Jesus ao alto da Cidade Santa, porque apesar de ser Santa, ela é representante de uma classe religiosa que cai em tentação: mata os profetas e o Filho de Deus (Mt 23, 37). Depois, notem como o diabo cita as Escrituras para convencer Jesus a saltar, confiando no cuidado dos anjos (Sl 91,6-12); um belo exemplo de leitura fundamentalista. Jesus, entretanto, não vive o seu messianismo como privilégio e também não põe a prova a fidelidade de Deus. Ele conhece a Palavra que sai da boca de Deus, não como quem cita versículos a esmo, mas como quem conhece o Espírito mesmo da letra. Jesus sabe que não é preciso jogar-se do alto para testar a fidelidade daquele que não nos tenta (Tg 1,18), mas nos ama e acompanha sempre. 
Na terceira tentação o diabo quer ser adorado. No alto de uma montanha, lugar privilegiado de encontro com Deus (como vimos nos três últimos domingos), o diabo quer desviar o olhar de Jesus para os Reinos desse mundo e suas riquezas. Tentação a que Jesus poderia ter cedido, caso tivesse deixado seu coração ser seduzido pela ideia de poder. Não é o caso: seu coração não cede aos ídolos, mas sua vida é uma adoração somente ao Senhor Deus (Dt 6, 13). Nenhum reino é maior e melhor do que o Reino dos céus. Nenhum poder nos pode salvar, só a obediência amorosa a Deus; nada é melhor que ter a vida nas mãos do Pai. Então, o diabo vai embora, farto de tanta fidelidade e os anjos vêm servir Jesus. Eis a cena que retrata o que a vida de Jesus é: vida de comunhão e fidelidade com o Pai. 
A tentação oculta
Há nas duas primeiras tentações uma condicional que se repete e que chama a atenção: “se tu és o filho de Deus”. As tentações pretendem colocar em xeque, portanto, não só o messianismo e o modo como Jesus vai compreendendo o Reinado dos céus, mas sua própria experiência de filiação. Como vimos, esse texto sucede ao batismo de Jesus, quando todos ouvem a voz que diz: “Este é meu filho amado!”. Não é à toa que a experiência das tentações começa assim: “se tu és o filho...”. A experiência radical de ser Filho é provocada e tentada durante a vida de Jesus. Mesmo na terceira tentação quando Jesus é tentado a adorar o diabo e a ceder à diabolia do poder, o que está em xeque é a fidelidade do coração a essa experiência profunda; a de encontrar no Pai aquele horizonte que decide toda a vida. 

Para rezar...
Na nossa espiritualidade, esse deserto em que Deus nos convida a ouvir sua voz e a libertar a nossa própria liberdade, podemos ouvir Deus falar ao nosso coração. Contudo, muitas vezes experimentamos aí a atração por coisas que nos distanciam de Deus e dessa experiência profunda de sermos seus filhos. Cedemos muitas vezes à tentação de querer apenas cuidar do alimento corporal, esquecendo nossas fomes e sedes mais radicais. Esquecemos, não raro, a fome e sede de justiça, por exemplo. Cedemos outras tantas vezes à tentação de buscar um Deus de seguranças fáceis, que não nos deixe tropeçar em nenhuma pedra. A religião asséptica, na qual ninguém se arrisca para construir um mundo novo, mas espera que Deus faça tudo magicamente, é tentadora, mas é falsa. E, por fim, tantas vezes nos deixamos seduzir pelo poder. Mas o mundo não é mais humano se nos deixamos seduzir pela força que subjuga e oprime. Por isso precisamos do Espírito (de Jesus), para nos mantermos fiéis.