138. A lei e Jesus
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13.02.2023 | 3 minutos de leitura

Diversos

Jesus é de fato um homem revolucionário. E essa revolução é sentida dentro dos evangelhos e permanece como uma tensão dentro dos próprios textos das primeiras comunidades cristãs. Evidentemente essa tensão que Jesus abre em relação ao seu mundo-vivido, com a cultura e, sobretudo, com a religião de sua época, não é a única tensão dos textos. Em realidade, ela é retrabalhada e até atualizada e, porque não reinventada, diante da própria tensão que as comunidades vivem, anos depois da morte e ressurreição de Jesus. Isso faz a personalidade de Jesus, chamemo-la assim, só poder ser dita em termos de identidade narrativa, já que historicamente não temos condições de saber, em definitivo, quem foi o Mestre, senão pelo acesso aos próprios textos dos evangelhos. A pesquisa histórica, no meu modo de entender, tem conclusões consoantes e a pesquisa historiográfica não deve ser inoportunamente descartada, já que dela inclusive depende uma leitura mais arqueológica dos próprios textos. Mas sem sombra de dúvida, o texto já é vivo por si, não dependendo de o dissecarmos para mostrar que seus órgãos funcionam bem.
Jesus é um homem revolucionário, porque destruiu uma lógica vigente, criticando diversas relações que mantinham o sistema de sua época funcionando, atacando o modelo social e religioso e pondo em xeque a estrutura religiosa/sacra e social. Como lidamos com essa tensão e com a revolução de Jesus? Tentando reduzi-la. Tentando de algum modo recuperar o que ele jogou fora. Fazendo discursos conciliatórios. Reciclando o que Jesus descartou e dizendo: “isso aqui, podemos manter, contanto que se pense diferente”. Pronto, grave problema a enunciar: não demos, não damos, conta da tensão Jesus. Já as primeiras comunidades buscavam essa conciliação; é, pois, uma tentação de sempre: talvez fosse possível concilia-lo com Moisés, ou com Elias… com a lei, ou com os profetas, mas sua novidade permanecia uma disrupção a ser ouvida. Talvez fosse possível colocar vinho novo em odres velhos, mas sua novidade permanecia sendo a ruptura dos odres. A Igreja segue essa tentação: cozinhar em banho-maria a revolução Jesus. Aliás, podemos nos perguntar o quanto disso é autopreservação, afinal, ao aceitar complemente o vinho novo, seus próprios odres seriam rebentados…
O evangelho Mt 5,17-37 nos coloca diante de um bom exemplo da tensão Jesus. E ela se dá diante da Lei que a comunidade mateana não pode, não quer, dispensar, pois trata-se de uma de suas Tradições mais importantes e que ao mesmo tempo não pode mais ser lida da mesma maneira, porque se encontra incompleta diante de Jesus, imperfeita. E isso, em primeiro lugar, não por conta de seus casos concretos, mas justamente por conta de como ela é tomada estruturalmente. Ela já não pode mais ser tomada como símbolo de imposição, nem sequer como a imposição de um pai exterior. Nem deve advir de uma imposição irracional, de uma instância julgadora e interna, mas deve ser tomada a partir de um ponto de discernimento, de autonomia pessoal; de olhar atento e maduro para as próprias pulsões. Ou seja, a lei não pode ser tomada como lei, já que é próprio do funcionamento da lei reprimir. Ela deve ser tomada como representação que questiona; qual o estatuto do outro, para nós?
A lei não deve mais ser tomada do ponto de vista da obediência, aqui entendida como cumprimento de preceitos. Mas deve ser tomada como representante de uma questão fundamental: que é isso a que obedeço? E principalmente, como já dissemos: que é o outro para mim? Esse outro que quero matar, que quero trair, que quero descartar, esse outro de quem desconfio… que é para mim? Nesse sentido, a lei para Jesus não está do lado da moral, mas da ética.
Para Jesus, não basta cumprir preceitos. A lei põe em questão as nossas relações e faz-nos perguntar pelas nossas relações horizontais: como podemos lidar com a raiva, com o cansaço do amor, com a desconfiança? Isso, porque Jesus, presume-se, sabia ler na humanidade aquilo que ela tenta tanto negar: o seu próprio potencial destrutivo. Reprimir a destrutividade, a partir de regras, não faz nada mais do que fazer essa destrutividade voltar de outros modos. Assim sendo, é possível não matar o outro num homicídio, mas é possível destruir o outro de inúmeros outros modos. A lei é tomada por Jesus a partir do ponto que questiona nossa própria destrutividade e dá lugar a ela como questão. Que é possível fazer com a raiva que todo mundo sente, com o descabeceamento do desejo que todo mundo tem? A saída não é a norma.
Em Jesus, o núcleo de suas respostas parecem por em xeque compreensões vigentes: vida não é só estar vivo, é mais do que isso (e por isso matar não pode ser simplesmente cometer homicídio). Mulher não é menos digna nem um simples objeto de homens e seus caprichos (daí que adultério e carta de divórcio são instituições patriarcais de sua época), e a palavra tem peso, importância (daí não fazer sentido jurar). A palavra deve ser fiada no desejo que diz sim e não. Ora, essa pode mudar, mas o medo da impermanência segue sendo nossa razão para jurar.
Jesus não era defensor da família, do estatuto do homem-pai como centro da cultura. Por isso mesmo, a crítica ao adultério/divórcio não tem nada que ver com o que entendemos hoje, mas é esfaceladora da cultura patriarcal. Isso não é advogar a favor do adultério como é entendido atualmente, mas naquele momento do texto, o personagem Jesus coloca em questão a cidadania da mulher. Confrontado com nosso tempo, será preciso fazer permanecer a questão sobre as relações amorosas; como elas são tomadas de um lugar de possessão e controle, como o homem segue sendo centro do mundo hipermoderno, apesar da emancipação feminina e se a monogamia ainda pode dar conta da nossa tentação de fazer as ideias mais primevas de complementaridade consistirem. Há mais no adultério e no divórcio hoje, um Outro que fala, do que simplesmente a consciência e a deliberação. E o exercício formal da lei não põe isso em questão. Se partirmos de Jesus, e seu jeito de tomar a lei, vamos ter que começar a nos perguntar…
A paixão de Jesus é o outro tomado de seu lugar de enigma. Enigma para si próprio e para sua alteridade. Nisso Jesus é absolutamente revolucionário frente a lei, porque a Lei não dá conta do enigma em nós e no outro. Ela dá conta de escrever: ame o estrangeiro/estranho, mas só. Sua letra nem sempre mata, portanto. Apesar disso, permanecemos querendo destruir o estranho. A grave questão é: por quê?
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