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139. O fim das grandes narrativas e a desterritorialização da Liturgia da Palavra nas celebrações eucarísticas católicas

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20.02.2023 | 4 minutos de leitura
Pe. Eduardo César Rodrigues Calil
Diversos
139. O fim das grandes narrativas e a desterritorialização da Liturgia da Palavra nas celebrações eucarísticas católicas
É preciso se perguntar se há ainda espaço para as grandes narrativas; o mito, a filosofia e os escritos sagrados como a Bíblia e o Alcorão. Na realidade, com a modernidade e o seu esgarçamento, o fim das metanarrativas já foi anunciado. De fato, o que a pós-modernidade postula é o fim de muitas instituições, inclusive literárias, mas essas mesmas se perpetuam como palavras-eco, como instituições zumbis. Isso quer dizer que o fim não se dá, de uma vez por todas, é um fim que não se esgota. E isso torna o fim ainda mais cruel, porque a desimportância às grandes narrativas se vê com o advento da técnica e da pragmática. Uma desimportância continuada…
Uma metanarrativa é por definição uma representação de mundo, uma representação de uma verdade sobre o universo, enquanto na teoria literária diz respeito a uma narrativa autodirecionada, que questiona a própria produção narrativa. As Sagradas Escrituras cristãs, podem ser inseridas aí como uma produção que busca situar o homem frente a três grandes aberturas: diante de si, diante do outro seu semelhante e seu estrangeiro, diante da Vida ou de Deus. Para tanto, ela pode ser tomada como tesouro que guarda essas aberturas radicais, embora infelizmente ela possa ser lida também como sutura cabal dessas mesmas aberturas, como na leitura fundamentalista. O grave risco da leitura de sutura é fazer o texto dizer o que não diz (vimos isso à bancarrota no período eleitoral). 
Da estética do belo e do inacabamento da Modernidade (de Habermas), à uma estética do sublime e à recordação do que essa mesma modernidade esqueceu (de Lyotard), temos a infeliz notícia do fim das grandes narrativas, essas que sustentam o Ocidente (decretada também por Lyotard). O advento da técnica seria o grave culpado para o fim das grandes narrativas. Para longe da tecnofobia, a técnica promete ser ela mesma uma narrativa omniabrangente, porque pretende ocupar o lugar das metanarrativas. Mas sua pretensão é resolver o homem como a um cálculo, lançando à frente, no futuro, a intenção de uma explicação totalizante sobre a vida e o humano. Chegará o dia em que a ciência e a técnica possuirão o segredo da imortalidade. Entretanto, o que a técnica conseguiu pôr em marcha é o fim do próprio ser humano e em questão a derradeira pergunta: haverá amanhã, possível?
O fim das metanarrativas se vê às claras nas linguagens das redes sociais, marcadas por emojis e stickers, representada por conversas de poucos carácteres, ou na impaciência para grandes textos, para a palavra. Mas também no advento da mentira como tecnologia, com as fake News. Ou ainda na comunicação hodierna, com a incapacidade cada vez mais premente de narrar-se a si mesmo. Ou no discurso do capitalista e do mestre, discursos que esgotam as narrativas na lógica da oferta-procura; do cálculo e do lucro (o que eu ganho?); ou no argumento de poder e autoridade. 
Na Igreja Católica, a preservação da ideia comunitária, estrangeira à cultura pós-moderna, e por isso mesmo ainda pertinente, oferece um ambiente de controle, em que é possível assistir o fim das metanarrativas. Exatamente no lugar que se cultua a Palavra, se percebe um antagonismo: o desprezo à própria Palavra. Aqui a análise pode ir muito longe. Ela pode incorporar aspectos pastorais, aspectos comunicacionais, aspectos situacionais e outras variáveis, mas o cansaço com a palavra é notório. O cansaço com a reflexão, com a ética como avaliação da moral pessoal, com a leitura de mundo e do entorno. Isso põe em xeque um próprio método teológico que é de o ver-julgar-e agir, em nome de um novo modelo: sentir-ressentir-repetir. Esse novo modelo se encontra mais no apelo emocional de certos discursos, marcados pela manipulação e sugestão. E esse modelo dá certo, não porque seja uma grande e nova tecnologia, mas porque encontra o terreno da pós-verdade e do pós-humano onde se pode criar e florescer. É uma gestão do cansaço, a partir da emoção catártica, do que ela abre como promessa, que não será cumprida. Mas não importa, importa é o advento da emoção e da satisfação pronta, pequena; pequeno gozo contra o amanhã improvável. 
Diante desse fim lamurioso das grandes narrativas, a hermenêutica parece ter se alojado na poética. A estratégia lembra a de Heidegger que encontra na poética um retorno à eclosão da possibilidade de pensar, contra a técnica que é o fim da própria filosofia. A poética seria a maneira de salvar a metanarrativa, levando a palavra a seu limite de não-sentido, para que de lá, do absurdo, pudesse brotar a salvação que se espera (aqui, só um Deus nos pode salvar também, como em Heidegger). A teopoética seria a nova territorialização da Palavra e sua liturgia. Um resgate de estética do belo e do sublime na tentativa de também tocar a emoção, sem perder a reflexão. Mas há tempo, hoje, para a lusco-fusco na sociedade da transparência? 
Se uma teoria do negativo (contra a pressa, contra a estética do vidro) tem ainda lugar numa sociedade moderna, Walter Benjamim, parece atestar que não. A poética nos põe na clareira da floresta, lá há raios de sol e sombra, e de novo a contemplação de si, mas a cultura moderna prefere as arquiteturas envidraçadas, também no modo de pensar. 
Daí que será preciso recuperar a palavra como acontecimento. À moda de Badiou, a Palavra não pode ser só tomada em sua poética, pois essa é apenas uma das condições de seu acontecimento. Como acontecimento ela tem tais condições: o matema, o poema, a política e o amor. Mesmo a hermenêutica não pode abraçar todas essas condições, apesar de tentar. A Palavra é acontecimento porque tem uma lógica-formal (matema); porque expressa o sentido e seus limites (poema), porque é “territorial”, no sentido de que tem um enraizamento e uma abertura, um contexto, além de por em marcha vários mundos (política) e é a própria condição do amor. 

É preciso achar uma nova interpretação bíblica que dê conta destas condições, a saber: 1) que não despreze a exegese (o matema). 2) Que a exegese seja a baliza da hermenêutica (atendendo à índole do poema/teopoética). 3) que a política seja considerada e, portanto, o que ela causa como discurso incômodo. 4)e por fim, o amor como o próprio furo humano; esse furo, porque mantém o ser humano aberto às suas possibilidades e impossibilidades. Conjuntando essas condições, a interpretação bíblica (que não se esgota na hermenêutica), revela seu caráter de acontecimento. Isso não é fazer leitura omniexplicativa, mas partir da falta como estrutura humana. Uma leitura bíblica omniexplicativa, como metanarrativa, não tem mais lugar. O que tem lugar é uma leitura da própria falta humana, que Deus não sutura, para não fazer o ser humano deixar de existir.